Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi
Não é novidade que a Tutela Jurisdicional é função atribuída a terceiro imparcial como forma de aplicar o direito de maneira imperativa, reconhecendo/efetivando/protegendo circunstâncias jurídicas deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e com vocação para tornar-se indiscutível[1].
Neste sentido, o Estado, com o objetivo de garantir a paz social avocou para si a solução monopolizada dos conflitos pela violação à ordem jurídica, limitando a autotutela. Em consequência, concedeu ao Poder Judiciário a função de solucionar os mencionados conflitos mediante a aplicação do direito ao caso em concreto, o que se faz mediante o processo[2].
Partindo-se desta premissa, o processo foi alçado à condição de direito fundamental (Constituição da República, artigo 5º, inciso LIV), de modo que necessita da organização do sistema com procedimentos capazes de viabilizar a efetiva tutela jurisdicional[3].
E para que tal dinâmica ocorra, necessária a criação de um Estado ideal de proteção de direitos, que possua a condição de criar elementos capazes de promover a proteção (função integrativa), guiar a interpretação de normas (função interpretativa), bloquear as normas incompatíveis com o sistema (função bloqueadora) e otimizar o alcance do ideal de protetividade (função otimizadora)[4].
E todas estas questões juntas, passam, necessariamente, por um controle exercido pela Jurisdição mediante procedimento formado em contraditório, de modo que, ao final resultará em uma decisão.
Tal situação é própria dos sistemas jurídicos ocidentais, atualmente consistentes em civil law e common law.
Embora o sistema jurídico brasileiro esteja enquadrado no arquétipo da civil law, principalmente por sua tradição jurídica romano-germânica, importante esclarecer a hibridez de sua Constituição, principalmente em razão dos modelos de controle de constitucionalidade adotados[5].
Mas independente de qual seja o sistema jurídico adotado, o ponto nevrálgico pretendido por ambos é, sem dúvida, a busca pela segurança jurídica, consistente no respeito à igualdade e previsibilidade das decisões judiciais[6].
E foi justamente pensando na necessidade de se estabelecer uma premissa de igualdade de todos perante o direito com a obrigação de se pautar a previsibilidade das decisões, que o Código de Processo Civil de 2015 adotou o chamado sistema de precedentes.
Precedente consiste numa razão de decidir constante de uma decisão pretérita como forma de subsidiar a decisão presente, servindo, então, como o discurso de fundamentação e justificação[7].
Ao basear-se unicamente no precedente, o julgador concretiza um resultado particular independente de acreditar ser ele o correto, mas acredita ser ele ou não determinante para o resultado anterior[8].
Logo, quem firma um precedente não apenas registra como passará a se comportar diante de novos casos, mas assume um importante compromisso em relação ao que fazer no futuro[9]
O perfil do Judiciário brasileiro, há algum tempo, é no sentido de que aos órgãos ordinários cabe o múnus pela solução de controvérsias, enquanto às cortes de superposição compete a uniformidade do sistema jurídico[10].
Ou seja, as diversas decisões proferidas pelos juízes singulares, cujas opiniões são diversas, concentram-se com a subida aos tribunais ordinários, abolindo-se nos órgãos supremos, que definem a última palavra sobre a questão de direito[11].
É visível, portanto, que o Código de Processo Civil não inovou quanto à matéria, mas apenas regulamentou questão há muito utilizada no ordenamento jurídico brasileiro, de modo a tornar mais previsível a resposta jurisdicional.
Dessa forma, o objetivo consistente na segurança jurídica (igualdade e previsibilidade das decisões) somente é possível através de um regular sistema de precedentes.
Neste sentido: “entender os precedentes requer uma explicação de como os eventos passados e ações presentes passam a ser vistos como conectados”[12].
Portanto, precedentes são pontos de partida e não na chegada.
A par de todas essas questões, o Código criou hipóteses de decisões que devem ser observadas quando da resposta jurisdicional, cujo objetivo, claramente, é dar concretude a uma nova conotação jurídica formalizada pelo direito brasileiro[13].
Agora, é importante saber se apenas os casos descritos no artigo 927 do CPC possuem característica de precedentes formalmente vinculantes (taxatividade) ou se é possível ampliar o rol lá elencado.
Em conformidade com a premissa básica de um sistema de precedentes, as disposições contidas no artigo 927 não ficam restritas ao caso concreto ou ao momento histórico em que foram proferidas, mas se estendem a outros casos em que discute-se tema de idêntica natureza
A par disso, é possível ampliar o espectro de abrangência do artigo 927 do CPC, principalmente em razão da possibilidade de se valer da via da reclamação como forma de impor à aplicação da tese jurídica formada.
E o corte estabelecido pelo legislador quando da formulação de um sistema de precedentes – e isso decorre da própria interpretação sistemática –, foi a possibilidade de se valer da via da reclamação como forma de impor à aplicação da tese jurídica formada.
O que se busca esclarecer é que para se chegar a uma conclusão acerca de qual tese jurídica pode ser considerada um precedente obrigatório, imperioso se faz analisá-la sob a perspectiva da reclamação.
Isto é, somente deve ser considerado precedente obrigatório aquele cuja inobservância pelas instâncias subordinadas torna possível o manejo da reclamação para garantia de sua autoridade.
Exemplo disso é a hipótese elencada no artigo 988, § 5º, inciso II, do CPC[14].
Logo, sob a perspectiva da reclamação é possível constatar quais as hipóteses devem ser consideradas/classificadas como precedentes formalmente vinculantes no sistema jurídico brasileiro.
Para se chegar a uma conclusão acerca de qual tese jurídica pode ser considerada precedente na forma do artigo 927, sob um aspecto mais amplo, imperioso analisá-la sob a ótica da reclamação.
Importante acentuar que a reclamação teve sua gênese na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como decorrência dos chamados “poderes implícitos”, conferidos com o objetivo de dar efetividade às próprias decisões prolatadas pelo Tribunal, bem como garantir sua competência.
Por assim dizer, “[...] a outorga de poder para a realização de determinada finalidade importa no deferimento, implícito, dos meios necessários à realização dos fins que lhe foram atribuídos”[15].
Neste mister, a reclamação vem a ser um mecanismo utilizado para que o Tribunal possa garantir a eficácia da sua jurisprudência e preserve sua competência.
Em razão disso, o cabimento da reclamação desponta como medida específica para garantir a autoridade das decisões dos Tribunais Superiores, pelo que imanente ao próprio papel político-institucional (implied powers), mas, principalmente, por se tratarem de Cortes de Precedentes[16].
Dessa forma, a reclamação assume um protagonismo no atual cenário processual, considerando a ampliação criada pelo CPC de 2015, ressaltando, sobretudo, seu papel mais importante, efetivar a unidade do direito[17].
Não bastasse isso, e aqui pauta-se o debate acerca da repercussão geral, já que possível o manejo de reclamação para garantia da autoridade das decisões proferidas sob a sua sistemática, também revela o seu caráter constitucional, reforçando sua qualificação como precedente obrigatório.
Como dito, a repercussão geral possui previsão constitucional, mais especificamente no artigo 102, § 3º, da Constituição da República, e é responsável por estabelecer uma filtragem ao recurso extraordinário, tornando possível a análise de seu mérito, na hipótese de verificar-se a presença de questão constitucional[18].
Portanto, mesmo que o legislador não tenha estabelecido os acórdãos firmados em sede de repercussão geral no rol do artigo 927, o relevante valor constitucional somado à possibilidade de manejo da reclamação como forma de garantia da decisão, além do status de norma fundamental do artigo 926, o qualificam como precedente obrigatório no sistema de precedentes adotado pelo direito brasileiro.
Sendo assim, a repercussão geral ganha um importante protagonismo na luta pela manutenção da unidade do direito com o advento do CPC de 2015, tendo em linha de conta que os acórdãos proferidos sob a sua sistemática, sobretudo em virtude da possibilidade de manejo da reclamação, tem-se que necessária sua compreensão como precedente obrigatório.
Neste sentido, percebe-se, pela amplitude sistêmica criada pelo Código de Processo Civil de 2015, a possibilidade de interpretar os acórdãos proferidos sob a sistemática da repercussão geral como precedentes obrigatórios ou formalmente vinculantes, ampliando o espectro de aplicação do rol do artigo 927.
Notas e Referências
[1] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 14ª ed. rev. e atual. Salvador: Editora JusPodivm. 2012, p. 95.
[2] FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 53.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 11-12.
[4] ÁVILA, Humberto. O que é “Devido Processo Legal”?. RePro 163/50-59. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
[5] ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2ª ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 23.
[6] ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores no direito brasileiro. 4ª ed. rev., atual. e ampl. De acordo com o CPC de 2015 e a Lei 13.256/2016. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 74.
[7] BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 190.
[8] SCHAUER, Frederick. Precedente. In: DIDIER JR., Fredie, (org.). Coleção grandes temas do novo CPC: precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 55.
[9] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 292-293.
[10] MITIDIERO, Daniel. Por uma reforma da justiça civil no Brasil: um diálogo entre Mauro Cappelletti, Vittorio Denti, Ovídio Baptista e Luiz Guilherme Marinoni. RePro 199. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[11] CALAMANDREI, Piero. La casacion civil: bosquejo general del instituto. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1945, t II, p. 93.
[12] DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: University Press, 2008, p. 1.
[13] Código de Processo Civil (CPC), artigo 927.
[14] Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
- 5º É inadmissível a reclamação:
[...]
II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.
[15] GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz et al. Execução e Recursos: Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017. p. 895.
[16] MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ Enquanto Corte de Precedentes. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2014. p. 162.
[17] “Temos então que a reclamação pode servir de vetor à reanálise do precedente qualificado, sob o pressuposto de que o mesmo não adere mais ao tema respectivo, na medida em que superado pelas circunstâncias atuais” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz et al. Execução e Recursos: Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017. p. 908).
[18] WELSCH, Gisele Mazzoni. Legitimação democrática do Poder Judiciário no novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 102-103.
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