RESENHA DA OBRA “RACISMO E TRABALHO INFANTIL: COMPREENDENDO (RE)EXISTÊNCIAS A PARTIR DAS MARGENS”

30/04/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A compreensão do racismo no Brasil pressupõe distingui-lo de outras experiências em que ele foi explícito e institucionalizado por normas e práticas oficiais. Ademais, não é possível concluir que em nosso país hoje não existe racismo. Para tanto, é necessário entender como esse sistema opressor opera e identificar os mitos entorno da construção histórica da imagem de que somos um país plural e nos fastamos da realidade que nos precedeu (Ribeiro, 2019, p. 17-19).

O Brasil está alicerçado no sofrimento, exploração e violência contra os corpos indígenas, africanos e diaspóricos. Neste sentido, a obra tem um importante papel para desvelar o discurso de que não somos um país racista e como a construção da nossa sociedade impacta a vida de crianças e adolescentes negros(as). Para tanto, as autoras trazem uma perspectiva historiográfica decolonial, necessária para compreender como período escravocrata e pós-abolição representou um processo de marginalização social.

A Profa. Dra. Josiane Rose Petry Veronese possui uma longa trajetória de pesquisa na área jurídica, sendo um expoente na produção de estudos sobre os diretos da criança e do adolescente. A frente do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente - NEJUSCA/UFSC, tem conduzido importante produção científica sobre o tema. Por sua vez, Fernanda da Rocha Fabiano, mestranda em Direito pela UFSC, inicia sua trajetória acadêmica com uma importante contribuição para a defesa dos direitos da criança e do adolescente e para a luta antirracista.

O primeiro capítulo do livro desempenha a função de examinar como homens, mulheres e crianças negras eram violentamente retirados de sua terra, alocados em tumbeiros (cujo nome evidencia em tom lúgubre a terrível jornada), classificados e forçados a fornecer sua mão de obra para enriquecer a elite branca latifundiária e o Estado monárquico. O olhar sobre esse período, sob a ótica decolonial, evidencia a construção histórica das estruturas sociais que perduram até hoje.

Ainda que não se tenha a intenção de adentrar no detalhamento de cada tópico, até porque não se busca com uma resenha fornecer o resumo da obra, é necessário registrar como é abordada a condição das crianças escravizadas. As crianças que sobreviviam à tortuosa viagem chegavam em terras brasileiras em condições extremas, marcados por feridas e barrigas inchadas em decorrência de vermes e desnutrição. Por volta dos quatro anos de idade, eram explorados em pequenas tarefas domésticas. Ao completarem doze anos, os seus senhores as viam como indivíduos adestrados e máquinas prontas para trabalhar.

A iniciação ao trabalho e sujeição às ordens eram marcadas pelo suplício, momento em que eram expostas e ridicularizadas, a fim de distrair e entreter as crianças livres. Os meninos, entre dez e doze anos, eram colocados para transportar a cana até as moendas, enquanto as crianças menores tinham a função de cultivar alimentos e caçar pequenos animais silvestres. As mulheres negras eram reduzidas a duas funções: “escrava do eito” e “mucama”. A primeira tinha sua mão de obra explorada na atividade agrícola, dividindo com a criação dos próprios filhos, os quais, em muitos casos, eram frutos de estupros perpetrados pelos seus senhores. A segunda, tinha a função de manter o bom andamento da casa-grande.

Aborda-se, a partir da vinda da família real portuguesa para o Brasil e início do império brasileiro, a função do ordenamento jurídico para manutenção da estrutura racista e eurocentrada. Além disso, destaca-se como legislações abolicionistas não foram capazes de evitar a marginalização social de negros e negras. O capítulo avança no tempo até o século XX, analisando o tratamento dado à criança, como chave do futuro, a partir da chegada da “sociedade moderna” e do sistema capitalista.

Por outro lado, em decorrência do regime escravocrata, as crianças negras não eram vistas na mesma perspectiva. Neste sentido, destaca-se como os marginalizados, obrigados pela realidade a cometerem pequenos delitos para assegurar o mínimo para sobreviverem, eram vistos como indivíduos a serem endireitados. Assim, abordam-se a Lei Mello Mattos, primeira legislação menorista, e a legislação sucessora, o Código de Menores, as quais instituíram a doutrina da situação irregular.

O enfoque histórico da obra, na perspectiva decolonial, é imprescindível para analisar os dados do segundo capítulo. As autoras fazem um importante exame das normas internacionais e nacionais acerca do trabalho infantil em contraste com os dados relativos à realidade social interna, concluindo que a estruturas patriarcal e racistas do nosso país atinge de forma desmedida famílias negras, obrigando-as a utilizar crianças e adolescentes como forma de complementar sua renda. Não se busca esmiuçar dos dados apresentados, tampouco esgotar a discussão de como o racismo, que estrutura o funcionamento da sociedade brasileira, desempenha o papel de alargar o abismo das desigualdades. Para tanto, destaca-se a necessidade da leitura da obra em sua completude.

O terceiro capítulo dedica- se em analisar os caminhos para a elaboração e implantação de políticas públicas e, como nesse processo, as estruturas sociais hegemônicas desempenham seu papel de invisibilização de negros(as) e pardos(a)s, além de outros grupos. Em igual sentido, relembra-se que, para impactar a qualidade de vida de crianças e adolescentes (não-brancos/as), a construção de políticas públicas deve romper com a lógica que coloca a cultura branca e europeia como superior às culturas negra e indígena.

De forma harmoniosa com a perspectiva do capítulo anterior, as autoras prosseguem destacando o papel da literatura afro infantil para compreensão de crianças sobre o que é o racismo, bem como evidenciar a riqueza do ser criança ou adolescente negro(a). Outra questão relembrada, diz respeito à existência da Lei n. 10.639, de janeiro de 2023, prevê a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileiras e africadas nos estabelecimentos de ensino do país.

Acerca da necessidade do efetivo conhecimento e reconhecimento sobre a diversidade cultural, destaco, no âmbito catarinense, o relevante papel desempenhado pela Associação de Educadories Negres de Santa Catarina para elaboração de um diagnóstico da implementação da Lei n. 10.639/2023 e união de esforços na luta antirracista e assegurar a educação para relações étnico-raciais[1].

Assim como o último capítulo obra, questiono a possibilidade de uma conclusão. Não estamos diante da prescrição de uma solução. O cenário apresentado pelas autoras traz uma profunda reflexão sobre a necessidade de mudanças e como é preciso a união de todos os segmentos da sociedade para combater a exploração infantil, o que passa, necessariamente, pela compreensão e superação das estruturas racistas que se perpetuam no tempo.

 

Notas e referências

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

VERONESE, Josiane Rose Petry; FABIANO, Fernanda da Rocha. Racismo e Trabalho Infantil: compreendendo (re)existências a partir das margens. 1. ed. Florianópolis: Habitus, 2024.

[1] Informações disponíveis no sítio: https://associacaoensc.wixsite.com/ensc. Acesso em: 1º.abr. 2024.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Spinning // Foto de: Charles Roper // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/charlesroper/17392617601

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