Réquiem para o livre convencimento motivado

02/09/2016

Por Guilherme Valle Brum– 02/09/2016 

Em texto recentemente publicado na internet[1], Fernando da Fonseca Gajardoni argumenta que o livre convencimento motivado não acabou no novo Código de Processo Civil. Diz ele que “o fato de não mais haver no sistema [no CPC/2015] uma norma expressa indicativa de ser livre o juiz para, mediante fundamentação idônea, apreciar a prova, não significa que o princípio secular do direito brasileiro deixou de existir”. E a razão, segundo o ilustre articulista, seria “absolutamente simples”, pois “o princípio do livre convencimento motivado jamais foi concebido como método de (não) aplicação da lei; como alforria para o juiz julgar o processo como bem entendesse; como se o ordenamento jurídico não fosse o limite”.

No seu entender, pois, o livre convencimento motivado [ao qual, aliás, atribui o duvidoso status de “princípio”] apenas indica que “se reconhece liberdade do julgador para apreciar e valorar a prova, com a condição de que, na decisão, exponha as razões de seu convencimento”. Esse “sistema” seria, então, uma espécie de evolução de outros dois sistemas de valoração da prova no Direito. “O sistema da prova legal ou tarifada, em que a lei já pré-concebe o valor da prova (o que serve e o que não serve para provar), vedando ao julgador a valoração da prova conforme critérios próprios”. E “o sistema do livre convencimento puro, em que o julgador tem total liberdade para apreciar e valorar a prova, não havendo sequer necessidade de expor os motivos que lhe formaram convencimento”.

Defende ainda Gajardoni que “a afirmação de que não há mais no Brasil o sistema do livre convencimento parte de um manifesto erro de premissa”. Isso porque “a boa previsão legal de standards mínimos de motivação no Novo CPC (art. 489, § 1º, do CPC/2015) não afeta a liberdade que o juiz tem para valorar a prova. Autonomia na valoração da prova e necessidade de adequada motivação são elementos distintos e presentes tanto no CPC/1973 quanto no CPC/2015. A regra do art. 489, § 1º, CPC/2015, trata do 2º elemento (motivação), e não do 1º (liberdade na valoração da prova)”. O autor conclui sua linha de raciocínio asseverando que “o fato de haver no Novo CPC regra expressa estabelecendo o dever de respeito aos precedentes (art. 927 do CPC/2015) também não impacta no livre convencimento”, porquanto “a novel regra é de interpretação da lei, não de valoração da prova (que continua sendo livre)”.

Pois bem. Creio que compreendo essa posição de Gajardoni. Pretende ele sustentar que, para interpretar leis, os juízes devem obedecer aos parâmetros de respeito ao precedente, de coerência e de integridade do Direito, mas, para “valorar” a prova, o magistrado é livre. Uma coisa, então, seria interpretar o Direito; a outra, valorar a prova. Nessa última medida, o juiz – livre, leve e solto – poderia “valorar” a prova, desde que fundamentadamente, colocando nas suas razões de decidir essa espécie de raciocínio discricionário/valorativo. O problema aqui é que os jargões, as máximas ou, para usar a expressão do autor, os “princípios” do processo civil, por mais importantes que sejam, não podem pretender dar conta de um problema que é, em essência, filosófico-hermenêutico.

Não preciso sequer ir aos hermeneutas propriamente ditos, como Gadamer ou o conterrâneo Lenio Streck, para defender que o “manifesto erro de premissa” é de Gajardoni e não de quem sustenta “que não há mais no Brasil o sistema do livre convencimento”. Fico com o jusfilósofo e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, que há um bom tempo vem afirmando que “o intérprete interpreta também o caso, necessariamente, além dos textos, ao empreender a produção prática do direito”[2]. Não é possível essa espécie de cisão canônica entre a faticidade (prova) e o Direito (norma). A compreensão não ocorre assim, mesmo que um juiz eventualmente ponha em sua decisão que “agora estou apenas valorando a prova; a partir daí, passarei a interpretar o Direito”. Aliás, sejamos claros: valorar a prova nada mais pode significar do que interpretar.

Gostaria de ilustrar isso com um exemplo: as conhecidíssimas ações por meio das quais se pleiteiam, em nome do direito fundamental à saúde, medicamentos em face do poder público. Pretendo que esse exemplo sirva também para pôr em xeque a afirmação de Fernando Gajardoni de que “o princípio do livre convencimento motivado jamais foi concebido como método de (não) aplicação da lei; como alforria para o juiz julgar o processo como bem entendesse; como se o ordenamento jurídico não fosse o limite”.

Na apelação cível 70047701032, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul utilizou seu “livre convencimento motivado” para afastar a tese do Estado de que poderia haver substituição do medicamento requerido pelo autor da demanda por outro, de eficácia equivalente, fornecido no âmbito do Sistema Único de Saúde. Foi dito pelos julgadores, na ocasião, que  “o destinatário da prova é o juiz, cabendo a ele decidir se a prova pretendida é ou não pertinente”, ou seja, “o julgador é livre para dispensar as provas que entende desnecessárias para o deslinde da causa e, conseqüentemente, para formar seu convencimento”. Por isso, concluíram que “o médico que atendeu ao paciente é quem tem melhores condições de avaliar seu estado de saúde e receitar o medicamento mais indicado para o caso, bem como se é possível ou não a substituição deste”.

Esse entendimento já foi albergado, inclusive, pelo Superior Tribunal de Justiça. No recurso especial 1.173.795, os ministros entenderam que “o Tribunal de origem é soberano na análise das provas, podendo, portanto, concluir pela desnecessidade da produção de provas periciais e documentais. Isso porque, o art. 130 do Código de Processo Civil consagra o princípio do livre convencimento motivado, segundo o qual o Magistrado fica habilitado a valorar as provas apresentadas e sua suficiência ao deslinde da causa”. Ainda acrescentaram que “a tutela judicial seria nenhuma se quem precisa de medicamentos dependesse de prova pericial para obtê-los do Estado, à vista da demora daí resultante; basta para a procedência do pedido a receita fornecida pelo médico”.

Em outras palavras, dispensou-se a prova pericial, desconsideraram-se as alternativas terapêuticas fornecidas pelo Sistema Único de Saúde em face do – vamos chamar assim – “princípio da confiança no médico particular da parte”, o que só foi possível porque os juízes possuem o seu “livre convencimento motivado”, também este um “princípio”. Vejamos agora, para ilustrar uma posição contrária acerca do “livre convencimento” em matéria de direito à saúde, outro precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (agravo de instrumento 70016717910), no qual os decisores assim registraram:

[…] Não há prova alguma de que a autora, realmente, necessite dos medicamentos indicados na inicial, e na posologia prescrita, exceto a opinião de seu médico assistente. Mas, qual o valor dessa prescrição? A única lealdade desse médico é com o seu paciente. Daí, para ele pode pretender o impossível: medicamentos não fornecidos pela rede pública, ou de preço muito elevado, ou sequer ainda aprovados pelo Ministério da Saúde. Também pode ter a preferência por algum laboratório em especial, ou em relação a alguma marca, em detrimento do mesmo fármaco genérico, confeccionado no laboratório estatal.

Julgar a causa antecipadamente ou com tais questões em aberto, não equaciona, máxima vênia, todos os valores constitucionais envolvidos. O Estado do Rio Grande do Sul não se obrigou apenas perante a autora, nem a Constituição o obriga a prestar tratamento de excelência somente a ela, e aquinhoá-la com o impossível, olvidando todos os demais cidadãos. É preciso buscar, simultaneamente, dois objetivos convergentes perante a Constituição: o atendimento ao necessitado e a economia de meios. Esta última é essencial para que, resolvido o caso particular da autora, sobrem recursos para os demais necessitados.

A partir de uma análise crítica desses precedentes, podemos extrair para o presente debate que, seja quando um juiz diz que o receituário do médico particular da paciente é suficiente para o provimento do pedido, seja quando afirma ser necessário prova pericial a fim de verificar a efetiva necessidade do uso do fármaco ou a possibilidade de tratamentos alternativos previstos pelo SUS, ele está, sim, sendo influenciado pelas suas pré-compreensões sobre o alcance do direito constitucional à saúde. Em outras palavras, a norma que regulamenta o caso (a “norma” entendida como o resultado da interpretação) e que, portanto, iluminará a decisão sobre a controvérsia probatória decorre de uma interpretação conjugada entre, em termos vulgares, a realidade e a lei. O “livre convencimento”, pois, não está presente apenas no exame da prova em si, como se fato e Direito pudessem ser interpretativamente cindidos.

Disso tudo decorre que, também em relação à análise da prova, o magistrado está adstrito ao dever de respeito à coerência e à integridade do Direito, positivado pelo Novo Código de Processo Civil (artigo 926)[3], o que afasta qualquer convencimento livre, ainda que motivado. Claro, pois de nada adianta exigirmos que o convencimento deve ser motivado, se ele for livre, discricionário. Mesmo motivado, permanecerá insindicável. Insisto, portanto, na necessidade de que o convencimento quanto à prova e quanto ao Direito (admitindo, por hipótese apenas, que sejam cindíveis) respeite a coerência e a integridade do Direito, no sentido que a tradição (autêntica) dá a esses standards (a qual, por óbvio, não os resume a um mero “respeito aos precedentes”). Por isso, recorro aqui, ainda que brevemente, a Neil MacCormick e a Ronald Dworkin.

Em outra ocasião[4], ao trabalhar com esses autores, cheguei à conclusão de que a coerência em MacCormick está muito próxima da integridade em Dworkin. Isso dá indícios de que há, sim, uma tradição jusfilosófica em torno desses termos, a impor ao intérprete considerá-la (essa tradição) na interpretação do dispositivo do NCPC que os positivou. A exigência de coerência/integridade na deliberação judicial requer do juiz que exerça uma atitude interpretativa do conflito que lhe é posto, esforçando-se para enxergar o material com que vai trabalhar (Constituição, leis, precedentes, fatos, provas) como um conjunto harmônico que deve expressar um sistema coerente de justiça, ligado por princípios que proporcionam essa integridade.

Em suma, formular os princípios de um sistema jurídico envolve a tentativa de dar coerência a esse sistema, expressando seus valores justificatórios e explanatórios à luz do caso concreto, de sua específica faticidade. A função do princípio, nessa contextura, será a de determinar a faixa legítima de considerações justificatórias a serem apresentadas pelo julgador. Não fornecerá, pois, sozinho, uma resposta conclusiva. Daí ser impossível afastar a prova do dever de respeito à coerência/integridade do Direito. Segundo esse dever, o juiz faz uma investigação sobre os princípios que, na medida do possível, dão sentido a um conjunto de normas jurídicas e precedentes candidatos a incidir na espécie, de modo a estabelecer uma visão coerente de determinado campo do Direito. Para tanto, a faticidade é inafastável, seja para a descoberta dos princípios que incidirão no caso, seja para a fixação do alcance do argumento coerido ao restante do ordenamento jurídico. É uma atividade que lembra muito o círculo hermenêutico.

À evidência, não é possível tratar, neste pequeno espaço, de um assunto tão difícil como o da coerência/integridade do Direito, que toca o âmago da legitimação do agir do Poder Judiciário, um tema deveras complexo de filosofia do Direito. Mas é possível colocarmos em dúvida a afirmação de que o “princípio do livre convencimento motivado” se mantém atualmente no Direito brasileiro. Não posso, com todo o respeito, concordar com Gajardoni, quando afirma que “o fato de não mais haver no sistema [no CPC/2015] uma norma expressa indicativa de ser livre o juiz para, mediante fundamentação idônea, apreciar a prova, não significa que o princípio secular do direito brasileiro deixou de existir”.

Ele mesmo refere que o artigo 118 do CPC de 1939 já estabelecia que “na apreciação da prova, o juiz formará livremente o seu convencimento, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos” e que, “no moribundo, mas ainda vigente, CPC de 1973, o trato da questão não é diferente”. Precisamente por isso, por estarmos falando de códigos antigos, “moribundos”, temos de ter cuidado para não reproduzirmos uma tradição inautêntica (para dialogar com Gadamer). Pelo menos desde a redemocratização do País, cujo marco jurídico foi a Constituição de 1988, não parece mais possível sustentarmos que a carga de poder embutida em todo ato judicial possa ser livre, discricionária. Há balizas democraticamente (im)postas para tanto (coerência, integridade e isonomia são apenas algumas delas). Oskar von Bülow e a Escola do Direito Livre, que apostavam em um protagonismo judicial quase ilimitado, tiveram sua importância e sua vez. O “livre convencimento”, ainda que motivado, insere-se nessa tradição, a qual se tornou, porém, inautêntica, sendo dever do intérprete abandoná-la. O Código de Processo Civil de 2015 fez a sua parte. Quanto a nós, entoemos finalmente o réquiem.


Notas e Referências:

[1] http://jota.info/o-livre-convencimento-motivado-nao-acabou-no-novo-cpc.

[2] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2005.

[3] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

[4] BRUM, Guilherme Valle. Uma teoria para o controle judicial de políticas pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.


Guilherme Valle Brum. Guilherme Valle Brum é Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/DF). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Pesquisador do GP e Rede de Pesquisa CNPQ “Estado e Constituição”. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. .


Imagem Ilustrativa do Post: Requiem // Foto de: Maxime B // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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