Reforma do Código Civil e o Direito da Criança e do Adolescente: quando levaremos os direitos de crianças e de adolescentes a sério?

27/09/2023

Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil

No dia 24 de agosto de 2023, foi realizada uma cerimônia no Senado Federal, na qual o presidente da casa, Sen. Rodrigo Pacheco (PSD-MG), instituiu uma comissão que irá propor mudanças para atualização do Código Civil Brasileiro. Essa comissão é composta por ministros, desembargadores, juízes, professores e advogados, nomes bastante conhecidos pela sua atuação nas áreas mais clássicas do Direito Civil nacional. Quando analisamos a atividade dos membros da comissão pela experiência com as áreas afeitas aos microssistemas, o nome da profa. Cláudia Lima Marques sobressai-se. Reconhecida nacionalmente pelo seu trabalho com o Direito do Consumidor, Cláudia Lima Marques é referência na área e essencial para atualizar o Código Civil, especialmente nas questões consumeristas. 

Contudo, no que concerne os outros microssistemas, aqueles nos quais a vulnerabilidade de uma pessoa se dá em razão de um atributo pessoal – como a idade ou uma deficiência –, nota-se que não há na comissão a presença de um jurista especializado nessas temáticas. São inegáveis as contribuições que juristas como Joyceane Menezes ou Tânia da Silva Pereira[i] poderiam dar aos temas que envolvem as pessoas com deficiência ou os idosos. Quando se pensa nos Direitos da Criança e do Adolescente, a falta de um especialista no assunto é ainda pior, uma vez que não houve a preocupação de adaptar o Código Civil à realidade do século XXI e nem às normativas internacionais das quais o país é signatário.

A “proteção” dada pelo Direito Civil nacional a crianças e adolescentes ainda é concebida pelo viés patrimonialista do excludente sistema das capacidades e pelos institutos de representação e assistência. Essa visão permeia todas as normas referentes à população infantoadolescente existente em nosso código e ela não se coaduna à Doutrina da Proteção Integral sintetizada no art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988).

A Convenção dos Direitos da Criança de 1989, introduzida no Direito nacional pelo Decreto n. 99.710/1990 é um tratado sobre direitos humanos ratificado pelo Estado Brasileiro antes da Emenda Constitucional n. 45, o que dá a ele status de norma supralegal. Com isso, suas normas seriam hierarquicamente superiores às do Código Civil e inferiores às previstas na CRFB/1988. Essa convenção prevê o direito à participação de crianças e de adolescentes em todas as decisões que as afetem (art. 12)[ii] e o exercício de direitos de forma progressiva (art. 5º)[iii]. Esses dois direitos têm influência direta em como todo o Direito brasileiro e, como consequência, o direito privado, devem tratar a população infantoadolescente, ônus que está sendo ignorado desde 1990 pelo Código Civil, especialmente, em temas como capacidade civil e Direito de Família.

Em relação à capacidade civil, nota-se que vivemos a absurda situação em que somente menores de 16 anos são considerados absolutamente incapazes, o que faz com que, para o Direito brasileiro, uma pessoa em estado comatoso seja considerada mais capaz que um adolescente de 14 ou 15 anos. Cumpre destacar que a Comissão Interamericana do Direitos Humanos (CIDH/2017) já expressou a necessidade de todos os países filiados a OEA reverem toda legislação referente à capacidade jurídica e ao exercício autônomo de direitos. Para a comissão:

§ 343 - A CIDH recomenda que os Estados revisem, em consulta direta com crianças e adolescentes, toda a legislação relativa à capacidade e ao exercício jurídico de direitos autônomos e acesso a serviços no caso das crianças e adolescentes, à luz do princípio da autonomia progressiva e de forma compatível com o direito à proteção e o princípio do superior interesse da criança. A fixação de diversas idades na legislação ou em outros meios de avaliação de maturidade para a tomada de decisão autônoma deve considerar a possibilidade de proibir toda a discriminação baseada no gênero; limites de idade ou outras considerações que atendam à maturidade para o exercício dos direitos devem ser iguais para meninas e meninos[iv]

Também nesse sentido, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU, no Comentário Geral n. 12/2009, destacou a obrigação dos Estados-partes em alterar as leis nacionais, de modo que estas passassem a prever instrumentos que promovam o direito à participação de crianças e adolescentes no exercício de seus direitos[v]. Posteriormente, esse mesmo comitê reiterou esse entendimento em seu Comentário Geral n. 25/2016.

É necessário que seja feita uma revisão profunda no sistema de capacidades do Brasil, no intuito de pensá-lo em todos os seus desdobramentos existenciais e patrimoniais, bem como nos seus reflexos na teoria dos negócios jurídicos, no exercício dos direitos da personalidade, entre outros aspectos. Enfatizamos que essa alteração deve ser feita necessariamente no Código Civil para que realmente tenha impacto no ensino e na prática jurídica. Devemos lembrar aqui a experiência recente do Direito Nacional com o trato dado a pessoas com deficiência. Embora a Convenção de Nova Iorque já estivesse vigente e com status de norma constitucional desde 2009 (Decreto n. 6.949/2009) e ela já demonstrasse a incompatibilidade da capacidade civil para esse público, a comunidade jurídica só passou a discutir a questão após o advento da Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015), que efetivamente modificou o Código Civil.

A visão adultocêntrica do Código Civil também é clara nas normas do Direito de Família, que se preocupam muito com a relação entre os adultos e relegam a população infantoadolescente a um papel secundário na vida familiar.

Apesar do Comentário Geral n. 20/2016 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU enfatizar que o papel dos pais ou de outros tutores dentro da Doutrina da Proteção Integral é de acompanhamento e aconselhamento dos filhos e pupilos a fim de que eles exerçam seus direitos na medida da sua maturidade, o poder familiar ou autoridade parental ainda é baseado na substituição ou adição da vontade. Não há sequer a obrigação dos adultos em assegurar o direito à participação. Também não há, na regulamentação atual, preocupação do exercício do cuidado como dever daqueles que zelam pelas crianças e pelos adolescentes.

O mesmo ocorre com os outros institutos também “protetivos”, como a guarda e a tutela. Neles também não há menção ao cuidado de crianças e de adolescentes, e não é assegurada nenhuma participação daqueles que serão os mais afetados na decisão que determina a forma de guarda, nem a determinação de quem será o guardião ou o tutor e como esses institutos serão executados. Há, portanto, uma afronta direta e incontornável ao art. 12 da Convenção dos Direitos da Criança de 1989.

É verdade que alguns membros da comissão já se manifestaram sobre alguns desses pontos em suas obras. Por mais progressistas que pareçam, muitas dessas falas ainda são permeadas pela visão civilista clássica, cujo foco é sempre o adulto e não a criança. Josiane Veronese (2021) chama atenção para o fato de o Código Civil atual não ter adequado seus institutos à visão constitucional e convencional de crianças e de adolescentes, situação a qual desejamos não ocorrer novamente.

Fazemos questão de ressaltar a excelência dos membros da comissão nos temas clássicos de Direito Civil, mas temos que destacar que uma comissão que se propõe a atualizar um código civil deve contar com especialistas em temas específicos existentes no código e que tem impacto direto na vida de parte expressiva da população brasileira. Esses representantes têm que dialogar com aqueles que estudam e atuam em outras áreas. No que diz respeito ao âmbito de Direito da Criança e do Adolescente, isso se torna ainda mais necessário. Afinal não sabemos sequer se todos vão se tornar adultos para poderem usufruir totalmente dos direitos que o Código Civil prefigura, mas temos certeza que, para alguém atingir a maioridade, é necessário que ele tenha sido uma criança e, posteriormente, um adolescente.

 

Notas e referências 

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Rumo à garantia efetiva dos direitos das meninas, meninos e adolescentes: Sistemas Nacionais de Proteção. Organização dos Estados Americanos [2017]. Disponível em: https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2FPPRiCAqhKb7yhsqIkirKQZLK2M58RF%2F5F0vHKTUsoHNPBW0noZpSp5d6MOecQAKeVQ5zIMW6E4Msxs4Ov3WZi2aEiJFXmn2EhSht8EgbO6IqGP47JXUhcPIP4. Acesso em: 31 ago. 2023. 

COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. Comentário geral n.º 12 de 25 de maio a 12 de junho de 2009. Sobre o direito da criança de ser ouvido. Alto comissariado da ONU para os Direitos Humanos [2009]. Disponível em: https://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2FPPRiCAqhKb7yhsqIkirKQZLK2M58RF%2F5F0vHKTUsoHNPBW0noZpSp5d6MOecQAKeVQ5zIMW6E4Msxs4Ov3WZi2aEiJFXmn2EhSht8EgbO6IqGP47JXUhcPIP4. Acesso em: 31 ago. 2023. 

COMITÊ DOS DIREITOS DA CRIANÇA. Comentário geral n.º 20 de 06 de dezembro de 2016. Sobre a efetividade do direito da criança durante a adolescência. Alto comissariado da ONU para os Direitos Humanos [2016]. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G16/404/49/PDF/G1640449.pdf?OpenElement. Acesso em: 31 ago. 2023. 

VERONESE, Josiane Rose Petry. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

[i] A profa. Tânia da Silva Pereira é também uma referência no Direito da Criança e do Adolescente, mas já há algum tempo tem se dedicado a estudar o Direito dos Idosos com mais profundidade.

[ii] Artigo 12 - 1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.

[iii] Artigo 5 - Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, onde for o caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme determinem os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis, de proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução de sua capacidade no exercício dos direitos reconhecidos na presente convenção.

[iv] No original: La CIDH recomienda que los Estados revisen, en consulta directa con los NNA, toda la legislación relativa a la capacidad jurídica y para el ejercicio autónomo de derechos y el acceso a servicios en el caso de los NNA, a la luz del principio de la autonomía progresiva, y de modo compatible con el derecho a la protección y el principio del interés superior del niño. La fijación de diversas edades en la legislación, u de otros medios de evaluación de la madurez para la toma de decisiones autónomas, debe considerar la prohibición de toda discriminación por motivos de género; los límites de edad u otras consideraciones que atiendan a la madurez para el ejercicio de derechos deben ser iguales para las niñas y los niños.

[v] O parágrafo 48 do Comentário Geral n. 12/2009 determina que “O direito da criança a ser ouvida impõe aos Estados Partes a obrigação de revisarem ou modificarem a sua legislação para introduzir mecanismos que deem às crianças acesso a informações pertinentes, apoio adequado sempre que necessário, informações sobre a consideração dada às opiniões da criança e procedimento de denúncia, recurso ou reparação.

 

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