Repetição e expansão do monitoramento ilegal na Sociedade de Controle

31/07/2024

O monitoramento ilegal impacta o real, a cada dia que passa, estruturando-se enquanto regularidade (de ocorrência regular) na formação social (ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, a maior parte do conteúdo monitorado é ignorado, imprimindo algum efeito de invisibilidade às novas tecnologias).

Enquanto      se         repetem,          os        monitoramentos inscrevem       novas  diferenças (quantitativas e qualitativas), e se expandem quase que desenfreadamente.

Na quantidade, somos amassados por um volume massivo de dados tratados. Na qualidade, novas tecnologias e dinâmicas de funcionamento seguem sendo incorporadas de modo frequentemente obscuro e arbitrário.

Escândalos nacionais de monitoramento e violações envolvendo dados pessoais tornaram-se comuns. Nesse palco, parte do conteúdo visível é naturalizado, mas também cresce a indignação e resistência dos cidadãos frente a abusos com seus dados pessoais.

No setor público, um dos últimos escândalos nacionais amplamente divulgados na mídia, foi o dos dispositivos identificados para "roubar dados" na sede do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em Brasília (26 de junho), facilitando crimes contra beneficiários e seus familiares. A notícia foi divulgada em uma série de canais e portais digitais, como CNN Brasil e G1[i]. Isso, após diversas notícias envolvendo vazamento de dados, golpes contra vítimas idosas, e mesmo sanção do INSS pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais, a ANPD.

Especialmente no período pandêmico e adiante, com a crescente digitalização da sociedade e a formação de um tecnocapitalismo, tornou-se comum no Brasil que o segurado saiba de sua aposentadoria, primeiramente a partir de terceiros com acesso a seus dados (praticando golpes variados), e só depois a vítima descobre oficialmente, em contato com o próprio INSS e órgãos oficiais.

Esse é um exemplo institucional, com a identificação de dispositivos ilegais para "capturar dados" em contexto de operação (com busca dos responsáveis, compreensão da dinâmica dos fatos etc.), no qual o poder punitivo entra em ação, elevado à dado inescapável da realidade.

E o faz, mobilizando o discurso de segurança dos cidadãos que lhe legitima (e ostentando conquistas), que mais tem a ver com a perpetuação dessa formação social do que com a proteção das pessoas já lesadas por vazamentos e más práticas institucionais com dados.

Inclusive, a se verificar e comprovar pelo enorme desamparo dessas vítimas, pessoas que o poder punitivo interpreta como dados (sacrificiais) necessários aos processos de criminalização, mas a seguir afastados e negligenciados. No que Zaffaroni (2012) insiste, sobre escutarmos as palavras dos mortos, bem como, o som dos massacres em curso, em nome da paz e do progresso.

Pelas lentes da Criminologia Crítica em sentido amplo (marcadas por diferentes bases teóricas, mas unidas na superação dos discursos legitimantes do poder punitivo) e Análise de Discurso Francesa (materialista) a partir de Pêcheux (2014), é importante retratar o papel real do poder punitivo na farra de dados e monitoramentos ilegais, desvelando seu funcionamento, intrinsecamente dependente de violações aos direitos humanos. Abrangente das violações a partir de dados pessoais e práticas lesivas com dados.

Seguindo essa direção, é inevitável ilustrar que o poder punitivo é protagonista, não como salvador, mas como representante majoritário de más práticas com dados (descrição de funcionamento que contrasta com os discursos oficiais e as promessas constitucionais).

Cada nova operação (re)legitima a passagem livre e irrestrita para se promover uma verdadeira farra com os dados dos cidadãos (nome atrelado à razão de Estado).

O poder punitivo, por vezes combate e desfaz monitoramentos da (e na) sociedade de        controle, desterritorializando-os,          mas     concomitantemente reterritorializando-os e reconfigurando-os em sua permanência.

Ou dito de outro modo, o encaixe Estado-mercado (aqui pressupondo princípio da autoridade e da punição, materializados no poder punitivo), até pode apresentar-se como herói de uma batalha pela legalidade, mas sua existência e repetição, diariamente manifestadas nas práticas do cotidiano, indicam uma posição-sujeito muito distinta da apresentada na ideologia e moral estadocêntrica dominantes (onde a verticalidade e o poder das autoridades garantiria uma vida melhor para todos, livres de violações de direitos e garantias).

Como parte da sociedade de controle abordada em Pires (2018), como continuidade do historiado por Anitua (2010), convém considerar que no contexto das sociedades digitais e centralidade dos dados, as violações de direitos em regra abarcam violações de dados (em sentido amplo) e com dados (as próprias "provas" passaram a ser digitais), e para ilustrar o papel dominante do Estado acompanhado do poder punitivo, cumpre trazer à luz a dissertação de Cordeiro (2021), que ilumina como o Estado é consumidor de tecnologias de monitoramento contra os cidadãos[ii], aplicadas de modo obscuro no cenário da persecução criminal, com ferramentas digitais, softwares e serviços inacessíveis aos cidadãos comuns (e suas defesas).

Nesse embate tecnológico, alguns buscam a prometida paridade de armas para a preservação da ampla defesa, o que retroalimenta e expande a rede de controles e monitoramentos.

Sabe-se que não há paridade e igualdade de ferramentas e alcance diante do poder punitivo estatal, viciando as regras do direito penal liberal de garantias, ou direito penal constitucional, como parte dos juristas usa (a exemplo de Zaffaroni). Mas, dentro disso surge a questão: exigir a participação igualitária acerca das ferramentas de monitoramento (de violações sistemáticas de direitos), ou pugnar por sua ilegalidade, e mais necessariamente, sua abolição? A Defesa deve ter acesso igualitário a ferramentas governamentais inconstitucionais, ou não seria o caso de atuar contra a sua forja?

Ambas as vias são difíceis, árduas e inglórias, e não parece haver saída simples enquanto os Estados forem consumidores de ferramentas de violações (ainda que ocasionalmente, apresentando-se como salvadores).

A entrada do poder punitivo e suas implicações é desastrosa na afetação da dignidade das pessoas. O desafio é inventarmos estratégias de liberdade (BATISTA, 2020), incompatíveis com a reprodução das tecnoferramentas de violação, hoje, de um capitalismo digital, em que dados são materialidades caras, integrando as novas condições de reprodução de riquezas.

Na atualidade do século XXI, ao invés da dualidade aprisionamento versus monitoramento, tem-se um somatório, onde as violações de direitos com dados pessoais são multiplicadas em nome do combate a essas violações.

É importante que as agências oficiais atuem contra más práticas com dados, mas não devemos ser ingênuos a ponto de olvidar o papel estrutural central existente, bem como, a ponto de esquecer o funcionamento ideológico manifestado e reproduzido por seus porta-vozes, há décadas demonstrado pela atualíssima crítica criminológica latino-americana dos que atuam e pesquisam nesse campo, acompanhando e especialmente resistindo à expansão dos controles e violações com dados, uma necessária missão dos juristas do presente (apesar da complexa contradição que lhes liga à forma-jurídica).

 

Notas e referências:

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias de los pensamientos criminológicos. Prólogo E. Raúl Zaffaroni. 1. ed. 2ª reimp. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2010.

BATISTA, Vera Malaguti. Estratégias de liberdade. In: PIRES, Guilherme Moreira (Org). Abolicionismos: vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias. Florianópolis: Habitus, 2020.

CORDEIRO, Patrícia. Ministério Público e o Tribunal do Júri: análise da prática de vigilância para a composição do Conselho de Sentença. 2021. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Letras) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel - PR.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

ZAFFARONI,    Eugenio    Raúl.   La   Palabra   de   los   Muertos:                       Conferencias  de

Criminología Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2

[i] As menções podem ser acessadas, respectivamente, em:

<https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/dispositivos-para-roubo-de-dados-sao-encontra dos-na-sede-do-inss-em-brasilia/> Acesso: 25 de jul. 2024.

<https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2024/07/11/inss-aciona-pf-apos-descobrir -dispositivos-de-espionagem-instalados-clandestinamente-no-edificio-sede-em-brasilia> Acesso: 25 de jul. 2024.

[ii] Registre-se nesse contexto, como exemplo da relação monitoramento-Estado: "no informe intitulado Hacking Team na América Latina, que vários países da América Latina, inclusive o Brasil, adquiriram licenças para utilizar o software espião Remote Control System (RCS)3 . Destaca-se que a empresa Hacking Team, proprietária desse software, apenas negocia com governos, sendo que sua principal propaganda é no sentido de oferecer mecanismos de combate ao crime. Sobre isso, verifica-se que, no decorrer da história, os sistemas de controle e vigilância vão se aprimorando à luz da justificativa de combate ao crime. Mas, ao mesmo tempo, realizam atos incompatíveis com o sistema legal, que expõem como a missão oficial de combate ao crime não caracteriza o cerne da expansão dos controles, que têm relação também com o atendimento de interesses nacionais e internacionais do capital, sem que, para isso, seja determinante a classificação jurídica do que é ou não um crime." (CORDEIRO, 2021, p. 11-12). Podemos verificar, concretamente, que não constitui novidade alguma o fato de países atuarem como consumidores de serviços de monitoramento e espionagem ilegal, de modo que é importante não nos ludibriarmos com falsas promessas do poder punitivo de combate a crimes com dados obtidos ilegalmente, alinhado às novas demandas de ordem, cada vez mais mobilizadas por autoridades menores, que também adquirem suas ferramentas de monitoramento e controle, em constante aprimoramento e expansão. A sociedade de controle é uma realidade dependente de dados, pouco importando à razão de Estado, a classificação jurídica dos fatos realizados em seu nome.

 

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