Renúncia do Poder Familiar à luz do “Mito do Amor Materno”, de Elizabeth Badinter

19/02/2017

Por Fernanda Ely Borba - 19/02/2017

O cotidiano de trabalho em Vara de Infância e Juventude corriqueiramente nos leva a deparamo-nos com julgamentos morais de toda a ordem, tendo em vista que a natureza das situações que batem à porta do Poder Judiciário diz respeito ao que há de mais delicado em se tratando da vida humana: a radicalidade das violações de direitos humanos (especialmente de crianças e adolescentes), as quais na maior parte das situações têm como palco a esfera privada, familiar (WAISELFISZ, 2012).

Para além da intervenção frente a situações que demandam a interrupção imediata de violações de direitos, as Varas de Infância e Juventude sediam ainda a formalização das renúncias do poder familiar de crianças e adolescentes, medida baseada na decisão da(os) genitora(es) no tocante à colocação dos(as) filhos(as) em família adotiva[1]. Na maior parte das situações, são as mães que recorrem ao Poder Judiciário para renunciar o poder familiar dos(as) filhos(as), o que muito provavelmente está relacionado à construção social de gênero[2].

Ou seja, é muito comum defrontarmo-nos com um caldeirão de situações limite no campo das relações sociais, as quais inevitavelmente provocam a reflexão em torno do julgamento moral e dos padrões socialmente estabelecidos, sobretudo no que tange ao exercício dos papeis sociais. Um dos mais contundentes refere-se às expectativas em torno do gênero feminino, mais notadamente no tocante à maternidade:

O amor materno foi por tanto tempo concebido em termos de instinto que acreditamos facilmente que tal comportamento seja parte da natureza da mulher, seja qual for o tempo ou o meio que a cercam. Aos nossos olhos, toda mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesma todas as respostas à sua nova condição. Como se uma atividade pré-formada, automática e necessária esperasse apenas a ocasião de se exercer. Sendo a procriação natural, imaginamos que ao fenômeno biológico e fisiológico da gravidez deve corresponder determinada atitude maternal (BADINTER,1985, p. 20).

Ao confrontar as expectativas em torno do gênero feminino e do mito do amor materno, observamos que ainda é comum a reprovação social das mulheres que decidem os rumos da vida dos(as) filhos(as) a partir da entrega para adoção, o que em alguns casos assume contornos de discriminação e misoginia[3]. Ilustrativamente, não é raro o relato de mulheres que renunciam o poder familiar de recém-nascidos contendo a afirmação da impossibilidade de comunicarem para as pessoas do entorno (relações primárias) ou mesmo no órgão empregador acerca da decisão de colocação da criança em família adotiva, devido à forte carga de reprovação social. Por consequência, não raramente justificam que o rebento veio a óbito no nascimento. São comuns ainda os relatos de mulheres que, ao compartilhar com a família o desejo de renunciar o poder familiar, são persuadidas a desistir da decisão.

Nesse cenário, as mães que optam pelo encaminhamento de filhos à adoção deparam-se com um verdadeiro “calvário”, à medida que além de enfrentarem os dilemas de uma escolha de tamanha complexidade, muitas vezes não são acolhidas, tornando-se alvo de julgamentos morais, preconceito ou mesmo de discriminação.

Considerando-se que o encaminhamento dos(as) filhos(as) para a adoção legal revela-se, em última instância, num direito humano, urge a desmistificação dos tabus e mitos que rondam o exercício do papel materno, e para além disso, a desconstrução de estereótipos de gênero reproduzidos ao longo do processo histórico. Mais do que nunca, é fundamental compreendermos que optar pelo encaminhamento de filhos(as) para adoção é, acima de tudo, um gesto de amor incondicional.


Notas e Referências:

[1] De acordo com Bordallo (2011), tal medida não se confunde com o abandono. Ressalta que a entrega de filhos para adoção legal consiste em ato consciente e amadurecido, sinalizando profundo gesto de amor ao proporcionar ao filho biológico a inserção em família realmente motivada e em condições de exercer os cuidados parentais.

[2] O gênero é analisado como “a construção cultural coletiva dos atributos da masculinidade e feminilidade” (BRASIL, 2001, p. 14). Assim, para tornar-se homem ou mulher é preciso submeter-se a um processo de socialização de gênero, o qual se baseia nas expectativas culturais em relação a cada sexo. Desse modo, os papeis masculino e feminino são construídos no âmbito das relações sociais, da cultura, não se caracterizando tão somente pelas diferenças biológicas. Denota-se ainda que, tradicionalmente, atribui-se ao gênero masculino a participação no espaço público e o provimento da família, ao passo que o gênero feminino está destinado ao cuidado do lar e da prole (SCOTT, 1995).

[3] Em resumo, a misoginia está relacionada à desvalorização do feminino e, em sua versão mais radical, ao ódio ou desprezo ao feminino (BORGES, 2013).

BADINTER, Elizabeth. Um Amor Conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir Dutra. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. Revogabilidade do consentimento. IN: MACIEL, Kátia (coord.) Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P. 303-306.

BORGES, Zulmira Newlands et al. Patriarcado, heteronormatividade e misoginia em debate: pontos e contrapontos para o combate à homofobia nas escolas. Revista Latitude. Vol. 07, nº 1, 2013. pp. 61-76.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência Intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Série Cadernos de Atenção Básica, n. 08. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Vol 20(2) Jul/Dez, 1995.

WAISELFISZ, Julio Jacobo (org). Mapa da Violência 2012. Crianças e Adolescentes no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: CEBELA/FLACSO, 2012.


Fernanda Ely BorbaFernanda Ely Borba possui graduação (2004) e mestrado (2007) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o ano de 2008, lotada no Fórum da Comarca de Chapecó/SC. Atualmente é aluna do curso de pós-graduação lato sensu Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes, promovido pela PUC/RS. Integra o  Núcleo de Pesquisas Sobre Violência (NESVI/UNOCHAPECO). Participa da União Brasileira de Mulheres (UBM) sediada em Chapecó/SC. Compõe a Associação Catarinense dos Assistentes Sociais de Poder Judiciário de Santa Catarina (ACASPJ), exercendo o cargo de presidente do Conselho Fiscal (triênio 2017-2020). Estuda o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes desde o ano de 2002, quando passou a integrar o Núcleo de Pesquisas em Violência do Departamento de Serviço Social da UFSC (NEPEV/DSS/UFSC). 


Imagem Ilustrativa do Post: Na rua // Foto de: Daniel Zanini H. // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/zanini/7278999356

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura