Remição Ficta: um olhar crítico sobre os direitos dos presos em face da ausência estatal

23/10/2015

Por Clarissa Carvalho Moura Rocha* - 23/10/2015

1. Introdução

Inicialmente é indispensável compreender o instituto da remição como um dos mecanismos de ressocialização previsto na Lei de Execução Penal (LEP), sendo inquestionável, contudo, que a não implantação da remição ficta ou presumida e o descaso para com ela são sintomas claros de que a pena não se presta a ressocializar o condenado. Não obstante, é necessário apreender que se trata de um direito público subjetivo do condenado de trabalhar e/ou estudar que está previsto em lei, e que estaria sendo violado por quem originariamente deveria provê-lo: o nosso Estado de Direito.

Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo principal analisar a possibilidade da concessão do benefício da remição ficta àqueles que não tiverem acesso ao trabalho e ao estudo por inércia ou por omissão estatal, considerando o estudo e o trabalho como direitos subjetivos do condenado e obrigação do Estado de prover estes direitos. Além disso, o estudo tem como objetivo investigar se a nova lei de remição beneficia os condenados, garantindo-lhes a ressocialização ou se é, apenas, um reflexo de medidas tomadas para reforçar o sistema penal e ampliar o alcance do controle social. Por fim, imperioso analisar se o instituto da remição ficta viola ou não os direitos dos presos que efetivamente trabalham ou estudam, e em caso afirmativo, se realmente estaria sendo violado o Princípio da Isonomia, expondo outros argumentos doutrinários e jurisprudenciais contra e a favor do instituto da remição ficta.

Para o desenvolvimento deste trabalho, o método utilizado foi o hipotético dedutivo, e as principais técnicas de pesquisa foram a leitura de livros e de periódicos pertinentes ao tema, assim como a coleta de jurisprudência. Para o exame das questões assinaladas acima, este trabalho está estruturado da seguinte forma: primeiramente foi delimitado o instituto da remição e qual é a sua real finalidade; em segundo lugar foi caracterizado o instituto da remição ficta, qual é o entendimento atual, tanto da doutrina como da jurisprudência e quais as razões de tanta resistência em aceitá-la.

2. O Instituto da Remição

2.1 O que é Remição?

A remição, em latim redimere, significa libertação, resgate (FERREIRA, 1985, p. 1459) e define-se como o instituto que possibilita atualmente ao preso, sentenciado ou não, abreviar efetivamente o tempo de duração de pena através do estudo e/ou trabalho interno ou externo. Para Mirabete (2004, p. 517), trata-se de um meio de abreviar ou extinguir parte da pena. Oferece-se ao preso um estímulo para se corrigir, abreviando o tempo de cumprimento da sanção, para que possa passar ao regime de livramento condicional ou à liberdade definitiva. Para Barros (2001, p.184), a remição é uma forma de individualização da pena que tende a diminuir a severidade da intervenção penal e reduzir os efeitos dessocializadores da pena privativa de liberdade, ao possibilitar a volta mais rápida do preso ao convívio social.

Em consonância com o Princípio Constitucional da Individualização da pena, nas disposições acerca do cumprimento da pena pelo condenado, a Lei de Execução Penal institui quais são os direitos e os deveres do condenado, disciplinando nos artigos 126 a 130 o instituto da remição. Sobre o trabalho do preso, a Lei de Execução Penal dispõe sobre o trabalho do condenado como um dever social e condição de dignidade humana, tendo finalidade educativa e produtiva ao mesmo tempo em que entende que o condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade. Contudo, na medida em que o legislador institui como dever do condenado a execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas em seu artigo 39, inciso II, assegura também que constitui um direito do preso a atribuição de trabalho e sua remuneração (art. 41, II da LEP).

Apesar de ser um contrassenso da própria lei este caráter híbrido do trabalho na execução penal, em razão da valorização constitucional do trabalho como “direito social” previsto no art. 6º da Constituição Federal, a execução do trabalho deve ser interpretada não como dever do condenado, mas como direito do mesmo: ao elevar o trabalho como um dos direitos sociais, a LEP garante o caráter humanizador da pena, pelo menos na legislação. Neste sentido, um dos principais benefícios oriundos da execução da atividade laborativa que se propõe a diminuir os efeitos negativos da pena no cárcere é a remição da pena.

Todavia, mesmo com o voluptuoso crescimento da população carcerária nacional ─ atualmente o Brasil é a terceira maior população carcerária do mundo[1] ─ e com a ineficácia das políticas criminais do Estado quando em seu dever de garantidor da ordem e da segurança pública, motivo pelo qual não seria coerente, muito menos sensato interpretar a norma penal de forma tão prejudicial ao condenado, o entendimento majoritário da doutrina é no sentido de que a remição não passa de uma regra penal favorecedora ou ônus do Estado que gera um direito ao condenado. Não obstante, coadunando com a doutrina majoritária, nos termos das decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal, a remição se caracteriza por mera “[...] expectativa de direitos, condicionada ao preenchimento de todos os requisitos legais” [2]. Nessa mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça define a remição da pena pelo trabalho ou pelo estudo como “[...] um incentivo para que o apenado realize essas atividades, essencialmente importantes para sua reeducação – uma das finalidades da pena” [3].

Há de se ressaltar que há um entendimento divergente, minoritário, na doutrina e na jurisprudência, no que se refere à compreensão do instituto da remição, segundo o qual a remição seria interpretada como um direito público subjetivo do condenado, previsto na LEP. Dessa forma, discute-se, a seguir, para que se presta a LEP.

2.2. Para que ela se presta?

Apesar de a LEP ter como objetivo declarado a “[...] harmônica integração social do condenado e do internado”, e classificar a remição como uma nova proposta ao sistema, o sistema penal não só descumpre, em grande parte, esse objetivo como também viola os direitos humanos de muitos daqueles que passam pela sua engrenagem: um meio ambiente insalubre, ausência de assistência médica, aplicação arbitrária de punição, inexistência de programas educativos, recreativos e profissionalizantes e falta de consideração pela dignidade e integridade dos internos são elementos que, considerados em conjunto, constituem condições equivalentes a tratamento cruel, desumano e humilhante [4]. Outra evidência desse descumprimento é quando se observa que a população carcerária nacional, estimada pelo Ministério da Justiça em 239.345 pessoas em junho de 2002, passou à cifra de 548.003 em dezembro de 2012, [5] com crescimento superior ao dobro em menos de 10 anos. Atualmente com a terceira maior população carcerária do planeta, fica evidente que o Estado não dá efetividade à remição como um instrumento de ressocialização, muito menos efetiva políticas públicas, legais, que se propõem a garantir o caráter ressocializador da pena.

Contudo, engana-se quem interpreta a superlotação do cárcere como é um problema para o Estado. Tal circunstância evidenciaria, no pior dos casos, uma desarmonia entre os três poderes do Estado tendo em vista que,

[...] enquanto o Poder Legislativo produz, de forma compulsiva, cada vez mais novos tipos penais e o Poder Judiciário, por seu turno, é pressionado a produzir em escala industrial, mais e mais, sentenças condenatórias, com penas cada vez exasperadas, o Poder Executivo é cerceado por um conjunto de fatores que desestimulam a construção de novos estabelecimentos penais (AZEVEDO, 2010).

A superlotação é uma consequência inerente à prática reiterada do cárcere: ao submeter os indivíduos à condições subumanas, de degradações não só físicas, como morais, o sistema penal se reafirma e se consolida. Tanto assim que, atualmente, se tem a falsa impressão que o encarceramento dos indivíduos delinquentes, aqueles que colocam em risco o equilíbrio social e a segurança da vida em sociedade, é não só, o único, como o melhor instrumento disponível pelo Estado para proteger a sociedade da criminalidade. A prática das prisões revela a cruel realidade que se perpetua em razão do desinteresse social para com aqueles que, por qualquer motivo, foram levados ao cometimento de algum fato delituoso, deixando claro que o desinteresse com a reintegração social dos indivíduos encarcerados, condenados ou internados, e principalmente, com a ressocialização dos mesmos, acontece conscientemente pelo Estado.

Nas palavras de Foucault (2012, p. 217) a forma geral de aparelhagem para tornar os indivíduos transgressores em indivíduos dóceis e úteis, por meio de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência. Complementa Foucault (2012), como uma instituição completa e austera, a prisão se constitui fora do aparelho judiciário, quando se elaboram, por todo o corpo social os processos para repartir os indivíduos, tirando-lhes o máximo de tempo e de forças, para constituir um saber que se acumula e se centraliza.

No contexto do sistema capitalista que predomina na sociedade contemporânea, ao explorar a força de trabalho da população carcerária por valor inferior ao salário mínimo, tornando o trabalho obrigatório e instituindo a recusa ao trabalho no rol das faltas graves pelo condenado, o maior beneficiado por manter este sistema penal é o Estado. Não obstante, ao se estimular o consumismo e difundir a ideia do ter ao invés do ser, como requisito indispensável para alcançar a felicidade, garante-se a manutenção das desigualdades sociais e se assegura a satisfação desumana, considerando que as necessidades reais de assalariados e marginalizados sociais são negadas pela violência estrutural do capitalismo (SANTOS, 2005).

Reforça-se a crítica ao sistema penal vigente ao perceber que, mesmo com os avanços trazidos pelo reconhecimento da autonomia da disciplina da execução penal, persistem diversos entraves normativos na legislação atual, bem como se conjugam dificuldades na efetivação de seus dispositivos, fazendo com que constantemente se repense nos mecanismos de garantia e concretização do conteúdo já previsto na LEP.

Atendendo ao que prescreve o princípio da individualização da pena, de sorte a potencializar qualquer mínima oportunidade de ressocialização, torna-se indispensável perceber como o debate sobre a remição e as recentes alterações legislativas em torno dela são, em tese, mais um direito do preso que se consolida como estratégia de ressocialização e de integração social do condenado, mas na prática é apenas mais um reflexo de medidas tomadas para reforçar o sistema penal e ampliar o alcance do controle social do Estado para com os condenados[6].

3. O instituto da Remição Ficta

3.1. O que é Remição Ficta?

Como visto, o instituto da remição penal tem como função principal possibilitar ao preso reduzir o tempo de cumprimento de pena através atualmente do estudo e/ou trabalho a depender do regime em que se encontra, ou o período de prova, caso esteja em gozo do livramento condicional. Neste contexto, se insere uma nova estratégia de efetivação dos direitos do condenado, qual seja, o instituto da remição ficta. Isto porque, ao se constituir direito do preso e restar provado que não foi possível trabalhar ou estudar por inércia ou omissão do Estado, deveria este se beneficiar com a remição, mesmo sem o efetivo desempenho da atividade. Em razão da obrigatoriedade do oferecimento do trabalho ao preso por parte do Estado e se o preso não trabalha porque trabalho não há, tem ele direito à remição. Entretanto, no nosso ordenamento jurídico, a única forma de se beneficiar com a remição ficta é no caso de acidente de trabalho, no qual o preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição.

3.2. Qual o Entendimento da Doutrina e da Jurisprudência?

Corroborando com a maior parte da doutrina, Renato Marcão (2012) entende que se deve atentar que o condenado está em débito com a sociedade e, por isso, deve arcar com todas as consequências de sua conduta delinquencial, inclusive com aquelas que lhe decorrem à conduta de eventuais falhas e lacunas da estrutura penitenciária atual. Afirma ainda que,

é condenável a prática de conceder remição ao preso que não trabalhou, sob justificativa de ausência de condições para o trabalho no estabelecimento prisional, debitando-se tal situação do Estado, diga-se, à sociedade. Com efeito, ao contrário do que se tem decidido amiúde, o trabalho não está catalogado na lei como direito do preso e obrigação do Estado (MARCÃO, 2012, p. 223).

Para Guilherme Nucci (2011) a remição ficta não deve ser concedida ao condenado automaticamente, quando inexistente o trabalho ou o estudo. Segundo o mesmo,

a deficiência é do Estado, podendo-se instaurar incidente de desvio de execução. Finalizado o incidente, proclamada pelo magistrado a efetiva ocorrência de desvio, intima-se o órgão governamental competente para suprir a falta de trabalho ou estudo em determinado prazo. Se nenhuma medida for tomada, parece-nos correto que o preso, permanecendo à disposição para trabalhar ou estudar, deva ter os dias computados para fins de remição (NUCCI, 2011, p. 1042).

Neste sentido, assim como maior parte da doutrina, a jurisprudência vem decidindo sobre a impossibilidade de concessão da remição ficta, mesmo nos casos em que o Estado não oferecer trabalho no estabelecimento prisional, vejamos:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. DESCABIMENTO. PRETENSÃO DE SE OBTER A REMIÇÃO DA PENA SEM A REALIZAÇÃO DE ATIVIDADE LABORAL. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO DO ESTADO NA IMPLANTAÇÃO DE TRABALHO NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE EFETIVO TRABALHO. ART. 126 DA LEI 7.210/1984 (LEP). HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. – [...] A remição da pena pelo trabalho ou pelo estudo é um incentivo para que o apenado realize essas atividades, essencialmente importantes para sua reeducação - uma das finalidades da pena. Dessa forma, a ausência de trabalho e estudo disponíveis aos apenados no estabelecimento prisional constitui um desvio da execução da pena. Contudo, não dá ao apenado o direito de remir a pena com relação ao tempo em que estava ocioso, não obstante por culpa do Estado. A remição exige a efetiva realização da atividade laboral e a frequência ao curso, nos termos do art. 126 da LEP. Habeas corpus não conhecido. (STJ, Relatora: Ministra Marilza Maynard. Desembargadora convocada do TJ/SE, DJ: 05/12/2013. Sexta Turma, grifo do autor).

Ao negar a pretensão à remição ficta, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ratifica o entendimento dos Tribunais Superiores, afirmando ainda que é necessária a comprovação do efetivo labor, sob pena de se afrontar o Princípio Constitucional da Isonomia.

AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. PRETENSÃO DE REMIÇÃO FICTA OU PRESUMIDA DA PENA. ARGUIÇÃO DE OMISSÃO DO ESTADO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE EFETIVO TRABALHO, SOB PENA DE AFRONTA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA. 'Só se forma o direito à remição se houve efetiva prestação de trabalho. Inexistência na legislação brasileira de remição que se estribe em tempo de trabalho não prestado, mas que seria possível ser exercido.’ [...] (TJMG; AgExcPen 5127478-54.2009.8.13.0000; Alfenas; Primeira Câmara Criminal; Relator Designado Desembargador Delmival de Almeida Campos; Julgado em: 09/11/2010; DJE/MG 14/01/2011, grifo do autor).

Entretanto, nas palavras do doutrinador Júlio F. Mirabete (2004) é aplicável a concessão da remição ficta no ordenamento jurídico, mesmo não havendo norma expressa na LEP ou na Constituição Federal, quando comprovada a ineficiência da Administração de prover o estudo ou trabalho ao condenado:

Há assim, uma relação de direitos e deveres entre o Estado e o condenado em virtude da qual a Administração está obrigada a possibilitar o trabalho ao preso e a este compete desempenhar a atividade laborativa. Afirma-se, por isso, que não se desincumbindo o Estado de seu dever de atribuir trabalho ao condenado, poderá este beneficiar-se com a remição mesmo sem o desempenho da atividade. Não cabendo ao sentenciado a responsabilidade por estar ocioso, não pode ser provado do benefício por falha da administração. Comprovando o preso em regime fechado ou semiaberto que estava disposto ao trabalho, mas que por falta de condições materiais ou por desídia do responsável pela omissão, não há como negar o direito à remição pelos dias em que o condenado deveria ter desempenhado seu labor (MIRABETE, 2004, p. 528).

Concordando com esse pensamento, de forma a ser uma das referências doutrinárias no que se refere à remição ficta como uma possibilidade real ao sistema carcerário, o ex-Promotor de Justiça do Estado de São Paulo Maurício Kuehne posiciona-se fazendo a seguinte indagação:

Admitamos, por hipótese, que, na vigência da Lei de Execução Penal, o sentenciado deseje remir uma parte de sua pena e não consiga obter trabalho junto ao estabelecimento penal onde se encontra recolhido. Ante a impossibilidade de o Estado propiciar esse trabalho, ficará o sentenciado prejudicado, na sua pretensão quanto à remição. E como deveremos agir? Por equidade, deveremos concordar com a remição da pena de todos os sentenciados ou deveremos concordar somente com aqueles que efetivamente tiveram a oportunidade do trabalho? (KUEHNE, 1985, p.60).

Pode-se dizer que, em razão do sistema punitivista e legalista arraigado no pensamento da maioria dos juristas brasileiros, apenas poucos juízes e desembargadores concedem o benefício da remição ficta. Um dos poucos casos ─ em que foi concedida a remição ficta pelo juiz de primeiro grau e teve sua decisão ratificada pelo Tribunal de Justiça ─, ocorreu no Estado do Rio Grande do Sul, no qual restou provada a impossibilidade da Administração em prover uma quantidade suficiente de costura de bolas, e não havendo como se inferir o número total de bolas fornecidas para que o apenado costurasse no período, se manteve a decisão de remição integral a todos os presos que realizavam tal trabalho:

EXECUÇÃO PENAL. REMIÇÃO DA PENA E PROGRESSÃO DE REGIME: BENEFÍCIOS BEM DEFERIDOS EM PRIMEIRO GRAU. NEGARAM PROVIMENTO AO AGRAVO (UNÂNIME). [...] A adoção deste critério conduziria a uma situação mais gravosa aos apenados que, ao contrário de outros, querem trabalhar, e não poderiam atingir a produtividade mínima por omissão Estatal. Bem diferente seria se o Estado cumprisse a lei e assegurasse a oportunidade do trabalho a todos os detentos, em vez de sonegar-lhe mais esse direito. Nesse caso, aquele apenado que não trabalhasse, ou que, podendo, não atingisse uma produtividade mínima, obviamente não seria beneficiado com a remição integral. Considerar, no entanto, que a omissão Estatal, que o descumprimento da LEP, que não a asseguração do direito ao trabalho possa conduzir a situação mais gravosa ao apenado é situação com a qual não se pode concordar. Ora, se a omissão estatal, por não ser fiscalizada, não lhe gera ônus algum, também não pode ser invocada para prejudicar justamente aqueles que tem seus direitos violados. Obviamente não se nega que eventualmente o deferimento da remição integral possa beneficiar alguns apenados que apresentam produtividade inferior. Não vejo, porém, problema algum nisso, pois bem ou mal se está beneficiando quem trabalha, e não se corre o risco de prejudicar ninguém, de se cometer alguma injustiça. Caso deferida, porém, a remição parcial, diversos apenados com capacidade e habilidade para costurar inclusive mais do que uma bola por dia restariam prejudicados porque o Estado não lhes fornece material suficiente para o trabalho. Aqui haveria justiça? Por essas razões, porque prefiro beneficiar diversos presos que trabalham, concedendo-lhes um período maior de remição, do que prejudicar apenas um, deferindo-lhe menor do que lhe é direito, DECLARO REMIDOS 44 DIAS DA PENA. [...] (Agravo Nº 70034689638, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 24/03/2010, grifo do autor).

2.3 Porque tanta resistência em aceitar a Remição Ficta?

Nega-se o pedido de remição com muita facilidade, sendo diversos os argumentos: necessidade de comprovação de efetivo trabalho, não oferecimento da jornada de trabalho mínima pelo estabelecimento penal ou até por afronta ao Princípio Constitucional da Isonomia. Mas será que esses são argumentos válidos para se negar este direito ao preso, que deveria ser ressocializado através de institutos como o da remição? Não se pode entender que sejam. Estes argumentos não são nem capazes, nem suficientes, para justificar tal conduta por parte dos juízes e promotores de justiça.

Ao negar o pedido de remição com base, por exemplo, no princípio constitucional da isonomia, afirma-se que não seria justo para com aquele que efetivamente trabalhou ou estudou, conceder a remição àquele que assim não o fez. Por outro lado, também não é justo ser recolhido em um estabelecimento penal no qual o preso não tem a oportunidade de trabalho ou de estudo, enquanto outro estabelecimento for aparelhado para o fornecimento do trabalho e do estudo.

Desta forma, a não concessão da remição ficta mostra desigualdade flagrante e inquestionável violação ao princípio da isonomia. É preciso se atingir uma isonomia material, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Rui Barbosa (1999), em seu famoso discurso conhecido como Oração aos Moços assim afirmou:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcional à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. Os mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real (BARBOSA, 1999, p.26).

Como considerar apenas o Princípio da Isonomia e não considerar o Principio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana? Mais ainda, como não considerar o Princípio da Individualização da Pena, observando as peculiaridades de cada caso? Muito além das igualdades ou desigualdades, justiça ou injustiça, a resistência em relação à remição ficta está intimamente ligada aos institutos da pena e da prisão. Afirmam-se diferentes finalidades e utilidades para a pena privativa de liberdade assim como se conhecem todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. Entretanto, não “vemos” o que pôr em seu lugar. Ela é detestável solução, de que não se pode abrir mão (FOUCAULT, 2012, p.218).

Em uma sociedade fundada em um modelo de sistema punitivo que se perpetua no uso excessivo da pena privativa de liberdade, na fixação de penas cada vez mais longas, e principalmente, pela resistência às penas alternativas, não poderia se esperar comportamento diferente do que aquele que eleva a prisão à “peça essencial no conjunto das punições”.

A privação da liberdade, na medida em que a liberdade é o bem mais precioso de cada um individualmente considerado e sua limitação atinge a todos da mesma forma, a economia dos corpos, através da técnica e da disciplina e, sobretudo, o desprezo da própria sociedade para com aqueles marginalizados, isto é, segregados e discriminados que não se encaixam no modelo de cidadão construído pela sociedade, são os principais fundamentos para se resistir à extinção da instituição-prisão e consequentemente, a não aceitação da remição ficta.

Diante de tudo quanto exposto, nota-se que há diversos motivos para a resistência à concessão da remição ficta, mas esta é, talvez, a mais inegável de todas: a pena privativa de liberdade não se presta à ressocialização dos apenados, mas sim, tem a finalidade precípua de manter a lucratividade do sistema econômico-financeiro e, por via de consequência, os altos índices de reincidência, se tornando, na prática, apenas mais uma medida para reforçar o sistema penal e ampliar o controle do Estado para com os condenados e com a sociedade que os encarcera.

3. Considerações Finais

Ao contrário do que dispõe a Lei de Execução Penal, na qual afirma que o trabalho deve ser entendido como um dever social, em razão da valorização constitucional do trabalho como “direito social” previsto no art. 6º da Constituição Federal e condição da dignidade humana, a execução do trabalho deve ser interpretada não como dever do preso, mas como direito público subjetivo do mesmo.

A seletividade do sistema penal brasileiro e as desigualdades sociais evidenciam que a política de segurança pública não é ineficiente. Pelo contrário, o cárcere não é um problema para o Estado, mas sim uma solução, quando se consegue cada vez mais controlar tanto os que estão privados de sua liberdade, como o que estão livres, mas reféns do medo.

Constata-se que o indeferimento do pedido de remição ficta por parte da jurisprudência não fundamenta em argumentos válidos. Prefere se ater ao que está na lei, quando se poderia ter interpretado a norma de forma extensiva e progressista, com base nos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana, da Individualização da Pena e no próprio Principio da Isonomia.

Mesmo se reconhecendo que o Estado é ineficiente e que o condenado não poderia ser prejudicado por este desvio na execução da pena, a doutrina e jurisprudência predominantes entendem nestes casos que não é devida a concessão da remição ficta. Tal resistência para conceder a remição ficta se justifica principalmente no modelo punitivista das sociedades modernas, que eleva a pena privativa de liberdade como fundamental forma de punição, que na verdade não se presta à ressocialização, mas à reincidência. Percebe-se que as razões para se resistir à extinção da prisão são as mesmas razões que levam à não aceitação da remição ficta.

Por fim, (re)afirma-se que o “problema” da superpopulação carcerária do Brasil e do tratamento desumano e degradante aos presos no cárcere, não será resolvido de outra forma que não seja a conscientização dos juízes e dos juristas de que existem meios de se resolver, ou ao menos minimizar, os problemas do cárcere e que uma delas é a remição ficta.


Artigo publicado originalmente na Revista Eletrônica da Universidade Católica de Salvador - UCSAL:

Carvalho, Silvana Sá de (Org.) Coletânea de artigos: prêmio melhor artigo de TCC – Salvador, 2015, p. 36-44.

Disponível em: http://www.ucsal.br/articles/0004/0042/Melhores_Artigos_TCC_2014.pdf


Notas e Referências:

*Artigo redigido sob orientação de Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo - Mestre em Direito Público pela UFBA, Pós-Graduado em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL. Professor de Direito Penal da Universidade Salvador – UNIFACS; e Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador – UCSAL.

[1] Cf. tal informação em: World Prison Population List (tenth edition) - International Centre for Prison Studies (ICPS). Disponível em: <http://www.prisonstudies.org/sites/prisonstudies.org/files/resources/downloads/wppl_

10.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.

[2] AI 580259 AgR, Relator (a): Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma. Julgado em: 25/09/2007.

[3] HC 175718 Relator (a): Min. Marilza Maynard. Julgado em: 05/12/2013.

[4] Cf. (AQUI..., 2014)

[5] Cf. tal informação em: Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça. Dados de 2002 e 2012.

[6] Neste sentido Lucas Corrêa Abrantes Pinheiro afirma ainda que em regra, nenhuma alteração da legislação penal e processual penal é feita sob a ótica do favorecimento dos subjugados pelo sistema punitivo. A nova remição de penas. Comentários à Lei 12.433/2011. Disponível em: <http://www.gecap.direitorp.usp.br/index.php/2013-02-04-13-50-03/2013-02-04-13-48-55/artigospublicados/14-artigo-a-nova-remicao-de-penas-comentarios-a-lei-12-433-2011>. Acesso em: 16 ago. 2014.

AQUI ninguém dorme sossegado. Violações dos direitos humanos contra detentos. São Paulo: Seção Brasileira da Anistia Internacional. Disponível em:<http://www.amnesty.org/en/library/asset/AMR19/009/1999/pt/d4a44801-e1e1-11dd-a03a-6b5b1 e49bce3/amr190091999pt.pdf> Acesso em: 20 out.2014.

AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Afinal, para que serve a pena? A tragédia da autoridade? Revista Jurídica Consulex, Brasília, Ano XVIII, n. 413, abril, 2014.

______. Superlotação do cárcere: um problema para o Estado? Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 80, set 2010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8337>. Acesso em: 17 out.2014.

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5. ed. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999.

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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 1459.

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LEAL, César Barros. A execução penal na América Latina e no Caribe: realidade e desafios. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 12, n. 50, setembro/outubro 2004.

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SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia crítica e a reforma da legislação penal. XIX Conferência Nacional dos Advogados. 25-30 set. 2005. Florianópolis- SC. Disponível em: <http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/criminologia_critica_reforma_legis_penal.pdf> Acesso em: 30 set. 2014.

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WORLD PRISON POPULATION LIST (tenth edition) ─ International Centre for Prison Studies (ICPS). Disponível em: <http://www.prisonstudies.org/sites/prisonstudies.org/files/resources/downloads/wppl_10.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.


Clarissa Carvalho Moura Rocha

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Clarissa Carvalho Moura Rocha é Advogada e Pós-graduanda em Direito Previdenciário pela Universidade Católica do Salvador

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Imagem Ilustrativa do Post: Studying // Foto de: Kim Siever // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kmsiever/2823017461/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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