Repensando a ideia de agressor nas relações privadas – Por Tamires de Oliveira Garcia

24/03/2017

Coordenador: Marcos Catalan

Recentemente uma situação vivenciada em âmbito doméstico foi levada a público em circunstâncias que poderiam envolver violência contra uma mulher gráfica. No casal, figurava um cantor sertanejo famoso. A companheira do cantor registrou boletim de ocorrência afirmando que foi agredida com chutes durante uma discussão. Posteriormente, veio a público uma carta desta mesma mulher, dizendo que o cantor não a tinha machucado, mas que tentou contê-la em uma briga com a sogra, afirmando também que viu na polícia uma forma de se sentir segura.

Recente debate em torno da publicidade dada a alguns casos problematiza como a espetacularização de processos criminais gera danos a direitos fundamentais e ao estado de direito.[1] De outro modo não repercutiu o caso, em que a notícia sobre uma possível agressão de um cantor famoso se espalhou pela mídia e culminou no acompanhamento popular do caso.

Não se pode deixar de dizer que evoluiu o jornalismo no Brasil ao tratar do caso, na maior parte dos veículos, sem usar os termos “violência passional” - que durante muito tempo foi utilizado para romantizar a violência contra a mulher em ambiente doméstico[2]. O jornal Zero Hora, por exemplo, abordou o caso com um “[...] ainda não se sabe o motivo que teria incitado as agressões”, indicando uma dúvida a respeito do caso, já que nada foi esclarecido ainda, mas não colocando em cheque a versão apresentada pela possível vítima. Além disso, a matéria indica que o caso será investigado pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher.

O mesmo veículo, no entanto, apresenta a relação da seguinte forma: “Poliana está grávida de dois meses do segundo filho com Victor. Os dois já são pais de Maria Victoria, de 1 ano”, ao final, enquanto no início mostrou o caso apresentando somente Victor “O cantor sertanejo Victor, que forma dupla com Leo, foi acusado pela sua mulher, Poliana Bagatini, de agressão. Grávida de dois meses do cantor, ela registrou um boletim de ocorrência, nesta sexta-feira, em Belo Horizonte, relatando que o marido a jogou no chão, chutando-a várias vezes”.

Deixar de falar sobre Poliana, ao menos profissionalmente, na mesma medida em que foi falado sobre Victor, é mostrar o status social somente do homem, tratando-a como mera vítima de uma possível agressão. Além disso, a mulher figura somente dentro da família: mãe e grávida, como se essas fossem suas únicas condições de existência – além da já evidenciada relação com um cantor famoso.

Em um contexto em que um caso de violência contra a mulher vem a público, independente de quem esteja envolvido, o que merece estar em evidência é a relação de violência (se) exercida, as condições em que foi praticada, como a mulher reagiu. Nesse sentido, muitas foram as autoras que evidenciaram o uso discursivo da mulher enquanto “sujeito não constituinte”, tratando a violência como uma violação que fere a liberdade da mulher enquanto constituinte de sua própria história[3].

Pensar a violência contra a mulher em um sentido amplo exige que se veja a mulher além do âmbito privado, doméstico, restrita à condição naturalizada da maternidade e dentro da família. É preciso urgentemente romper e deixar de reproduzir a imagem da mulher simplesmente como este ser dócil, materno, com instintos de amor e abnegação pela relação conjugal e pela família.

As relações privadas são mais complexas do que a equação mulher vítima x homem agressor. Em uma relação construída por dois indivíduos, diversas formas de manifestação dentro da relação podem ser compreendidas como violentas: desde uma agressão física a um desrespeito a certas escolhas e manifestações de autonomia.

Construir a imagem da “mulher vítima”, em uma dualidade homem/mulher, passividade/atividade, criando um vitimismo em torno desta construção é ignorar a autonomia de manifestação das mulheres nos relacionamentos. Maria Filomena Gregori é categórica em afirmar, a partir de pesquisa desenvolvida, que há situações de conflito que culminam em agressões em que a mulher participa como parceira ativa,

“cenas [que] revelam que a agressão funciona como uma espécie de ato de comunicação no qual os parceiros [e parceiras] ensejam criar novas formas de relacionamento, sem empregar recursos que levem a um acordo, a um entendimento ou a uma negociação das decisões” (GREGORI, 1993, 149)

Não faltaram análises em torno do que pode significar a carta de uma mulher negando a agressão que anteriormente havia denunciado, e sabe-se também que existem as mais diversas formas de silenciamento das mulheres, em especial quando se trata de um possível caso de violência[4]. O que se quer aqui afirmar é que as relações de violência em âmbito privado precisam ser vistas para além de “macho agressor” e “mulher vítima”, reconhecendo um espaço de autonomia às mulheres dentro do relacionamento, que afinal é construído em parceria, podendo a violência “ser também uma forma de comunicação, ainda que perversa, entre parceiros [e parceiras]” (GREGORI, 1993, p. 148).


Notas e Referências:

[1] BATISTA, Nilo. Imprensa e Justiça. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/imprensa-justica-18540968>. Acesso em: 20 mar 2017.

[2] Quando a violência contra a mulher vira espetáculo na mídia: o que aprendemos com o caso Eloá. São Paulo, 05 out 2016. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/quando-violencia-contra-mulher-vira-espetaculo-na-midia-o-que-aprendemos-com-o-caso-eloa/#gs.4wlbQ9s>. Acesso em: 20 mar 2017.

[3] GREGORI, Maria Filomena. As desventuras do vitimismo. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis v. 1, n. 1, 1993.

[4] O caso Victor Chaves, violência contra a mulher e a manifestação do ‘gaslighting’. São Paulo, 22 fev 2017. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/o-caso-victor-chaves-violencia-contra-mulher-e-manifestacao-do-gaslighting/#gs.NhqC2Ck>. Acesso em: 21 mar 2017.


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