REPE&C 8 - Garantismo Brasil e Sconfinato: unindo forças contra o Estado de Coisas Inconstitucional - notas à ADPF 347

19/09/2015

Por Jose Luis Bolzan de Morais e Alfredo Copetti Neto - 19/09/2015

(…) pode-se afirmar que  a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional – não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”

K. Hesse

Hoje propomos uma coluna um tanto diferente. Unimos forças em nome da esfera pública, da república e da primazia dos direitos humanos, em particular, daqueles que estão sob a custódia do Estado, em estabelecimentos prisionais, dialogando com a ADPF nº 347, em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, bem como tomamos emprestado o caso concreto para encaminhar as primeiras linhas de uma discussão permanente: a do Estado Democrático de Direito, seus limites, condições e possibilidades.

“‘Abandonai toda a esperança, vos que entrais”’. É com a histórica frase posta por Dante, no portão do Inferno, da Divina Comédia, que o Professor Daniel Sarmento (por todos) abre a importantíssima Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, proposta pelo PSOL, com vista ao reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro.

Tocou-nos, de forma bastante incisiva, o desafio posto, neste primeiro ato, à Jurisdição Constitucional Brasileira, exercida pelo Supremo Tribunal Federal, chamada à baila para além do corriqueiro exercício do controle de constitucionalidade de atos normativos, agora confrontada com a questão relativa às flagrantes violações a preceitos fundamentais da Constituição Federal, oriundas de candentes omissões e comissões de todas as searas do poder público (falhas estruturais em políticas públicas) em relação ao quadro dramático do sistema prisional brasileiro.

Diante da bem estruturada e fundamentada ação, pautada por dados empíricos alarmantes, talvez, para muitos, desconhecidos, bem como por uma qualificada construção teórica, temperada por uma abertura contextual proveniente do direito comparado, em especial da Corte Constitucional colombiana (instituição pioneira na adoção deste estado de coisas inconstitucional – já o aplicou nove vezes: desde o sistema prisional até o problema dos “desplazados”), a ADPF 347 sustenta o estado de coisas inconstitucional, por conta da “violação maciça de direitos fundamentais de um numero significativo de pessoas, cujo equacionamento depende de um conjunto complexo e coordenado de medidas a serem adotadas por diversas entidades”. Tal confronto exige que, de modo peculiar, a Corte poderá “reter a sua jurisdição para monitorar, em procedimento público, o cumprimento das medidas que estabelecer”, como salienta o signatário da demanda.

Nomeado de “técnica decisória” o estado de coisas inconstitucional produz um “bloqueio institucional” à garantia de direitos, condição que impõe à Corte o exercício primordial de sua função de garantia, para além da clássica, e muitas vezes metafísica, separação de poderes.

Dentre as condições necessárias ao seu reconhecimento postos pela Corte colombiana, estão: “1- vulneração massiva e generalizada de um número significativo de pessoas; 2- prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para a garantia e promoção dos direitos; 3- a superação das violações de direitos pressupõe a adoção de medidas complexas por um pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças estruturais, que podem depender da alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou novas políticas, dentre outras medidas; 4- potencialidade de congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados acorrerem individualmente ao Poder Judiciário”.

As especificidades do caso brasileiro para configurar o estado de coisas inconstitucional são aterrorizantes. No caso em tela, vão desde a extrema burocratização e contigenciamento estabelecidos pelo Poder Executivo à liberação de recursos do FUNPEN, passando pela exacerbada “cultura do encarceramento” promovida pelos membros do Poder Judiciário, até chegar à política criminal expansivista, oriundas das “legislações simbólicas”, de responsabilidade do Poder Legislativo. Como se não basta-se, a situação dentro dos estabelecimentos prisionais, na maior parte deles pelo menos, é desumana, pois ali está uma minoria “estigmatizada, que além de tudo não vota, nem rende dividendos políticos  e não desperta a simpatia da opinião pública”.

A falência total da esfera pública e a contundente violação ao princípio da dignidade humana são flagrantemente percebidos, como expresso por alguns relatos trazidos na inicial:

a) Superlotação, explicitada pela CPI do sistema carcerário:

“[C]elas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário. Em outros estabelecimentos, homens seminus gemendo diante da cela entupida. Em outros estabelecimentos, redes sobre redes em cima de camas. Mulheres com suas crianças recém-nascidas espremidas em celas sujas (...) Assim vivem os presos no Brasil. Assim são os estabelecimentos penais brasileiros na sua grande maioria. Assim é que as autoridades brasileiras cuidam dos seus presos pobres. E é assim que as autoridades colocam, todo santo dia, feras humanas jogadas na rua para conviver com a sociedade”.

b) Cultura do encarceramento:

“(...) nós temos hoje cerca de 600 mil prisioneiros encarcerados, e, o que é pior, 40% deste número representa presos provisórios. Mais de 240 mil brasileiros encontram-se sob a custódia do governo, do Poder Executivo do Estado Brasileiro, de forma provisória, de forma cautelar, sem ter muitas vezes se defrontado com um juiz e sem ainda ter sido condenados definitivamente, numa afronta evidente ao princípio da não culpabilidade, dos principais valores exibidos na nossa Carta Magna”

c) Condições subumanas à sobrevivência:

“em diversos estabelecimentos, os presos bebem em canos improvisados, sujos, por onde a água escorre. Em outros, os presos armazenam água em garrafas de refrigerantes, em face da falta constante do líquido precioso. Em vários presídios, presos em celas superlotadas passam dias sem tomar banho por falta de água. Em outros, a água é controlada e disponibilizada 2 ou 3 vezes ao dia”.

Porém, o episódio mais aterrorizante desta crônica de horrores, sob o ponto de vista físico-psíquico ao qual o indivíduo foi submetido, é expresso pela situação em que se encontrava um apenado doente, que teve de extrair parte do pulmão por conta de ter contraído tuberculose. Em razão da condição insalubre da cela onde se encontrava, a cirurgia infeccionou, o tecido necrosou e a cavidade resultante da cirurgia expandiu-se a tal ponto que era possível enxergar o seu coração pulsando.

Para além desta omissão generalizada, também vêm relatados atos comissivos do poder público, atentatórios à ordem constitucional, como, por exemplo, “no presídio Urso Branco, em Rondônia, em retaliação a uma rebelião ocorrida na unidade, consta que agentes penitenciários teriam conduzido todos os internos à quadra de futebol da unidade, trajando apenas roupas íntimas, e os feito passar seis dias dormindo ao relento, obrigados a fazer as suas necessidades fisiológicas no local. Diversos presos teriam sofrido queimaduras de segundo e terceiro graus devido à exposição ao sol escaldante, com termômetros marcando 40ºC. No presídio Regional de Joinville, em Santa Catarina, há relatos consistentes de que dezenas de detentos teriam sido colocados nus no pátio e obrigados a passar mais de duas horas sem se mexer, sendo alvos de balas de borracha, gás de pimenta, bombas de efeito moral, além de violentos chutes por parte de agentes penitenciários. No Instituto Penal Plácido de São Carvalho, no Rio de Janeiro, consta que detentos também teriam sido obrigados a ficar nus enquanto eram agredidos com chibatadas de cinto no rosto e com porretes pelos agentes”.

A resposta a este estado de coisas inconstitucional veio em liminar, determinada pelo Ministro Marco Aurélio, nos seguintes termos:

a) aos juízes e tribunais – que lancem, em casos de determinação ou manutenção de prisão provisória, a motivação expressa pela qual não aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no artigo 319 do CPP;

b) aos juízes e tribunais – que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão;

c) aos juízes e tribunais – que considerem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de concessão de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal;

d) aos juízes – que estabeleçam, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo;

e) à União – que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos.”

Tudo isso nos confronta com os limites e, também, com as possibilidades de o constitucionalismo poder funcionar como referencial de construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”, comprometida com o bem-estar de todos. Da mesma forma, parece ser este um momento importante para repensar a própria fórmula tradicional da especialização de funções e da necessária reconfiguração das relações entre os “poderes” especializados da República e seus compromissos com a realização deste mesmo projeto.

Para além da questão específica que, conjunturalmente, interroga as circunstâncias da sociedade brasileira hoje, se põem as dúvidas no plano conceitual em torno das fórmulas, mecanismos e instrumentos que permitirão que se construam respostas efetivas.

Neste campo, o debate posto na ADPF 347 é o primeiro passo. As questões nela envolvidas são complexas e devem ser tratadas com a mais plena atenção pelo poder público. Obviamente o passo dado é extremamente importante, a técnica envolvida (estado de coisas   inconstitucional) é, em certa medida, nova para o direito pátrio (aludida unicamente pelo Ministro Luis Roberto Barroso nas ADIs 4357 e 4425) e exige, como muito bem apontado na peça inicial, uma maturidade jurídico-institucional não somente da esfera pública, mas de toda a sociedade brasileira. A cultura constitucional do país está posta à prova e terá de estar preparada para enfrentar, democraticamente, o dilema sem refugiar-se em antigas tautologias, sempre caras, ao republicanismo.

Aguardemos os demais votos e a decisão de mérito. Além do Ministro Marco Aurélio, também votou, pela concessão parcial da liminar, o Ministro Edson Fachin.

Também, todos aqueles que se dedicam aos temas aqui envolvidos precisam atentar para a necessária (re)construção de uma teoria do/para ou “para além do” – apesar de M. Weber – o Estado Constitucional que dialogue adequadamente com o seu reconhecimento e, acima de tudo, com a sua concretização.


 

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José Luis Bolzan de Morais é Mestre em Ciências Jurídicas PUC/RJ. Doutor em Direito do Estado UFSC/Université de Montpellier I (França). Pós-doutoramento Universidade de Coimbra/PT. Professor do PPGD-UNISINSO. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisador Produtividade CNPQ.

 


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Alfredo Copetti Neto é Doutor em Direito pela Università di Roma, Mestre em Direito pela Unisinos. Cumpriu estágio Pós-Doutoral CNPq/Unisinos. Professor PPG-Unijuí. Unioeste e Univel. Advogado OAB-RS.

 


Imagem Ilustrativa do Post: Bars // Foto de: Alberto .... // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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