Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann
O tema “reintegração familiar” aponta a necessidade de referendarmos o art. 227 da Constituição Federal, no tocante a responsabilidade compartilhada da família, da sociedade e do Estado, portanto, avoca a questão do tripé da co-responsabilidade.
Winicott já nos alertara a um necessário pertencimento, na sua obra: “A criança e o seu mundo”[1], mas que mundo?
O mundo como o lugar, no qual ela se reconhece como ser: primeiramente a família, depois os primeiros contatos – a escola, os amigos, enfim, a sociedade, em um Estado que deveria resguardar, promover direitos.
No entanto, muitas vezes e, infelizmente, não são harmoniosas essas relações e por “n” motivos, que face aos vinte minutos da minha intervenção, seria impossível descrever as múltiplas ações que podem ocorrer nas famílias e se constituem como violadoras ao desenvolvimento sadio e harmonioso de crianças e adolescentes.
Em minha pesquisa de pós doutorado recém concluída na UnB, sob a supervisão do Prof. Dr. Airton Cerqueira-Leite Seelaender, retomei os estudos sobre a violência doméstica – a violência como o lugar das sombras, do sofrimento, da coisificação, em oposição a Doutrina da Proteção Integral e seu arcabouço normativo: a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Constituição Federal de 1988, a sua norma regulamentadora: o Estatuto da Criança e do Adolescente, somando-se as alterações que este tem sofrido. E assim tem sido, como exemplo, podemos citar a Lei n. 12.010/2009 (conhecida à época como a “Nova Lei da Adoção”), a Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014, conhecida, como Lei Menino Bernardo; a Lei n. 13.257, de 8 de março de 2016 - Marco Legal da Primeira Infância; a Lei n. 13.431, de 4 de abril de 2017 - Lei da Escuta Especializada e Depoimento Especial e a Lei n. 13.509, de 22 de novembro de 2017, a mais recente Lei da Adoção, entre outras.
Qual a justificativa para essas alterações? Um único objetivo: dar uma maior efetividade a Doutrina da Proteção Integral, com vistas ao aprimoramento de seus institutos. Nesse sentido é extraordinário o quanto o microssistema jurídico: o Estatuto da Criança e do Adolescente curva-se frente ao ramo autônomo do Direito da Criança e do Adolescente.
Dentre as leis citadas, que promoveram alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente, no contexto deste painel, oportuno colocar em relevo a Lei Menino Bernardo, pois ela traz para a ambiência do Estatuto algo que até então, não havia sido objeto de uma atenção diferenciada: a questão do castigo, em que pese a Convenção, a Constituição e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecerem que nenhuma forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão seria permitida.
Quantas vezes, exatamente, a criança, o adolescente são retirados emergencialmente de suas casas por conta de violências, sejam as físicas – dos maus tratos à violência sexual –, como também as violências de natureza psicológica.
Em função disso, e não sem razão, o tema da “reintegração familiar” pode causar desconforto. Como reintroduzir a criança à família se ela foi violadora?
Em tempos de pandemia, como estamos vivendo, o tema é ainda mais complexo. Imperioso anotar que entre as “Recomendações do Conanda para proteção integral a crianças e adolescentes durante a pandemia do Covid-19”, de 25 de março de 2020[2], encontramos a recomendação 15.a.1) Reintegração às famílias de origem (natural ou extensa)[3]. A Portaria 59, de 22 de abril de 2020[4], que aprova a Nota Técnica nº 11/2020 no tocante ao atendimento nos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no contexto de emergência em saúde pública decorrente do novo Coronavírus, COVID-19, estabelece:
5.1 Medidas para fortalecer alternativas de proteção à criança e ao adolescente em ambiente familiar seguro e assegurar a excepcionalidade e a provisoriedade do Acolhimento Institucional.
[...]
5.1.3 Medidas para manter a criança ou o adolescente em ambiente familiar seguro e prevenir o acolhimento.
5.1.3.1 Nos casos de violência intrafamiliar ou de outras situações graves de violação de direitos no âmbito familiar que possam ensejar a aplicação da medida de acolhimento, indica-se que sejam verificadas também outras possibilidades que garantam a proteção da criança ou adolescente sob cuidados de familiares ou pessoas próximas com quem tenham vínculo de afeto e confiança, e que tenham condições de prover seu cuidado e proteção.
5.1.3.2 Nesse sentido, recomenda-se a análise caso a caso e a avaliação quanto à possibilidade de utilização de alguma das seguintes alternativas para atender ao superior interesse da criança e do adolescente:
a) Precedência da aplicação do disposto no Art. 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, afastamento do agressor da moradia comum: Nas situações em que a convivência com um dos pais ou outra pessoa que resida no domicílio apresente risco à segurança e integridade física e psíquica da criança ou do adolescente, deve-se atentar para a precedência da aplicação do disposto no Art. 130 do ECA. Apenas quando isso não for possível ou adequado, deve-se buscar outras alternativas de proteção que envolvam o afastamento da criança ou do adolescente do lar. (grifou-se)
E ainda:
5.1.4 Medidas para abreviar, de forma segura, a permanência no Serviço de Acolhimento.
5.1.4.1 Durante o período de Emergência em Saúde Pública, há que se pensar em alternativas possíveis para abreviar, de forma segura, a permanência nos Serviços de Acolhimento Institucional, buscando soluções mais benéficas às crianças e aos adolescentes.
5.1.4.2 Neste sentido, recomenda-se a análise caso a caso e a avaliação quanto à possibilidade de utilização de alguma das seguintes alternativas para atender ao superior interesse da criança e do adolescente:
a) Análise da situação de cada criança ou adolescente acolhido e das reais possibilidades de retorno à família de origem, nuclear ou extensa: reintegração familiar de crianças e adolescentes em Serviços de Acolhimento Institucional, quando observadas condições seguras para cuidado e proteção junto à família de origem, nuclear ou extensa, com vínculo afetivo. Nos processos de reintegração familiar em curso, quando a medida for avaliada pela equipe técnica como segura para a criança ou adolescente e voltada a seu superior interesse, recomenda-se proceder à sua finalização no menor tempo possível. Ressalta-se que deve ser assegurado o acompanhamento - ainda que remoto durante o período da pandemia - da família, no pós-desligamento da criança ou adolescente acolhido, por período não inferior a 6 (seis) meses, pela equipe técnica do serviço de acolhimento em conjunto com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS ou o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) - dependendo do arranjo local. (grifou-se)
Vê-se a importância que esses regramentos dão à reintegração à família de origem ou extensa, dentro de um quadro de absoluta cautela.
Voltemos ao ponto central: se a criança e o adolescente foram retirados de casa é porque viviam em ambiente violento, despreparado para a maternagem/paternagem.
Não à toa que em função da violência a que a criança estava sendo submetida, muitos advogam a tese do acolhimento familiar ou institucional, o apadrinhamento, bem como a colocação em família substituta (guarda, tutela e adoção), quase que de forma imediata.
Como é difícil essa questão. A criança para ser reintegrada à sua família de origem é preciso que a “causa” da separação tenha sido trabalhada/sanada, daí configura-se a imprescindibilidade de políticas públicas para as famílias, famílias essas em suas mais variadas formas e arranjos. Inclusive, e o mais importante, políticas públicas que chegassem antes da violência ter se consumado.
Sobre a concepção de família, famílias, um ponto deve ser comum a todas: ser o lugar da amorosidade, da responsabilidade, da formação de valores, da proteção integral (integral e não parcial, pois não se ama e se cuida em partes).
Por isso a revolução copernicana promovida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes, a família se configurava como centralizadora, na figura do pater familiae. Passou-se, fruto de um longo processo de construção do reconhecimento do ser criança, a compreensão da criança sujeito de direito, em oposição à criança objeto, tutelada, inferiorizada, coisificada pelo então “Direito do Menor”. Tem-se, portanto, uma nova configuração da verticalização para a horizontalização das relações familiares.
Por isso tenho um especial apreço pela Lei Menino Bernardo no seu projeto pedagógico-humanitário de educar a família para a cultura da não violência. Exatamente por isso que, quando da sua edição, o mesmo fora objeto de severas críticas. Para que mais uma lei se ela não pune os pais? Gritavam muitos.
Não era esse o seu sentido. Ela veio com o propósito de alertar às famílias, que a imposição dos castigos, cuja prática fazia parte da “normalidade” do pátrio poder do Código Civil de 1916[5] e também no Código Civil de 2002[6], era inaceitável e que o lugar da criança/do adolescente é um ambiente familiar que a proteja. Assombra-me que, no tocante ao respeito, ao cuidado com a criança, que o atual Código Civil, não havia, originariamente, se constitucionalizado, mesmo tendo sido editado/publicado doze anos após a Constituição Federal.
A família como o lugar que atenda o exato sentido do poder familiar – o lugar da responsabilidade, da amorosidade, do respeito, com todos os seus membros. O que implica na compreensão exata da palavra autoridade, se a tomarmos não sentido latino (“auctoritas”) do direito ou poder de ordenar, de se fazer obedecer, de decidir, que é a predominante na nossa formação, mas na sua origem grega (“exousia”), como dom capaz de alcançar o coração.
Na minha percepção se pais, mães, responsáveis tivessem essa compreensão, as relações familiares não seriam violentas. Portanto, insisto, o quanto se faz necessário compreender a Doutrina da Proteção Integral com vistas a garantir o pleno, sadio e harmônico desenvolvimento das crianças. A reintegração à família de origem é importantíssima, mas deve sempre ser vista e pensada dentro do paradigma na proteção integral.
Notas e Referências
BRASIL. Código Civil. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 5 jul. 2020.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 5 jul. 2020.
Recomendações do Conanda para proteção integral a crianças e adolescentes durante a pandemia do Covid-19”, de 25 de março de 2020. Disponível em:
http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2020/04/01/17_45_13_710_recomendacoes_conanda_covid19_25032020.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020.
VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança - 30 anos: sua incidência no Estatuto da Criança e do Adolescente. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.
VERONESE, Josiane Rose Petry (autora e organizadora). Direito da Criança e do Adolescente: novo curso, novos temas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
VERONESE, Josiane Rose Petry (org.). Estatuto da Criança e do Adolescente: 30 anos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
WINNIC OTT, D.W. A criança e o seu mundo. 6. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
[1] WINNIC OTT, D.W. A criança e o seu mundo. 6. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
[2] Recomendações do Conanda para proteção integral a crianças e adolescentes durante a pandemia do Covid-19”, de 25 de março de 2020. Disponível em:
http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2020/04/01/17_45_13_710_recomendacoes_conanda_covid19_25032020.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020.
[3] 15. Que as crianças e adolescentes em regime de acolhimento institucional (casa-lar e abrigos) tenham seus direitos garantidos, observando a Recomendação 313 do Conselho Nacional de Justiça, especialmente por meio de:
Adaptação das rotinas institucionais, em todo o território nacional, visando manter o atendimento às crianças e adolescentes em regime de acolhimento institucional, mas que as mesmas possam preferencialmente ter garantidas as possibilidades de convivência familiar por meio de:
Reintegração às famílias de origem (natural ou extensa);
Mudança para o regime de acolhimento familiar (famílias acolhedoras);
iii. Permanência temporária com padrinhos afetivos previamente selecionados e orientados;
Inserção em família adotiva, obedecendo os trâmites processuais em vigor.
[4] A Portaria 59, de 22 de abril de 2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-59-de-22-de-abril-de-2020-253753930. Acesso em: 5 jul. 2020.
[5] BRASIL. Código Civil. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916:
Art. 395. Perderá por ato judicial o pátrio poder o pai, ou mãe:
Que castigar imoderadamente o filho.
Que o deixar em abandono.
III. Que praticar atos contrários à moral e aos bons costumes.
[6] BRASIL. Código Civil. Lei n. Lei n o 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
V - entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)
Parágrafo único. Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
I – praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
II – praticar contra filho, filha ou outro descendente: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão. (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
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