RESENHA DA OBRA “DEPOIMENTO ESPECIAL E ESCUTA ESPECIALIZADA: sob a ótica do sistema de garantias de direitos da criança e adolescente”

28/05/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Em diferentes partes do mundo, a violência na família vem assumindo um crescente papel nas estatísticas de morbimortalidade de mulheres, crianças e adolescentes (Reichenheim e Moraes, 2003, p. 1701-12).

Ao tratá-la como fenômeno, vê-se a sua amplitude e complexidade, que requer, dessarte, a colaboração de especialistas de diversas áreas para ser compreendida e enfrentada adequadamente.

Por este olhar é que a Profa. Dra. Josiane Rose Petry Veronese, Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – NEJUSCA/UFSC, referência nacional na pesquisa do Direito da Criança e do Adolescente, e a Profa. Dra. Sandra Muriel Zadroski Zanette,  pesquisadora do NESJUSCA/UFSC, discutem na obra “Depoimento Especial e Escuta especializada: sob a ótica do Sistema de Garantias de Direito da Criança e Adolescente”, as práticas e a legislação relacionada ao tratamento de crianças e adolescentes como vítimas ou testemunhas em processos judiciais, especialmente em casos de violência.

Num primeiro momento, as autoras apresentam detalhadamente a evolução do tratamento de depoimentos de crianças e adolescentes: das práticas judiciais até a sua normatização, com uma ênfase significativa na Lei n° 13.431 de 2017, que estabelece o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e Adolescentes testemunhas ou vítimas de violência.

Consideram salutar a contribuição de atores do direito, como José Antonio Daltoé Cezar, Juiz de Direito que,  na prática forense, movimentou o projeto do Depoimento Sem Dano, bem como de Veleda Dobke, considerada a mãe do depoimento especial, quando possibilitou a escuta da vítima sem a necessidade de estar presente na sala de audiências.

O depoimento especial, portanto, foi instituído como um mecanismo para proteger crianças e adolescentes durante o processo judicial, preservando sua integridade psicológica e prevenindo a revitimização. Em síntese, a legislação estipula que, quando viável, o depoimento especial deve ocorrer em uma única ocasião e, de preferência, como prova antecipada, assegurando a ampla defesa do acusado.

Ao citar o Decreto n° 9.603/2018, que regulamenta a Lei n° 13.431/2017, as autoras frisam a diferença de tal instituto com a escuta especializada, que não deverá ser utilizada como meio de produção de provas, mas sim, com o intuito de proteção e cuidado da criança e do adolescente. O receio consiste na capacitação dos profissionais da rede de proteção para a realização da entrevista cognitiva.

Neste contexto, a normativa se preocupou com os mecanismos de integração das políticas de atendimento estabelecendo prazos para que os municípios implementem gestão articulada na rede de proteção, garantindo a prevenção da revitimização às vítimas e testemunhas de violência.

A obra discute, assim, como as práticas de depoimento e escuta devem alinhar-se aos princípios do Direito da Criança e do Adolescente. Há destaque ao Princípio da Voz e Participação da Criança, previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada no Brasil em 1990, anunciando o reconhecimento deste público como sujeitos de direito.

Ao considerar o adultocentrismo presente na nossa cultura, e, consequentemente, no poder judiciário brasileiro, as autoras acreditam que no depoimento especial, a preocupação maior está direcionada à punição dos abusadores.

Neste sentido, não faz parte do sistema de garantia de direitos, como também, não está em consonância com o Princípio da Voz da Criança, fundamentado na Doutrina da Proteção Integral, na medida em que a simples punição do responsável não é suficiente para dar respaldo às garantias. Sugere-se, inclusive, que como instrumento do processo penal, seja então, o depoimento especial, migrado ao Código de Processo Penal como inicialmente previsto nos primeiros projetos de lei.

Por conseguinte, num segundo momento, anuncia-se a complexidade do fenômeno da violência. Ao ser conceituada sob vários aspectos, as autoras demonstram que além da própria voz, sejam considerados outros fatores como o espaço, a plateia e a influência na vida dessas crianças e adolescentes.

Na obra é apresentado o Triângulo da Violência de Galtung, com a reflexão no que diz respeito a violência estrutural e cultural. Ele aponta que a violência direta é a única visível aos olhos, já que toda a complexidade está em sua causa. Pelo entendimento de Galtung, sob a justificativa da cultura, muitas sociedades legitimam a violência, tornando-a tolerável, o que faz com que algumas pessoas não vejam ou não percebam a violência como tal.

Para as autoras, o triângulo de Galtung ilumina as percepções de que a busca incessante do inimigo que muitas vezes, é com quem a criança ou adolescente tem laços de afeto, não contribui para a prevenção e erradicação da violência contra esse público.

Ao ser responsável pelas desigualdades, a violência estrutural contribui diretamente na violência interpessoal, em especial a intrafamiliar e por isso devem ser tratadas de forma conjunta. Na ocasião, é mencionada a Lei n° 13.010/2014, que deu foco na família em situações de violência, bem como na integração de todos os órgãos responsáveis pela defesa dos interesses da criança e do adolescente.

No que concerne o depoimento especial, em que pese a contribuição de sua regulamentação para garantir uma oitiva menos revitimizante, é visto no sistema de justiça tão só a simplória aplicação de uma metodologia e protocolos, que não promovem a dialética, fazendo com que os atores do direito não visualizem e identifiquem os problemas e equívocos que venham a ocorrer durante uma oitiva.

Dada a importância da problemática, no livro, faz-se referências a doutrinadores que o reconhecem como compatível a um sistema inquisitório e não acusatório, sendo o magistrado, protagonista na atividade de resgatar a verdade, desprovido de contraditório.

Na busca desta verdade, deve-se considerar que o tema probatório remete a uma realidade muitas vezes remota, que na memória, pode estar inibida por mecanismos variados.

A partir de estudos exemplificados, as autoras refletem a habilidade cognitiva para testemunhar, na medida em que a sugestionabilidade, a persuasão e a diferenciação entre fantasia e realidade, são questões que interferem na oitiva da criança e do adolescente, prejudicando o desfecho processual.

Por não serem fáceis de serem resolvidas pragmaticamente é que a obra ressalta em diversos trechos a importância da capacitação de todos os profissionais que se deparam com a investigação de violência vivenciada pela criança ou adolescente.

Práticas interdisciplinares estão previstas no texto da lei, sendo que a sua plena efetividade na prática é o único caminho de garantir os direitos da criança e do adolescente, respeitando a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Ao utilizar estudos e casos práticos para discutir como a teoria é aplicada na prática, as autoras apresentam como os procedimentos e legislações têm evoluído na proteção das crianças e adolescentes em contextos judiciais. No entanto, não deixam de pontuar os mais diversos desafios enfrentados na implementação de práticas não revitimizantes, como também, as possíveis melhorias através de atualizações legislativas para melhor atender às necessidades das crianças e adolescentes envolvidos em processos judiciais.

 

Notas e referências

REICHENHEIM, Eduardo Michael; MORAES, Leite Claudia. Adaptação transcultural do instrumento Parent-Child Conflict Tactics Scales (CTSPC) utilizado para identificar a violência contra a criança. Cad. de Saúde Pública, 2003, v. 19, n. 6. p. 1701-12. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/BCFTCTRgH7Z7mgm6zSz6j5m/?lang=pt. Acesso em: 07.maio. 2024.

VERONESE, Josiane Rose Petry; ZANETTE, Sandra Muriel Zadroski. Depoimento Especial e Escuta Especializada: sob a ótica do Sistema de Garantias de Direitos da Criança e Adolescente. 1. ed. Florianópolis: Habitus, 2024.

 

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