Relatos e depoimentos processuais como as narrativas que formam o mundo do processo - Por Paulo Silas Taporosky Filho

29/10/2017

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Quais são as personagens que fazem parte do processo? Pergunto no sentido de buscar saber quem são as partes responsáveis pelas informações que serão utilizadas para construir o mundo do processo – e digo aqui mundo enquanto aquilo que está nos autos. Em que pese para facilitar a compreensão do que aqui busco brevemente expor seja possível lembrar daquele velho brocardo quod non est in actis non est in mundo, a presente análise do processo enquanto mundo não traduz exatamente a mesma ideia intencionada com esse axioma jurídico. 

A comparação pode ser feita com o literário. Um livro que o leitor possui em mãos se trata de um mundo próprio. A história narrada naquela obra é aquilo que está ali, é aquilo que é contado pelo narrador, é aquilo que consta relatado nas páginas que compõem o livro. Fora disso é mera imaginação do leitor que está para além do mundo literário constante na obra, ou seja, não faz parte daquele mundo. Mas será que é sempre assim mesmo? 

Quando temos um narrador que não faz parte da história, e aqui digo no sentido de não ser o protagonista ou qualquer outra personagem contando aquilo que se passa na obra, essa ideia do mundo ser apenas aquilo que é contado soa defensável, pois o narrador, em tese, tratando-se de um terceiro não envolvido diretamente com as pessoas mencionadas na história, relata ao leitor aquilo que é. 

Victor Hugo ao contar a história de Jean Valjean, adotando como narrador um terceiro não componente da história, consegue transmitir ao leitor uma perspectiva mais fiel do desafortunado, não permitindo que se possa defender uma imagem deturpada desse como várias personagens possuíam. É por isso que se pode dizer que a imagem que Javert tinha de Jean Valjean é equivocada, assim como todos aqueles que lhe negaram comida, repouso e trabalho ao sair da prisão, pois o leitor, sendo conhecedor da história como um todo, ou seja, possuindo uma perspectiva holística do mundo de “Os Miseráveis” que se estabelece mediante a forma da narrativa constante na obra, sabe que faltam informações àqueles que julgaram erroneamente Jean Valjean. 

Mas e quando a história é contada por um protagonista ou qualquer outra personagem componente desse mundo literário? Temos nessa situação alguém que faz parte do objeto de análise estabelecendo uma posição assumida em decorrência de uma perspectiva, ou seja, a narrativa é construída não através de uma visão holística, mas sim com base nas percepções daquele mundo literário de um único alguém. As informações que chegam ao leitor, portanto, são parciais – no sentido de que o julgamento sobre determinada situação contada na história é formado pela perspectiva do narrador, sem que se dê chance de defesa num sentido contrário, pois a visão de mundo da personagem que conta a história é aquela que é transmitida ao leitor, formando o todo daquele mundo literário com base em parte dele – a perspectiva do narrador. 

A grande questão da traição ou não de Capitu contra Bentinho decorre justamente disso. Se em “Os Miseráveis” temos um narrador terceiro que conta a história, possibilitando ao leitor defender que aquilo que é contado na obra é a verdade daquele mundo literário, em “Dom Casmurro” temos o protagonista funcionando como narrador, de modo que tudo aquilo que é contado ao leitor se trata da perspectiva de alguém que faz parte da própria história narrando sobre o próprio mundo no qual está inserido. Nesse caso, Capitu não possui o direito de se defender da acusação contra si lançada, já que a perspectiva da narrativa não é sua e nem de um terceiro não envolvido na história. Sendo assim, assumir a traição de Capitu é tomar como verdade a perspectiva de um narrador que faz parte daquele todo, ou seja, é tomar como verdade o todo pela parte. Vale lembrar que essa verdade é estabelecida por Bentinho através de pistas, assim entendidas pelo próprio, que são reunidas a fim de formar uma espécie de acervo probatório e resultar na conclusão de que a traição ocorreu. Entretanto, essa construção é feita através de ilações, por mais fortes que pareçam ser para alguns, e não por algo mais concreto. Bentinho nunca flagrou Capitu o traindo. 

Essa questão da perspectiva do narrador no literário (quem exerce esse papel?) gera muitos debates, uma vez que há tanto quem defenda que a verdade do todo do mundo literário é estabelecida pelo narrador independentemente de quem ele seja e de como isso é contado, como quem defenda que a perspectiva do narrador merece ser levada em conta para que possa ou não ser possível estabelecer verdades sobre o mundo literário. É também devido a esse tipo de escolha de posição assumida pelo leitor, reconhecida ou não, que a discussão acerca da traição ou não de Capitu surge. 

A intenção com o presente texto não é fazer defesa ou crítica de qualquer dessas posições. Antes, busca-se apenas expor que esse debate também cabe, mesmo que de modo análogo, no campo jurídico. 

Quem narra o processo? Se várias partes contam versões diferentes de uma mesma história, qual deve prevalecer e por quais razões? Como se decide qual dos vários relatos existentes num processo será apto a embasar a narrativa que colocará fim ao embate? 

Note-se que com base em diferentes relatos (testemunhas, vítima, acusado, informantes, peritos...), cada parte constrói a sua própria narrativa ao escolher quais desses diz mais respeito ao seu próprio interesse em jogo, intencionando que cada qual seja escolhida como a válida por aquele que decidirá a história mais crível e estabelecerá como sendo a “verdade” daquele processo. 

Essa aproximação, dentro da perspectiva aqui exposta, do literário com o jurídico, é perfeitamente possível, desde que consideradas também os pontos em que se afastam – quando, por exemplo, tem-se que enquanto o definidor da “verdade” literária afeta apenas personagens “irreais”, aquele que estabelece a “verdade” do processo acaba por gerar consequências concretas na vida de pessoas que existem de fato. 

Dentre as várias questões que podem ser analisadas, discutidas e eventualmente dirimidas, poderíamos indagar se a narrativa estabelecida como definidora da história é construída de igual modo no literário e no jurídico, mas isso num sentido específico, a saber, levando-se em conta que enquanto no literário se tem, geralmente, apenas um narrador, podendo ser um terceiro ou alguém que faz parte da história contada, no jurídico, mais precisamente no processo, têm-se vários narradores e dos mais diversos tipos, sendo que dentre esses vários relatos apenas um será estabelecido como o “verdadeiro”, podendo ainda assim sofrer algumas modificações em seu “todo” original. 

Os relatos e os depoimentos processuais funcionam como as narrativas que compõem o mundo do processo. Se na literatura já há espaço para questionar a perspectiva do narrador, pondo-se dúvida sobre se aquilo que é contado compõe ou não uma espécie de um “todo” próprio que merece ser lido como “verdade”, o que dizer então do jurídico, ou mais precisamente, do processo? Essa é uma, dentre tantas, das abordagens possíveis para se analisar a questão.


[1] Texto originalmente escrito para o portal “Sala de Aula Criminal” – Publicado em 24/10/2017 em: http://www.salacriminal.com/home/relatos-e-depoimentos-processuais-como-as-narrativas-que-formam-o-mundo-do-processo

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