Por Jose Luis Bolzan de Morais, Alfredo Copetti Neto e Guilherme Valle Brum - 04/03/2016
No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito "superior", dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social
I. Mauss
Nos últimos dias muito se falou e muitos falaram (e escreveram) acerca de recentes decisões produzidas pelo Supremo Tribunal Federal – em especial aquela que trata da relativização da presunção de inocência – que afetaram profundamente as opções constituintes da república. Em outros locais já expressamos, individualmente, nossa postura juridico-teórica. Não vamos, aqui, retomar tal discussão. O que pretendemos fazer é propor um outro viés de análise.
Como todos sabemos – ou deveríamos saber – há apenas um poder constituinte. Todas as demais “autoridades” públicas e poderes estatais são constituídos, portanto, por aquele fundados, e em relação àquele limitados e vinculados. Assim, estes “existem” em razão de uma decisão do constituinte. E não apenas são constituídos abstratamente pelo constituinte em sua forma como também em seu conteúdo. Daí a pertinência de debatermos os possíveis mecanismos de controle institucional a serem exercidos sobre eles.
Ou seja, se não fosse a decisão constituinte de os criar, estes não existiriam. Se não fosse o constituinte estabelhecer-lhes as competências e formas de atuação, estes não estariam aí, para pôr em prática aquilo que, por opção constituinte – repetimos -, foi estabelecido como opção para a construção daquela que foi a maior das opções: o Estado Democrático de Direito, caracterizado, sinteticamente, por uma constituição rígida e por um mecanismo de controle material de constitucionalidade, voltado à transformação social e não apenas à uma adaptação circunstancial, como querem os objetivos da República, inseridos no art. 3º da Constituição do Brasil
Portanto, quando as autoridades constituídas – quaisquer delas - agem em desencontro com as opções constituintes o fazem inconstitucionalmente, seja pela forma na tomada de decisão, que desrespeita os padrões e as estruturas constitucionais, seja pelo conteúdo, que se desvia, para além – extrapolando o conteúdo da norma – ou para aquém – não pondo em prática aquilo que o constituinte estabeleceu – das decisões constituintes plasmadas no texto constitucional.
Assim, poderíamos parafrasear Otto Bachoff e dizer que, para além das normas constitucionais inconstitucionais, há instituições constitucionais inconstitucionais...Pelo menos naqueles momentos em que, agindo, mesmo no cumprimento formal de suas atribuições constitucionais, em contradição material com o texto constitucional, vão de encontro ao definido pelo poder político que, inicialmente representativo, expressou, sob a forma de texto, a vontade popular constituinte.
É claro que as instituições instituídas têm, com as atribuições e limites – formais e simbólicos – postos pelo poder constituinte, seu campo e espaço próprios de atuação.
Por isso, ao Supremo Tribunal Federal foi dado o desenho institucional que possui até hoje – até mesmo, para aqueles que acompanharam ou se debruçaram a estudar o processo constituinte de 1987/88, por, inclusive, demanda de seus componentes à época – com a composição, o perfil e as atribuições presentes no texto constitucional. A ele foi atribuída, além do controle das decisões inferiores ou de outras competências peculiares, a sua tarefa mais importante para a manutenção do projeto de sociedade que, na saída da nossa última experiência autoritária, nos demos por meio da Assembléia Nacional Constituinte – não exclusiva, por “azar” –, qual seja: a “guarda” da Constituição, no papel de Corte Constitucional.
Portanto, ao STF incumbe “guardar” a nossa CRFB/88. O que não significa, sem adentrarmos no debate hermenêutico (sempre muito bem posto pelo parceiro Lenio Streck), que a ele se deu a possibilidade de tomar o texto constitucional como se seu fosse. Pô-lo, por assim dizer, sob sua custódia não significa dar-lhe uma atribuição constituinte. Ao contrário, como órgão constituído deve manter sua legitimidade exatamente por exercer suas atribuições nos limites – formais e materiais – que o único poder constituinte, manifestado por meio da ANC de 87/88, lhe deu. Ao agir para além deles, extrapolando-os, insere-se no âmbito da inconstitucionalidade.
Aliás, no Brasil, ao contrário do que se deve assumir, estamos arraigados, no âmbito da Teoria da Constituição, a uma matriz culturalista (em detrimento a uma matriz teorico-normativa), como ressalta Cattoni de Oliveira, que a partir da releitura de Jessé Souza, destaca “uma autointerpretação dominante dos brasileiros sobre si mesmos”. Nesse sentido, por conta de uma prática social e, sobretudo, institucional, nos explicamos por meio do subdesenvolvimento econômico, do patrimonialismo e do personalismo. É a ideia, também defendida por Jessé Souza e Cattoni de Oliveira, segundo a qual nos movemos por meio de um “defeito cultural de Origem”, cuja trajetória, na construção de um Estado de Direito, é lida como uma trajetória de fracasso. Talvez seja por conta disso, deste inconsciente não dito, que o Supremo queira, no ato falho, resolver, por si só, o “desvio” congênito da sociedade brasileira, transformando-se em superego (I. Mauss) da sociedade, resvalando para o que aqui sugerimos, para a inconstitucionalidade, mesmo que buscando uma legitimidade que não lhe pertence.
Em outras palavras, o que estamos sugerindo aqui é que, ao decidir como decidiu (a exemplo, de forma mais expressiva, do caso recente da “presunção de inocência”), contra texto expresso de dispositivo constitucional ou inovando de modo a “transformar-se em” (ou mesmo simplesmente usurpar) o poder constituinte, o STF acaba por assumir feições de uma “autoridade inconstitucional”.[1]
Uma pista para o enfrentamento da questão pode estar nas razões de decidir do voto proferido pelo decano do Tribunal, Ministro Celso de Mello, por ocasião de um julgamento histórico no que toca ao delicado tema da judicialização da política: o caso da chamada “fidelidade partidária”.
Na assentada de 04 de outubro de 2007, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, julgou três mandados de segurança (autuados em sequência, sob os números 26.602, 26.603 e 26.6041) impetrados por partidos políticos (PPS, PSDB e DEM) contra ato do Presidente da Câmara dos Deputados que negara pedidos administrativos de declaração de vacância de mandatos de parlamentares que se desfiliaram das respectivas agremiações partidárias. O mandado de segurança 26.603 teve como relator o Ministro Celso de Mello, que entendeu que os partidos políticos têm, sim, o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando haja pedido de cancelamento de filiação ou de transferência, para legenda diversa, de candidato eleito por outro partido, independentemente de disposição constitucional expressa nesse sentido.
A fim de justificar a conclusão de seu voto, recorreu a uma densa retórica e a uma série de princípios constitucionais. Não nos interessará, neste espaço, o mérito da decisão, mas um simbólico excerto da fundamentação do voto de Celso de Mello. O Ministro, depois de exaltar o exercício da jurisdição constitucional praticada pelo Supremo, incorporou nas suas razões de decidir um trecho da doutrina de Francisco Campos no qual refere expressamente que “o poder de interpretar a Constituição envolve, em muitos casos, o poder de formulá-la. A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la […]. Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constituição, funciona, igualmente, o poder constituinte”.
Tenhamos em conta, principalmente, a última frase dessa passagem: “Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constituição, funciona, igualmente, o poder constituinte”. Para o decano do Supremo Tribunal Federal, o STF exerce “poder constituinte”.
Poderíamos problematizar essa assertiva sob variados enfoques. O espaço aqui é diminuto para realizarmos essa tarefa. Mas é no mínimo preocupante que um Ministro do Supremo Tribunal Federal invista-se, por ato próprio, de tal poder.
Dito de outra forma, para além das críticas hermenêuticas e outras mais, há que pôr em pauta a usurpação de poder praticada por nossa mais alta Corte – coisa de monarquia, incompatível com a República, como já havia destacado Ingeborg Maus, em “O judiciário como superego da sociedade”.
Mesmo sendo um poder contramajoritário, isso não lhe permite substituir a decisão constituinte por aquela que, a seu talante, parece ser o que mais condiz com os “desejos” da sociedade, ou seja, o Supremo Tribunal Federal, apesar de “supremo”, não pode ser contramajoritário em relação à decisão do constituinte originário. Seu contramajoritarismo prende-se às decisões legislativas infraconstitucionais (e, com marcantes temperamentos, às Emendas à Constitução). Dito de outro modo, a sua – do STF - “contramajoritariedade” tem limites e vínculos, e estes estão na própria norma que lhe incumbe “guardar”. Não na sua vontade ou no seu “sentir”. A ele não “pertence” poderes constituintes, tão só competências constituídas.
Lembremo-nos de que a esse estado de coisas (inconstitucional) reagiu o Parlamento em alguns momentos, inclusive com a propositura de uma PEC (a de número 33/2011), que pretendia aumentar a quantidade mínima de votos de integrantes de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis e condicionar as decisões sobre a inconstitucionalidade de emendas à Constituição à apreciação do Poder Legislativo. Em outras palavras: almejava-se um maior controle institucional – do Parlamento - sobre as decisões do Poder Judiciário.
A Constituição é, ela mesma, uma norma preponderantemente contramajoritaria (no caso de garantia dos Direitos Fundamentais) criada pela maioria constituinte, e o Supremo age de forma contramajoritaria quando a garante. Na situação atual a situação se inverte... Com o supremo usurpando a sua função contramajoritaria.
Ou seja, estabeleceu-se, em razão desta disputa institucional – talvez fruto daquelas crises que afetam o próprio Estado na contemporaneidade – um embate acerca de quem deve dar a última palavra. Talvez, exatamente, por conta destas “ultrapassagens” de limites, pondo em risco o princípio democrático que subjaz – deve subjazer – o Estado “adjetivado” (Canotilho) de Constitucional.
O problema é: quem, sem rupturas institucionais e constitucionais, controla o controlador? Voltamos à interrogação... Mas que o STF pode estar trilhando um caminho de paulatina “inconstitucionalização” de si próprio, isto está!
Notas e Referências:
[1] A propósito, um tema de pesquisa interessante seria investigar o que pensa a nossa Corte Constitucional acerca de sua posição institucional e de sua função republicana, diga-se de passagem, na República
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. José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ. .
. Alfredo Copetti Neto é Doutor em Direito pela Università di Roma, Mestre em Direito pela Unisinos. Cumpriu estágio Pós-Doutoral CNPq/Unisinos. Professor PPG-Unijuí. Unioeste e Univel. Advogado OAB-RS. . .
. Guilherme Valle Brum é Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/DF). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Pesquisador do GP e Rede de Pesquisa CNPQ “Estado e Constituição”. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. .
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