Reintegração em família extensa de crianças e de adolescentes acolhidos institucionalmente: o peso da consanguinidade nas concepções de família que rondam o imaginário dos profissionais envolvidos em processos judiciais de Perda e Suspensão do Poder Famil

14/05/2017

Por Fernanda Ely Borba – 14/05/2017

O parágrafo primeiro do artigo 39 do Estatuto da Criança e do Adolescente[1], Lei Federal nº 8069/90, preceitua que a colocação de crianças e adolescentes em família substituta na modalidade adoção deve ser precedida da criteriosa análise das perspectivas de reintegração em família de origem, seja nuclear ou extensa[2].

Sabiamente, o mencionado Estatuto assevera que o encaminhamento de crianças e de adolescentes para adoção somente será promovida após o esgotamento dos investimentos na família de origem. Isto porque se, hipoteticamente, o referido Estatuto veda o encaminhamento de crianças e adolescentes para adoção em decorrência da condição de pobreza das famílias de origem[3], o enredo das histórias que permeiam os processos judiciais de Perda e Suspensão do Poder Familiar é eivado de motivadores que estão diretamente relacionados à pobreza[4] e aos processos de exclusão social decorrentes da privação de direitos sociais mais elementares (saúde, educação, alimentação, moradia, acesso ao trabalho e à renda, dentre outros). Tais processos poderão repercutir, inclusive, nas potencialidades das famílias exercerem os cuidados parentais da prole de forma adequada.

Nesse sentido, nada mais justo do que oportunizar às famílias empobrecidas possibilidades de acessarem direitos básicos de cidadania, o que muito provavelmente poderá incidir em avanços na prestação dos cuidados parentais.

Todavia, uma das expressões mais perversas do acesso precário aos direitos sociais -dentre eles a ser educado e protegido na família de origem, conforme reza o Estatuto da Criança e do Adolescente -, é a violação de direitos da prole por meio do cometimento de práticas de violência. Aí não estamos mais falando em negligência nos cuidados das crianças e adolescentes, mas em violência física, psicológica e/ou sexual, amplificando os níveis de complexidade da análise sobre as perspectivas de reintegração à família de origem.

Nesse diapasão, a referida análise reveste-se de características como a urgência, a dinamicidade, e o olhar acurado sobre as reais possibilidades de reinserção familiar, sobretudo ante a situações em que a restituição de direitos sociais se coloca como pouco provável (seja pelas precárias políticas sociais de corte neoliberal, que pouco têm a efetivamente contribuir para as mudanças na família que incidam em melhoria no padrão de cuidados; seja porque as situações que engendram os processos de Perda e Suspensão são deveras complexas, e o engajamento das famílias nos processos de mudança nos cuidados parentais é reduzido).

Quer dizer, há dois relógios que correm em descompasso: o relativo à criança/adolescente, visto que maior a idade menores as chances de colocação em família adotiva[5]; e por outro lado, o relógio da família de origem que corre a passos lentos, posto que as modificações em torno da restituição de direitos são na maior parte das vezes morosas.

Ou seja, administrar compassos tão diversos atendendo ao princípio da prioridade absoluta da criança e adolescente[6] certamente tira o sono dos diversos atores envolvidos em processos judiciais desta natureza. E, por vezes, tais atores que se deparam na arena em que os processos de Perda e Suspensão se desenrolam podem ser capturados por respostas imediatas, impensadas, e que a princípio podem se configurar numa solução aos impasses frente à afirmação do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes.

Nesse cenário, uma das questões inquietantes e que nos instigam a uma parada para reflexão diz respeito ao peso da consanguinidade nas diversas concepções que rondam o imaginário dos profissionais que interagem nessa demanda. Extraem-se fórmulas mágicas e receitas prescritas, que se traduzem em respostas que devem ser fielmente perseguidas. Numa expressão concreta disso, temos a persistência da reintegração de crianças e adolescentes em famílias extensas desprovida da análise mais acurada sobre as reais potencialidades para desempenhar os cuidados parentais numa perspectiva de continuidade.

Por conseguinte, importante questionarmos em que medida as concepções de família enraizadas no imaginário social ainda se fundamentam na preponderância da consanguinidade como elemento constituinte. Além disso, o quanto podem influenciar decisões sobre os rumos de vida de crianças e adolescentes que aguardam o deslinde da ação judicial que motivou a institucionalização, de modo a ter garantida a convivência em família.

Aprofundar o conhecimento sobre a diversidade de arranjos dos quais as famílias se organizam, e em que medida os valores morais relativos à tradicional família nuclear burguesa - estruturada nos laços sanguíneos como critério formador - influenciam a concepção de mundo dos atores envolvidos em processos judiciais pode configurar-se num divisor de águas para a definição dos rumos de vida de crianças e adolescentes.

Desse modo, a reintegração de crianças e adolescentes à família extensa deve em primeiro lugar reverter-se em benefício delas, em detrimentos dos interesses dos adultos. Isto porque é direito fundamental da criança/adolescente viver numa família que esteja efetivamente motivada a cuidá-la enquanto filha(o), a despeito do mero dever baseado na consanguinidade. Persistir numa reinserção a todo custo pode contraditoriamente resultar no protelamento das chances reais de uma criança ou adolescente efetivamente viver em família.


Notas e Referências:

[1] Art. 39. § 1º) A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei.

[2] Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.

Parágrafo único.  Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.

[3] Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.

§ 1º Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em serviços e programas oficiais de proteção, apoio e promoção.

[4] Conforme Telles (1992), a pobreza, antes de mais nada, é uma condição de privação de direitos. IN: TELLES, Vera da S. A cidadania inexistente: incivilidade e pobreza. Um estudo sobre trabalho e família na Grande São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1992.

[5] Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2016), constam no Cadastro Nacional de Adoção cerca de 35 mil pretendentes habilitados no país e 6.594 crianças disponíveis à adoção. Destas, apenas 8% tem menos de 03 anos de idade.

[6] Art. 100. Na aplicação das medidas [de proteção] levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. X - Prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta.


Fernanda Ely BorbaFernanda Ely Borba possui graduação (2004) e mestrado (2007) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o ano de 2008, lotada no Fórum da Comarca de Chapecó/SC. Atualmente é aluna do curso de pós-graduação lato sensu Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes, promovido pela PUC/RS. Integra o  Núcleo de Pesquisas Sobre Violência (NESVI/UNOCHAPECO). Participa da União Brasileira de Mulheres (UBM) sediada em Chapecó/SC. Compõe a Associação Catarinense dos Assistentes Sociais de Poder Judiciário de Santa Catarina (ACASPJ), exercendo o cargo de presidente do Conselho Fiscal (triênio 2017-2020). Estuda o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes desde o ano de 2002, quando passou a integrar o Núcleo de Pesquisas em Violência do Departamento de Serviço Social da UFSC (NEPEV/DSS/UFSC). 


Imagem Ilustrativa do Post: Recreo // Foto de: Hernán Piñera // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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