Religião e civilização  

25/11/2018

 

Religião, cultura e civilização são termos conexos, que se referem a aspectos essenciais da vida social, ainda que o primeiro seja visto por muitos com restrição, associando-o a uma forma antiga de pensamento irracional.

Historicamente, a religião está na origem da nossa civilização, tanto na formação do direito romano, como pode ser constatado no clássico livro “A Cidade Antiga”, do historiador Numa-Denys Fustel de Coulanges, obra que pode ser baixada gratuitamente pela internet, quanto pela influência do pensamento judaico-cristão, tendo sido o pensamento religioso fundamental para a revolução científica da modernidade, como destacado no artigo “Revolução e evolução” (http://emporiododireito.com.br/leitura/revolucao-e-evolucao-por-thiago-brega-de-assis), revolução que permanece em curso, porque o significado das coisas, após a física do século XX, ainda não foi compreendido, urgindo sejam reformuladas as hipóteses filosóficas a partir dos conhecimentos adquiridos desde o quantum de ação.

Outrossim, o entendimento da realidade passa pela compreensão da física quântica e da relatividade, e penso que nesse aspecto David Bohm, um dos maiores cientistas-filósofos dos últimos tempos, é uma referência que deve ser destacada, apesar de ter sido ignorado pela comunidade científica tradicional. Um documentário está sendo produzido para homenagear Bohm (http://thebohmdocumentary.org/), podendo ser visto na amostra disponibilizada no citado sítio eletrônico que Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica, diante da proposta científica de Bohm, e do fato de não poder desmenti-la, decidiu por um boicote às ideias de David Bohm, dizendo que este deveria ser ignorado. No trecho liberado, Lee Nichol afirma que talvez sejam necessários quinhentos anos para que a humanidade possa apreciar o trabalho de Bohm.

Considero as ideias de Bohm fundamentais para a compreensão do mundo, e mesmo do Cristianismo, cujas escrituras são citadas por ele em algumas oportunidades, permitindo a unificação de conceitos religiosos e científicos, para formação de uma verdadeira e integral civilização humana, e isso talvez seja um dos motivos de sua rejeição pela comunidade científica, mesmo sendo ele considerado por Einstein seu filho espiritual, como afirmado no documentário.

Existe um canal no YouTube, “David Bohm Society”, com vários áudios de palestras e diálogos com Bohm, que valem ser ouvidos, para os que têm boa compreensão auditiva da língua inglesa. No áudio “David Bohm: On Meaning, Culture, Conditioning, and Insight” (https://www.youtube.com/watch?v=v_IU_z7PQh4 – o áudio foi editado cortando as perguntas e deixando apenas as falas de Bohm, o que dificulta o entendimento), o tema da cultura é enfrentado, identificando-o com a ideia de significado das coisas. Ele afirma que cultura é significado compartilhado, com sentidos pressupostos, condicionados, sustentando que esse condicionamento pode prejudicar a correta percepção da realidade.

É possível dizer que a religião, da mesma forma, está ligada a significados compartilhados e pressupostos, o que é também a base da civilização, enquanto vida em comunidade fundada em uma organização simbólica de mundo, com valores hierarquicamente pressupostos, os quais os membros do grupo humano esperam sejam respeitados, sob pena de violação da civilidade, e de incursão em barbaridade.

Civilização decorre do termo latino “civis”, ligado a cidade e cidadão. No tempo romano, os locais ocupados e controlados por Roma eram considerados uma extensão daquela cidade, porque onde havia controle territorial por Roma era considerado integrante dessa “cidade”, e daí a existência de uma civilização romana. A civilização é a significação cósmica, como ordem geral do mundo, que uma comunidade pública compartilha, que pode ser ampliada nos planos espacial e humano, dominando um amplo espectro da vida humana social.

A ideia de civilização está relacionada à de significados mais amplos, de uma cultura total, plena, que abrange todos os aspectos da vida, ao contrário de culturas parciais, restritas a algum ou alguns aspectos da vida. Uma cultura considerada correta, no sentido de uma forma correta de trabalhar simbólica e praticamente os fenômenos da vida, e da natureza, pode ampliar sua âmbito de influência para alcançar um caráter civilizatório, quando os valores e significados de mundo daquela cultura são amplamente compartilhados em várias comunidades humanas ligadas por vínculos linguísticos, econômicos, religiosos, jurídicos etc.

Uma civilização é, portanto, uma cultura, como um complexo de conhecimentos e atitudes perante o mundo, que passa a ser aceita como correta, verdadeira, cujo movimento, enquanto atividade exercida ao longo do tempo, desenvolve a humanidade de todos, enquanto aquilo que contraria os valores civilizacionais é considerado bárbaro, associado à barbárie, à selvageria, à crueldade.

Quando duas culturas amplas, ou duas civilizações, se encontram, pode haver conflito, decorrente das diferentes formas de significar e valorar os fenômenos da vida. A guerra cultural é, assim, uma guerra espiritual, sobre a interpretação do mundo, o sentido da humanidade, sobre o significado total das coisas, ou a ausência de significado.

A civilização humana, ou Humanidade, surge, portanto, de várias guerras culturais, e será considerada, ao final, como autêntica civilização aquela que melhor expressar, em termos teóricos e práticos, os melhores conceitos e resultados sobre a melhoria efetiva da vida humana em sociedade. Em geral são necessários muitos anos, talvez séculos, para que o julgamento de uma civilização, ou de alguns aspectos de suas práticas sociais, possa ser feito adequadamente, quanto aos efeitos benéficos ou prejudiciais para manutenção da vida humana no planeta.

A civilização humana é o resultado das interferências recíprocas entre as culturas antigas, da Pérsia, Babilônia e Egito, por exemplo, sucedidas pelos domínios de Grécia e Roma, depois por uma ideia de Cristianismo, e na fase atual é fortemente associada ao materialismo cientificista, ainda que no plano religioso permaneça uma concepção de Cristianismo, que é parcial, decorrente das cisões agostinianas e cartesianas, insuficiente para o desenvolvimento da humanidade. Ainda que nominalmente a religião predominante da população ocidental seja alguma forma de Cristianismo; na prática, de fato, domina uma religião fundada no materialismo mecanicista.

Nesse sentido, é indispensável que o mundo Cristão reflita sobre a proposta civilizacional de Agostinho de Hipona, e sobre o significado mais profundo da Religião do Messias, pois quanto mais avançam os conhecimentos científicos, e quanto maior o tempo que nos separa do tempo de Agostinho, mais clara fica a insuficiência filosófica e teológica de se estabelecer uma dupla cidadania sobre as pessoas, uma cidade das almas e outra dos corpos, porque o Cristianismo é uma religião política e espiritual, e não apenas uma questão de salvação individual das almas.

“De Salomão. Ó Deus, concede ao rei teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei; que ele governe teu povo com justiça, e teus pobres conforme o direito. Montanhas e colinas, trazei a paz ao povo. Com justiça ele julgue os pobres do povo, salve os filhos do indigente e esmague seus opressores” (Sl 72, 1-4).

E sobre o jejum, uma atividade tipicamente religiosa, espiritual, assim Iahweh falou, por meio do profeta:

“Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo o jugo? Não consiste em repartires o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é tua carne? Se fizeres isto, a tua luz romperá como a aurora, a cura das tuas feridas se operará rapidamente, a tua justiça irá à tua frente e a glória de Iahweh irá à tua retaguarda. Então clamarás e Iahweh responderá, clamarás por socorro e ele dirá: ‘Eis-me aqui!’ Isto, se afastares do meio de ti o jugo, o gesto ameaçador e a linguagem iníqua; se tu te privares para o faminto, e se tu saciares o oprimido, a tua luz brilhará nas trevas, a escuridão será para ti como a claridade do meio-dia” (Is 58, 6-10).

Por mais que a caridade religiosa tenha sido socialmente útil, pela criação de universidades, hospitais, pela alimentação dos pobres, em virtude da ação de igrejas Cristãs e seus membros, o Cristianismo somente será pleno quando for, em sua correta prática, pautada pela Mensagem, pelo Evangelho, pela repetição do exemplo de Jesus, a religião do Governo, na medida em que o Cristianismo é a Religião, ou Ciência, da Política autêntica, a Filosofia dos Reis, porque Jesus Cristo, o Messias, é “a testemunha, o fiel, o primogênito dos mortos e o regente dos reis da terra” (Ap 1, 5).

O livro do Apocalipse narra, destarte, o percurso histórico do Evangelho até que sua essência política seja compreendida, e finalmente aplicada, quando o egoísmo não será mais praticado politicamente, entre as nações, como consta no capítulo 20, porque a razão, ou o espírito, que separa a humanidade, Satanás, ou Diabo, será acorrentado por mil anos, tempo em que os Governantes mirarão e replicarão o exemplo de Cristo, época que será de preparação coletiva para a verdadeira civilização, a cidade cósmica, em que o próprio Espírito de Deus estará entre nós, na derradeira capital da Humanidade, a nova Jerusalém:

Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!” (Ap 21, 3-4).

 

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