Reforma tributária. Estamos resolvendo o problema certo? O custo oculto da não cumulatividade brasileira.

16/08/2020

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

A reforma tributária que tramita no Congresso Nacional parece ter como foco, em ambos projetos ora sob análise, PEC 110/2019 e PEC 45/2019, a tributação sobre o consumo. Basicamente em ambas as propostas a solução consiste na unificação de tributos federais, estaduais e municipais em um único tributo sobre valor agregado. Pretende-se uma unificação de tributos ao custo de um aumento de alíquota e um longo período de transição de coexistência de regimes.

As propostas se diferem em diversos aspectos, conforme pode ser verificado no documento disponível no site da Câmara dos Deputados[1]. Nada obstante, o presente trabalho pretende focar naquilo que ambas as propostas têm em comum: a criação de um tributo único sobre valor agregado incidente sobre o consumo. Os projetos enumeram as vantagens de um tributo sobre valor agregado sobre consumo e citam como a maioria dos países desenvolvidos se utilizam desse tipo de tributo, para reforçar a necessidade da adoção pelo Brasil.

O objetivo do presente artigo, portanto, é debater, de maneira imparcial, sob a ótica da realidade tributária brasileira, se a adoção de tributos sobre valor agregado ou não cumulativos resulta em maior eficiência e justiça da tributação sobre o consumo. Ademais, cabe refletir se esse tipo de tributação ainda é adequado para a realidade da economia digital do século 21.

De fato, a grande maioria dos países membros da OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico) adotam a tributação sobre valor agregado no consumo de bens e serviços, denominado IVA (imposto sobre valor agregado) ou VAT (value added tax). A grande exceção a esse tipo de tributação fica por conta dos Estados Unidos, que apesar de serem uma das maiores economias mundiais, optaram pela tributação cumulativa incidente sobre a venda final ao consumidor, o sales tax.

Primeiramente, é preciso que se diga que a simples importação de teorias tributárias, especialmente baseadas em modelos econômicos que consideram condições de mercados ideais ou que são lastreados em realidades econômicas muito diversas da vivida no Brasil deve ser vista sempre com muita ressalva.

Fazendo uma analogia simples: não basta apenas copiar a receita de um grande chef, é preciso ter a habilidade de executar a receita da forma ideal e ter os ingredientes certos. O que fazemos no Brasil é importar a receita, mas na hora de executá-la trocamos ingredientes, acrescentando outros, usamos os instrumentos indevidos, simplesmente ignoramos as instruções.  O resultado é que a receita, que na teoria era ótima, vira uma refeição intragável e indigesta.

Mais importante que uma receita ideal é uma execução precisa e eficaz. Essa sim garante um belo trabalho. E nesse aspecto o Brasil peca e feio. É na eficiência que a reforma tributária precisa focar.

Em artigo acerca do instituto da não cumulatividade, André Mendes Moreira[2], cuja tese de doutorado estudou de forma aprofundada essa espécie de tributação, sintetiza as desvantagens da tributação cumulativa e por consequência a vantagem da tributação não cumulativa.

 Passamos a seguir a apresentar as vantagens da não cumulatividade enunciadas pela doutrina e a verificar se na realidade brasileira essas vantagens se concretizaram de forma efetiva.

 

 

Vantagem da não cumulatividade sobre a cumulatividade

Expectativa da doutrina

Realidade brasileira

Expectativa confirmada?

1.

Neutralidade econômica na configuração empresarial

A cumulatividade induziria a verticalização dos agentes econômicos, para reduzir o número de incidências ao longo do processo de produção e diminuir a carga tributária final do produto.

 

A economia digital mudou muito a forma de produção de bens e serviços. Não é tão usual, como no século passado, a existência de cadeias extremamente longas de produção.

Aplica-se para setores econômicos específicos, como algumas indústrias. Entretanto, gera muita distorção para setores como produtos digitais e serviços em geral, que acabam sendo onerados excessivamente, já que não tem muitas fases anteriores para gerar crédito e compensar a alíquota majorada de um tributo cumulativo.

De forma muito limitada na economia digital globalizada.

2.

A não discriminação tributária

A cumulatividade ou incidência em cascata proporcionaria às grandes empresas “além do ganho normal pela produção em escala [...]vantagens fiscais por alcançarem vários estádios da produção, refugindo a diversas incidências da exação à cascade. Tal discriminação se dá, portanto, em detrimento das pequenas e médias empresas, que nas economias modernas respondem pela maior parte dos empregos gerados;”[3]

 

No Brasil pequenas e médias empresas, geradoras da maioria esmagadora dos empregos, são tributadas, em regra, pelo regime cumulativo. Seja no SIMPLES NACIONAL, seja no lucro presumido, que determina que a PIS/COFINS nesse regime seja cumulativa. E a opção pelo regime cumulativo, ainda que opcional, é acolhida pela enorme maioria das empresas brasileiras. A opção se dá pela simplicidade da regra, menor custo de conformidade e diminuição de riscos de autuação.

 

Não.

3.

Não exportação de tributo

O tributo cumulativo encareceria o produto exportado já que o número de etapas da produção aumentaria a tributação incidente.

Os créditos das etapas anteriores de ICMS, por exemplo, não podem ser aproveitados se a operação seguinte é isenta ou não tributada. Isso gera um custo para as empresas mesmo com a não cumulatividade.

Apenas parcialmente.

4.

Transparência quanto ao valor do tributo

O imposto não cumulativo seria mais transparente que o cumulativo pois seu valor seria exatamente o montante resultante da aplicação da alíquota da venda final sobre o preço da mercadoria ou serviço.

O contribuinte que paga o imposto não faz a menor ideia do valor efetivo do tributo pago, especialmente pela circunstância de no Brasil alguns tributos integrarem sua própria base ou a base de cálculo de outros tributos, como o ICMS, PIS/COFINS e IPI.

Não.

5.

Facilidade de fiscalização e baixo custo administrativo

O tributo estilo IVA ou VAT seria mais fácil de fiscalizar que o sales tax, porque os participantes da cadeia de produção autofiscalizariam uns aos outros. Isso porque o direito de crédito do adquirente dependeria da declaração da venda pelo fornecedor.

A questão do creditamento dos tributos não cumulativos: ICMS, PIS COFINS e IPI é de dificílima fiscalização, já que demanda fiscalização de operações de contribuintes situados em diferentes Estados, com obrigações acessórias diversas e sem integração adequada de informações entre os Fiscos. São altíssimos os custos de fiscalização e conformidade. Ademais, é grande o número de fraudes ligadas ao creditamento. Hoje a fiscalização é muito mais decorrente de cruzamento de informações de inteligência fiscal sobre faturamento das empresas obtido junto a operadoras de cartão de crédito e outras fontes.

Não

 

Na proposição de políticas públicas tributárias é imperioso que se estude não apenas o custo econômico do tributo ou sua estrutura ótima de incidência. É importante analisar também os custos sociais dessas proposições, já que afetam diretamente o custo real dos tributos para o Brasil. Esses custos são, por vezes, ocultos ou ignorados pelos formuladores de políticas públicas.

Nesses custos sociais mencionaria a importância de se estudar:

  • Custos de conformidade das empresas[4]: qual o gasto com pessoal, equipamento, treinamento para cumprimento das normas tributárias? Como essa complexidade afeta o investimento do capital nacional e estrangeiro no país e o desempenho das empresas?
  • Custos administrativos do Estado: quanto custa ao Estado/contribuinte o orçamento relacionado a pessoal, equipamento e treinamento para fiscalização, cobrança e litígios tributários?
  • Custos de impacto nas relações sociais e nos objetivos de justiça: como a impunidade fiscal e a ineficiência estatal afetam a propensão do contribuinte ao pagamento do imposto? Como a morosidade e a vantagem da litigância fiscal induzem à competição desleal e retiram do mercado os bons contribuintes? Como a ineficiência arrecadatória e os constantes aumentos da carga tributária afetam as desigualdades sociais e a qualidade de vida das pessoas?

Aqui vão alguns dados da realidade tributária brasileira:

  • Segundo o relatório Doing Business[5], o Brasil é considerado o país mais complexo em termos de compliance tributário por parte das empresas. São necessárias 1.500 horas anuais apenas para cumprir essas obrigações. Isso gera um alto custo de conformidade para as empresas e um baixo índice de competitividade internacional, já que esses números afugentam os investidores;
  • O contencioso judicial e administrativo tributário do Brasil é provavelmente o mais congestionado e caro do mundo. Recente estudo promovido pelo Instituto ETCO[6] demonstrou que somente o contencioso tributário federal envolve o montante de R$ 3,4 trilhões, praticamente 50% do PIB. Um processo tributário considerando a etapa de discussão administrativa até seu trânsito em julgado leva em média 18 anos e 11 meses. No caso dos tributos cumulativos o fato de a não cumulatividade estar na Constituição Federal permite que praticamente toda discussão chegue ao STF, o que contribuiu mais ainda para demora;
  • Segundo dados do CNJ no relatório Justiça em números[7], as execuções fiscais representam o principal fator de morosidade no Judiciário. Correspondem hoje a 39% dos casos pendentes, mais de 30 milhões de processos. A média de congestionamento é de 90% e a taxa anual de recuperação do crédito exequendo não chega a ultrapassar, na grande maioria dos casos, 5%. Se considerarmos que antes da execução fiscal um crédito tributário pode ser discutido por até 20 anos, sua chance de recuperação é ínfima. É cristalina a falência desse sistema de cobrança brasileiro. O Brasil se tornou um paraíso fiscal, não por ter regras brandas de tributos, mas por não ter a necessária coerção na cobrança. Não nos faltam normas sobre a incidência tributária, nos faltam normas e procedimentos efetivos sobre a cobrança e gestão tributária;
  • Estudo da FGV/RJ sobre o contencioso tributário no STF[8] (Supremo Tributário) concluiu que os tributos de maior litigiosidade no STF são o ICMS e o PIS/COFINS. Ambos adotam o regime da não cumulatividade, ainda que no caso do PIS/COFINS limitada a algumas atividades;
  • Estudos do SINPROFAZ (Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional), disponíveis no site quantocustaobrasil.com.br[9]. Mostram que quanto maior a carga tributária e a complexidade do sistema maior a indução à sonegação. Fatores não econômicos como moralidade fiscal e sentimento de justiça também afetam esses valores. No Brasil temos uma média de sonegação que vai de 22% a 33%;
  • Há estudos que demonstram a vantagem econômica da sonegação e da litigância tributária no país[10]. Vale mais a pena descumprir toda obrigação tributária, sonegar impostos e, se for pego, pagar todos tributos com multa, do que efetivamente pagar os tributos em dia e pegar empréstimos no mercado para crescer o negócio.

Esses dados dão pistas dos reais problemas que devem ser enfrentados pela reforma tributária. Soluções baseadas na simplicidade e certeza do tributo a pagar, utilização de tecnologia para facilitação e indução ao pagamento na fonte e o desestímulo ao litígio devem estar na prioridade da reforma tributária.

Na instituição de um tributo não é incomum que as políticas públicas se preocupem mais com as questões teóricas acerca de modelos de tributação do que com a observação e coleta de dados reais sobre os efeitos pós implementação dos tributos.

No mundo dos negócios o sucesso de um modelo de uma franquia em um país ou cidade não é garantia de sucesso em outro, ainda que siga um roteiro já testado. Assim também ocorre com as políticas tributárias. Razões culturais, sociais, éticas, econômicas e operacionais alteram completamente o resultado de um negócio ou política pública.

Assim como um plano de negócios deve ser sempre validado no mundo real, de igual modo também deveriam ser validadas as políticas públicas de tributação. Nessa validação, a descoberta e análise da perspectiva do usuário e de sua experiência é fundamental. Não se pode presumir, deve-se sempre questionar, ainda que algumas premissas sejam consideradas dogmas ou verdades absolutas.

No best seller “A Startup Enxuta”[11], Eric Ries conta experiências pessoais de fracasso no desenvolvimento de produtos que eram perfeitos na teoria, mas que se mostraram verdadeiro fiasco comercial. Isso porque não resolviam problemas reais dos consumidores. O produto foi todo desenvolvido baseado naquilo que os desenvolvedores do projeto presumiam que as pessoas precisavam. Portanto, a mensagem principal do livro de cabeceira dos empreendedores atuais é: valide suas premissas com os potenciais usuários do seu produto e serviço para testar a viabilidade do negócio. Tenha certeza de estar resolvendo de fato as dores do mercado.

Essa mesma máxima deveria valer para a adoção de políticas públicas tributárias no Brasil. Especialmente considerando o custo enorme que uma grande reforma pode ter se não resolver os verdadeiros problemas tributários do Brasil.

O custo de uma reforma com transição, que prevê convivência de 2 sistemas complexos, por no mínimo 10 anos, em uma economia em que tudo muda rapidamente, deve ser sopesado com a necessidade de retreinamento de todos profissionais privados e públicos, reprogramação e aquisição de novos sistema, a fim de se certificar de que o saldo é positivo.

Há que ser objeto de reflexão o alerta do experiente ex-Secretário da Receita Federal, Everardo Maciel[12], quando diz que a adoção generalizada de uma técnica de valor agregado já não se mostra condizente com uma economia digital. Parece-me bastante precisa também sua avaliação[13] quando diz que nossas principais mazelas são: burocratismo, a indeterminação conceitual e o processo tributário.

É, portanto, momento de revisitar as premissas de reformas tributárias que estejam sendo trabalhadas com base em uma economia da era industrial, não mais condizente com as mudanças exponenciais que a economia digital nos trouxe. É necessário validar as políticas públicas tributárias com dados reais e com seus usuários, aqueles que vivem as “dores” do sistema tributário. Precisamos investir tempo em resolver o problema certo.

Talvez seja hora de dar um passo atrás para fazermos as perguntas certas, como preconiza o estudioso sobre inovação, Warren Berger, em seu livro “Uma pergunta mais bonita”.[14] De nada adianta investir tempo, capital humano e econômico para não resolvermos os problemas reais.

Imperioso abrir o debate para participação e validação das políticas tributária por parte dos usuários: contribuintes dos mais diversos setores, potenciais investidores no Brasil, servidores dos Fiscos e Procuradorias Fiscais nos 3 níveis da Federação, Poder Judiciário, contadores e empresas de tecnologia, que fabricam as soluções para lidarmos com a irrazoável legislação tributária brasileira.

 

Notas e Referências

[1] https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/fiquePorDentro/temas/sistema-tributario-nacional-jun-2019/reforma-tributaria-comparativo-das-pecs-em-tramitacao-2019

[2] MOREIRA, André Mendes. Não-cumulatividade tributária no Brasil e no mundo: origens, conceito e pressupostos. In: Sistema Tributário Brasileiro e a Crise Atual – VI Congresso Nacional de Estudos Tributários. CARVALHO, Paulo de Barros e SOUZA, Priscila de. São Paulo: Noeses/IBET, 2009, pp. 47-88.

[3] MOREIRA, André Mendes. Não-cumulatividade tributária no Brasil e no mundo: origens, conceito e pressupostos. In: Sistema Tributário Brasileiro e a Crise Atual – VI Congresso Nacional de Estudos Tributários. CARVALHO, Paulo de Barros e SOUZA, Priscila de. São Paulo: Noeses/IBET, 2009, pp. 47-88.

[4] Sobre o tema, vale a leitura do artigo: O custo social das obrigações tributárias acessórias de Hugo Mendes Plutarco, Ivo Teixeira Gico Jr. E Marcos Aurélio Pereira Valadão, disponível em:

https://portalrevistas.ucb.br/index.php/EALR/article/viewFile/3%20EALR%20338/3%20EALR%20338

[5] Dados disponíveis em https://endeavor.org.br/ambiente/doing-business-2020/?gclid=EAIaIQobChMI0teHi_TW6QIVTQmRCh2yrgSBEAAYASAAEgKIPfD_BwE

[6] Disponível em https://www.etco.org.br/noticias/contencioso-tributario-brasileiro-ultrapassa-50-do-pib/

[7] Relatório Justiça em números CNJ, disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf

[8] Fossati, Gustavo O Supremo tributário / Gustavo Fossati, Leonardo de Andrade Costa. – Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2020

[9] http://www.quantocustaobrasil.com.br/artigos/sonegacao-no-brasil-uma-estimativa-do-desvio-da-arrecadacao-do-exercicio-de-2018

[10] MENDES, Hugo Plutarco, A Sonegação e a Litigância Tributária como Forma de Financiamento, EALR, V. 3, nº 1, p. 122-147, Jan-Jun, 2012,

[11] RIES, Eric. A Startup Enxuta: Como os empreendedores atuais utilizam inovação contínua para criar empresas extremamente bem-sucedidas. São Paulo: Leya Editora, 2012

[12] Disponível em https://www.etco.org.br/noticias/everardo-maciel-explica-por-que-nao-acredita-em-projetos-que-sugerem-refundar-nosso-sistema-de-impostos/

[13] Disponível em https://www.etco.org.br/noticias/everardo-maciel-explica-por-que-nao-acredita-em-projetos-que-sugerem-refundar-nosso-sistema-de-impostos/

[14] BERGER, Warren, Uma pergunta mais bonita: o Poder de questionar para desenvolver ideias revolucionárias, tradução de Livia Koeppl, São Paulo, Aleph, 2019, 312p.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura