Representatividade política das mulheres no Brasil

17/06/2016

Por Fernanda Donadel da Silva, Aline Amábile Zimmermann e Isis Regina de Paula - 17/06/2016

Ultrapassar a fronteira da esfera privada, aqui considerado o ambiente doméstico, para alcançar a ocupação dos espaços públicos e da política ainda é um desafio que as mulheres enfrentam no Brasil. A exclusão das mulheres de um espaço decisório é, em grande parte, resultado da pretensa universalidade dos direitos e garantias fundamentais, que atribui uma falsa ideia de igualdade: “O fato de que os valores universais sejam, na realidade, o desdobramento das perspectivas de alguns indivíduos e de que esses indivíduos tenham sido, historicamente, masculinos, brancos e proprietários coloca uma série de questões para a crítica democrática.”[1]

Neste contexto, sabe-se que o acesso aos cargos políticos de maior autoridade demanda tempo e recursos. A aquisição destes depende de uma real autodeterminação dos cidadãos e cidadãs, que, no mundo concreto, não se verifica. Ainda que se faça um recorte de classe e se considere somente a possibilidade de acesso das mulheres cis, brancas, acadêmicas, já com uma posição consolidada no mercado de trabalho, lidaremos com a sub-representação feminina na política. Se, por outro lado, fosse analisada a participação de todas as mulheres, seguramente os percentuais seriam ainda mais preocupantes, revelando uma desigualdade muito mais profunda ao evidenciar as distinções de cor, etnia, orientação sexual e identidade de gênero.

Uma das primeiras lutas das mulheres quanto à representatividade foi, de fato, o direito ao voto. Na elaboração da Constituição de 1891, ocorreram diversos debates no legislativo, que visavam garantir o direito ao voto pelas mulheres. Entretanto, nenhum projeto de lei foi aprovado, e alguns nem foram discutidos. O texto final da Constituição de 1891, no seu artigo 70, por exemplo, previa que “são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, que se alistarem na forma da lei”. Logo, não apenas houve ausência acerca do direito ao voto feminino, como também foi vetado.

Em 1919, Leolinda Daltro conseguiu apresentar o projeto de lei Chermont, que dispunha sobre a capacidade eleitoral da mulher. Em decorrência da grande resistência política frente à proposta legislativa, foi adiada a discussão para 1921. Contudo, não foi convertido em lei devido à falta da segunda votação.

Com base no texto da Constituição de 1927, que não previa vedações de eleitoras mulheres, o governador do Estado do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, elaborou, junto com os deputados estaduais, a Lei Ordinária Estadual n° 660/1927 que garantiu o direito ao voto pelas mulheres. Com essa lei em vigor, Celina Guimarães Viana foi a primeira mulher eleitora registrada no Estado do Rio Grande do Norte.

Na sequência, em 1928, foi eleita a primeira mulher a ocupar cargo político, Luísa Alzira Teixeira Soriano, para o cargo de prefeita da cidade de Lajes, também no Estado do Rio Grande do Norte, antes mesmo do direito das mulheres ao voto em 1932. Já em Santa Catarina, no ano de 1934, Antonieta de Barros, filha de escrava liberta, foi a primeira deputada negra a ser eleita[2]. Somente após setenta e nove anos desde a conquista ao voto, o cargo de presidência da República Federativa do Brasil foi empossado por uma mulher, com Dilma Rousseff, devido às eleições de 2010.

Ainda assim, percebe-se que a luta pelo reconhecimento da mulher como sujeito de direitos políticos ainda não foi superada por ausência da concretude do que já é reconhecido no ordenamento jurídico, e o espaço decisório é ocupado, assim, por uma maioria inconteste de homens[3]. Os dados numéricos corroboram para esse entendimento quando trazem que, atualmente, embora as mulheres constituam a maior parte da população brasileira (52%)[4], são apenas 10% do total de parlamentares da Câmara dos Deputados e ocupam somente 16% das cadeiras do Senado, sendo que o Brasil ocupa a 155ª posição no ranking de representatividade das mulheres no Legislativo[5]. É alarmante que metade da população brasileira não tenha representatividade política significativa: a desproporção quantitativa deve servir, ao menos, como base para reflexão sobre esse panorama.

Essa desigualdade não pode ser simplesmente encarada como “natural” ou consequente das relações de poder a que estão expostos todos e, principalmente, a que se subordinam todas. Fundamental que seja avaliada como construção social, realidade que pode e deve ser criticada com o objetivo de possibilitar uma mudança satisfatória.

Não se podem ignorar as circunstâncias do âmbito privado ao se tratar de representatividade política. A divisão sexual do trabalho ainda é uma realidade, e os estereótipos de gênero sobrecarregam as mulheres com jornadas duplas e responsabilidades desproporcionais na manutenção da casa, criação dos filhos e cuidado da família. Toda essa dinâmica familiar reflete na esfera pública e restringe a participação efetiva das mulheres na vida política[6].

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de discriminação contra as mulheres (CEDAW), aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1979, foi ratificada pelo Estado brasileiro, sendo promulgada pelo Decreto n. 89.460, de 1984, revogado pelo Decreto n. 4.377, de 2002. Com o objetivo de orientar e apresentar subsídios para o efetivo exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais pelas mulheres, em igualdade de condições com o homem, principalmente por meio de políticas públicas realizadas pelos Estados signatários. Dentre elas, destaca-se que a adoção pelo Estado de “medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, [...]; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados”[7].

Enquanto o percentual de mulheres nas esferas políticas for o apresentado, não se pode considerar que foram alcançados os mencionados objetivos de igualdade. A baixa representatividade colabora com a manutenção dessa estrutura social que reserva à mulher o espaço doméstico, excluindo-a da discussão de agendas que influenciam na sua autonomia pessoal e no espaço político.

A ausência de mulheres – aqui colocada como figura dentro das minorias – nos cargos públicos pode também ser vista como fator da crise política representativa atravessada atualmente pelas democracias liberais, cenário em que o Brasil se insere. Dentro dessa lógica, John Burnheim, professor na Universidade de Sydney, sugere que os interesses são mais bem protegidos quando os representantes compartilham a mesma experiência e condições sociais de seus representados[8]. Ou seja, decisões que sejam tomadas por mulheres para mulheres serão mais fortemente legitimadas dentro da sociedade, o que fomenta, por conseguinte, uma real efetivação de direitos e políticas igualitárias no espaço democrático.

Fica claro que o modelo de democracia a ser perseguido, para que se superem essas contradições, passa por uma transformação da perspectiva de uma política de ideias para uma política de presença nos espaços públicos. Esse movimento, no âmbito brasileiro, ganha corpo em propostas legislativas que visam uma reforma política para o aumento da participação feminina nas casas parlamentares. No Senado, existem projetos de lei que buscam desde aumentar porcentagem do fundo partidário para campanha de mulheres (PLS 112/2015, 413/2015), até outros que visam à divisão do horário eleitoral (PLS 232/2013 e PLS 343/2013) e ao aumento para 50% das cotas de candidaturas de mulheres (PLS 389/2014).

Dentre todos os projetos, o Projeto de Emenda Constitucional n. 98/2015 chama atenção pela sua aprovação em primeira votação no Senado em setembro de 2015. A PEC trata de cotas mínimas de gênero para um aumento gradual de ocupação pelas mulheres em cadeiras nas Câmaras de Vereadores, nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional. Essa política possuiria um prazo final de três legislaturas, aplicada por um percentual crescente de 10%, 12% e 16% respectivamente. Atualmente, ainda se espera a aprovação na Câmara dos Deputados, em dois turnos, e o segundo turno de votação no Senado, tendo obtido admissibilidade pela relatora da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)[9].

Nesse sentido, a premissa de igualdade adotada por essas medidas de discriminação positiva partem de um viés constitucional. Isso decorre da leitura do que é estabelecido pelo artigo 3º da Constituição Cidadã de 1988 que objetiva fundamentalmente construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar desigualdades sociais e promover o bem de todos sem preconceitos de qualquer origem. Atenta-se para o tão reproduzido princípio da igualdade aristotélico de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.

Segundo Boaventura[10], as pessoas têm direito à igualdade quando a diferença as inferioriza e têm o direito à diferença quando a igualdade os descaracteriza. Por essa óptica, a importância de cotas na política para mulheres se dá pelo fato de que esse grupo social se constitui como uma minoria política, o que leva a uma invisibilidade no Parlamento de muitas pautas políticas e sociais que as tocam[11] e a retrocessos gritantes na defesa de seus direitos[12].

Flavia Biroli e Luis Felipe Miguel expõem o acesso aos espaços decisórios em “degraus” da presença política: População - detentores de direitos políticos - interessados em participar da disputa política - candidatos - eleitos.[13] Considera-se aqui a PEC 98/2015 como um primeiro passo para o acesso àquele último nível, que seria a quantidade de mulheres eleitas.

A inclusão de mais mulheres no âmbito político é de extrema importância, mas, por si, as cotas não supririam a ausência de representatividade. Faz-se necessária uma mudança no padrão masculino do espaço público e a conscientização da importância do papel da mulher na política, a fim de promover amparo para a manutenção dessa inclusão e dar real visibilidade aos interesses de mais da metade da população brasileira.

De outro viés vinculado, vê-se que a participação efetiva das mulheres na vida política é imprescindível para barrar retrocessos legislativos e promover avanços às pautas que as concernem. E, para tanto, encontrar caminhos que as possibilitem ocupar ativamente o espaço político se apresenta como primordial para o exercício pleno da cidadania.


Notas e Referências:

[1] MIGUEL, Luis Felipe; Biroli, Flávia (organização). 2013.  Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte. P. 38.

[2] http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2012/02/mulheres-na-politica

[3] + Mulher na política. Mulher tome partido! Elaborada pelo Senado Federal, Procuradoria Especial da Mulher, Câmara dos Deputados, Procuradoria Especial da Mulher, Bancada feminina da Câmara dos Deputados. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-livreto-mais-mulheres-na-politica>. Acesso em junho 2016.

[4] BRASIL. Mulheres são maioria da população. Disponível em  <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/03/mulheres-sao-maioria-da-populacao-e-ocupam-mais-espaco-no-mercado-de-trabalho. Acesso em junho 2016.

[5] Disponível em  <http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm>.

[6] Destaca-se a relação entre as esferas pública e privada como um dos eixos que mantêm a desigualdade na representatividade política sob a perspectiva de gênero.

[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm

[8] BURNHEIM, John. Is Democracy Possible? Cambridge: Polity Press, 1985.

[9] http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/09/senado-conclui-aprovacao-de-cota-para-mulheres-no-legislativo.html

[10] Boaventura de Souza Santos apresentou esta ideia num painel na 3ª edição do Fórum Social Mundial como sendo um dos seus princípios.

[11] Desigualdade salarial continua e aumenta conforme escolaridade entre homens e mulheres. <http://economia.estadao.com.br/noticias/sua-carreira,diferenca-salarial-entre-homens-e-mulheres-sobe-conforme-escolaridade,1841086>

[12] PL 5069/2013: Tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto. <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565882>

[13] MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Setembro/Dezembro 2010. Práticas de gênero e carreiras políticas: vertentes explicativas. Revista Estudos Feministas. P. 653-679.


Fernanda Donadel da Silva. Fernanda Donadel da Silva é Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, Advogada, pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC. . .


Aline Amábile Zimmermann. Aline Amábile Zimmermann é Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” e membra do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular (SAJU), ambos da mesma instituição de ensino. .


Isis Regina de Paula. Isis Regina de Paula é Acadêmica do Curso de Graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora do Projeto de pesquisa e de Extensão "Direito das Mulheres" da UFSC", estagiária da Procuradoria Federal Especializada do INCRA/SC. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Marcha das Mulheres - Belo Horizonte - 08/03/2013 // Foto de: Circuito Fora do Eixo // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/foradoeixo/8540912318

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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