Por Alexandre Morais da Rosa e Rodolfo Macedo do Prado - 18/03/2016
Em semana “sombria” de julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente quanto à possibilidade de prisão de acusados quando da prolação de decisões de 2º grau e à possibilidade de quebra de sigilo fiscal sem autorização judicial pela Receita Federal, o Poder Judiciário ofereceu uma luz no fim do túnel através do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao editar a Resolução n. 217/2016, de 16 de fevereiro do corrente ano, a qual alterou substancialmente a Resolução CNJ n. 59/2008, que trata das interceptações telefônicas.
Até então, tínhamos puramente o regramento estabelecido pela Lei n. 9.296/96, o qual dispõe que, para que haja quebra do sigilo telefônico, deve haver a convergência de três requisitos, a saber: indícios razoáveis de autoria e materialidade do crime; a prova não puder ser feita por outro meio; e, ser o crime punido, no mínimo, com pena de reclusão (art. 2º).
Entrementes, a prática forense mostrou-nos quadro quase que fantasioso: na grande maioria dos casos: há requerimento genérico por parte do representante do Ministério Público ou da autoridade policial (art. 3º) afirmando, pura e simplesmente, que não há como produzir a prova, existem indícios suficientes e que o crime é apenado com reclusão.
A grande inovação trazida pela Resolução CNJ 217/2016 é justamente quanto à forma que pedido e decisão devem ser formalizados, especialmente quanto à obrigatoriedade de demonstrar o porquê não há possibilidade de produzir a prova por outro meio e quais seriam os indícios suficientes, indicando as diligências preliminares que apontaram que os meios “comuns” são inviáveis. No caso de necessidade de prorrogação, deve ser juntada a integralidade das mídias, bem como as conversas devem ser integralmente transcritas e, por fim, a expressa vedação de que quaisquer informações obtidas a partir da medida cautelar sejam fornecidas a terceiros, trazendo a lógica da cadeia de custódia da informação.
Por mais sutis que possam parecer, as alterações são de grande valia. Quanto à necessidade de comprovar que a prova não pode ser produzida por outros meios, nada mais é do que garantir (ou tentar garantir) que a interceptação seja deferida como exceção absoluta, ou seja, exatamente como deveria ser tratada face à regra constitucional da inviolabilidade do sigilo, como bem é defendida pela Suprema Corte dos Estados Unidos[1], cuja constituição possui garantia fundamental análoga a nossa.
Por outro lado, a obrigatoriedade da demonstração dos indícios suficientes emerge do próprio sistema constitucional, homenageando (ou pelo menos tentando) a paridade de armas entre acusação e defesa e, novamente, tratando a interceptação como exceção à regra.
A necessidade de diligências preliminares ao requerimento de interceptação também aponta no mesmo rumo, tentando obstar o deferimento da quebra de sigilo em denúncia anônima ou em escrito apócrifo, o que tornaria a prova ilegítima. Nada impede, por outro lado, que essas informações advindas de documentos apócrifos, por exemplo, sirvam de base para o início de uma investigação, a qual tenha como produto indícios capazes de autorizar uma medida de interceptação. O que se combate, como bem referendado pelo Supremo Tribunal Federal[2] e pelo Superior Tribunal de Justiça[3], é a impossibilidade de “pular etapas”, partindo direto de denúncia anônima para medida excepcional como a quebra de sigilo.
Já no que tange à obrigatoriedade de transcrição, tal tema é de grande polêmica e discussão entre doutrina e jurisprudência. Ao passo que a Lei n. 9.296/96 dispõe que sempre que a conversa seja gravada, ela deve ser transcrita, a jurisprudência optou por ignorar tal dispositivo, afirmando que apenas as “conversas que interessam ao processo” devem ser transcritas. A nova Resolução, portanto, reforça (ou tenta reforçar) o disposto expressamente na Lei, o que inclusive é garantia do investigado para exercer plenamente sua ampla defesa.
Por fim, a expressa indicação de que ao Magistrado e ao servidor não é lícito oferecer informações que digam respeito à medida cautelar de interceptação telefônica nada mais é do que tentar combater, principalmente, o vazamento de conversas à imprensa o que, inclusive, é crime, com pena de 2 a 4 anos de reclusão, e multa (art. 10º da Lei n. 9.296/96).
Tal mudança de rumos, na tentativa de dar mais racionalidade ao procedimento de interceptações telefônicas, remete-nos à declaração de nulidade da “Operação Trem Pagador” por parte do Tribunal Regional Federal da 1ª Região[4], que nos traz a importante lição de que “é necessário a demonstração real da necessidade da interceptação telefônica, e não por ser mais prático, fácil e cômodo, para investigação”.
Outra importante lição dá-nos Grinover, Fernandes e Gomes Filho[5], que afirmam que as interceptações acabam por ser insidiosa ingerência na intimidade não só do suspeito ou acusado, mas até de terceiros, pelo que só devem ser utilizadas como ultima ratio.
Há de se entender, de uma vez por todas, que a quebra do sigilo das comunicações telefônicas não deve ser utilizada ampla e irrestritamente e, ainda mais, a prova oriunda do procedimento viciado não pode ser utilizada no processo penal, sob pena de malferir todas as garantias estipuladas na Constituição após séculos de lutas e avanços.
No Brasil, ainda hoje, infelizmente primeiro se intercepta, depois se pensa, como bem afirmou Aury Lopes Júnior[6]. É essa realidade que a Resolução CNJ n. 217/2016 tenta alterar.
Ainda é muito distante do ideal, justamente porque se necessita da cooperação de todos os operadores envolvidos em uma medida tão drástica quanto a de violar o sigilo telefônico de qualquer um, porém, com toda certeza, é uma luz no fim do túnel.
Notas e Referências:
[1] Nardone v United States (1939)
[2] HC 108.147/PR, Ministra Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 1º/2/2013
[3] HC 131225/SP, Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 27/08/2013
[4] HC 0049876-36.2012.4.01.0000, Rel. Des. Tourinho Neto, j. em 11.9.2012.
[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 176.
[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal, Saraiva, 2014, p. 634 (versão digital .epub)
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Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).
Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui
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Rodolfo Macedo do Prado é advogado.
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