REFLEXÕES SOBRE O PROJETO (PL 2.337/2021) DE ALTERAÇÃO DA TRIBUTAÇÃO SOBRE O LUCRO: COLOCANDO OS PINGOS EM ALGUNS “IS”

06/08/2021

Tão logo o Ministério da Economia entregou ao Congresso a segunda fase do projeto “Reforma Tributária” (25/06), um alvoroço tomou conta no meio político e acadêmico, iniciando-se uma verdadeira cruzada contra vários dos pontos apresentados (PL 2.337/2021).

Vamos nos centrar precisamente em dois pontos (a) aumento da carga tributária sobre a pessoa jurídica e (b) a tributação sobre a distribuição de lucros e dividendos. A escolha foi proposital, uma vez que pretendemos trazer contrapontos a esses dois argumentos, ambos contrários às alterações - e que mais foram os divulgados na imprensa especializada.

A primeira objeção levantada diz respeito à afirmativa de que a tributação sobre lucro no Brasil (34%) estaria bem acima daquela levada a efeito nos países da OCDE (21,5%).

Grosso modo, podemos dizer que, em termos genéricos, a assertiva está, sim, correta. E mais: acrescemos que, desde 2000, a tendência mundial vinha sendo o decréscimo da taxa. Entretanto, precisamos aprofundar a análise desses dados (drill down), antes de tirarmos qualquer conclusão.

A própria OCDE (2020[1]) relativiza essas estatísticas, destacando que as informações se baseiam nas alíquotas padrões (standard statutory), não levando em consideração, por exemplo, a existência de regimes diferenciados, incentivos fiscais e nem a efetiva base tributável. Tanto é que realça o movimento de alta da arrecadação dos tributos sobre o lucro na participação sobre as receitas fiscais totais e na proporção do PIB, entre os anos de 2000 e 2017. Sob essa perspectiva, as médias na OCDE são, respectivamente, 9,3% e 3% - estando o Brasil em percentuais ligeiramente abaixo, em ambos os casos. Assim, já é possível apontar uma primeira imprecisão na afirmativa de que o Brasil seria um dos países que mais cobra impostos sobre o lucro das empresas.

Podemos, ainda, tomar como medida de comparação o regime peculiar dos EUA. Por lá, apenas as corporations (equivalentes às SAs) são tributadas pelo Corporate income tax – CIT (= IRPJ). Todas as demais, regra geral, qualificam-se como ‘empresas de passagem’ (pass-through entities), sendo tributadas na pessoa de seus sócios pelo Personal income tax – PIT (= IRPF), em campo próprio do formulário. Em razão dessa singularidade, o PIT detém uma participação maior na arrecadação federal do que o CIT. Desse modo, é inadequado analisar a tributação sobre o lucro das empresas nos EUA apenas a partir do CIT como indicador.

É necessário, também, interpretar a afirmação de que a alíquota de 34% sobre o lucro (IRPJ/CSLL) seria uma medida padrão alta. Isso porque apenas 1,38 % das empresas estão inseridas no regime do lucro real – mais à frente, mostraremos que nem mesmos elas são tributadas em 34%. As demais encontram-se divididas entre o lucro presumido (7,2% recolhem a alíquota que incide apenas sobre o valor resultante da aplicação de percentuais sobre a receita bruta, variando entre 1,6% e 32%, ou seja, exclui-se do cálculo o percentual de despesas presumidas que varia entre 98,4% e 68%) e o SIMPLES NACIONAL (75,52%)[2]. Em resumo, mostra-se, no mínimo, parcial a informação de que a alíquota de 34% seja a padrão no Brasil.

Quanto ao argumento de que a tributação sobre a distribuição de lucros e dividendos seria uma espécie de bitributação (two layers of tax), pensamos que seja rasteiro, eis que se baseia em uma premissa precária. Isso porque ele seria verdadeiro se, e somente se, a totalidade das pessoas jurídicas fossem tributadas pelo regime de apuração do lucro real (34%), isto é, sem a redução da sua base de cálculo por benefícios fiscais (ex., redução dos juros sobre capital próprio, regimes diferenciados de apuração etc.) – o que, conforme demonstrado anteriormente, não é o que ocorre majoritariamente. Assim, uma vez que há uma discrepante desproporção entre o “lucro distribuível” e o “lucro tributável”, a distribuição para os sócios praticamente não é tributada.

Essa distorção não é novidade no mundo da tributação. Pesquisadores norte-americanos, ao compararem a renda tributável e os ganhos nas demonstrações financeiras em certo período, concluíram que a receita contábil das empresas com mais de 250 milhões de dólares de ativos permaneceram superior à marca de 60% em comparação com a sua renda tributável total (BURMAN E SLEMROD, 2020, p.75). Assim, a diferença, se distribuída, não teria sofrido a incidência do imposto de renda da pessoa jurídica.

Semelhante estudo promovido pela Unafisco (2020[3]) evidenciou um fenômeno similar no Brasil. Analisando o recorte entre 2007 e 2013, verificou-se que 46% do lucro real distribuível não teria sido tributado. Apontou-se, também, que a alíquota efetiva, no ano de 2018, teria sido na ordem de 18,5%. Nos casos das empresas optantes pelo lucro presumido e do SIMPLES, indicou-se estimativas de que a tributação sobre o faturamento chegaria no máximo a 10,88% do faturamento. Sob a perspectiva da pessoa física, o valor de lucros e dividendos isentos representou, em 2017, R$ 280,54 bilhões – sendo que a parcela relevante de declarações desses valores se inicia somente a partir da faixa de renda acima de 10 salários-mínimos (370.784 declarações), embora o montante total se concentra, efetivamente, em apenas 19.859 declarações, correspondentes a R$ 182 bilhões (73%).

Precisamos anotar, também, que a receita bruta declarada pelas pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real representou um percentual médio de 80% na participação do total das receitas brutas declaradas pelas pessoas jurídicas. Isso quer dizer que 1,38 % das empresas são responsáveis por 80% da receita bruta declarada. Todavia, em relação ao total de arrecadação, participaram no percentual médio entre 63,79% e 66,74% (DARFs + GPSs). E se contrastarmos a arrecadação como percentual da receita bruta, as pessoas jurídicas do lucro real suportaram média entre 6,33% e 7,34%, enquanto as do lucro presumido 8,65% e 8,86% e as do SIMPLES 9,55% e 9,96%[4].

Traçados esses poucos esclarecimentos que o espaço nos permite, evidenciamos que a) não é a tributação sobre o lucro que mais pesa sobre a pessoa jurídica no Brasil (especialmente no caso das empresas de grande porte) e que (b) a tributação sobre a distribuição de lucros e dividendos não configura, por si só, “bitributação”.

Dito isso, podemos caminhar para algumas ponderações mais propositivas.

Uma verdadeira reforma tributária não pode ser debatida com base em preconceitos e nem em meias verdades. A comparação com outras jurisdições deve sempre, na maior medida possível, considerar as diferentes realidades em que estão inseridas (geográfica, demográfica, histórica, cultural, socioeconômica, política, jurídica etc.). Isto é, deve-se submeter a uma métrica adequada e finalidade pertinente com o escopo.

Um indicador com maior relevância a ser perseguida poderia ser, por exemplo, a alteração da matriz tributária brasileira, uma vez que a carga tributária sobre a renda e lucro do Brasil (de 7%) discrepa para menos tanto em relação aos EUA (de 12,4%) quanto a média do bloco do OCDE (de 11,4%)[5]. Nesse sentido, a categoria de bens e serviços poderia contar com uma participação proporcionalmente menor (sempre privilegiando a seletividade).

No caso específico da tributação sobre as empresas, rememoramos que a recente Tax Cuts and Jobs Act of 2017 - TCJA, reduzindo a CIT que chegava a até 35% para um valor fixo de 21% (flat tax), não alcançou os “resultados esperados”. Aliás, BURMAN e SLEMROD (2020, p.71-72[6]) já pregavam cautelas, alertando que qualquer resposta conclusiva sobre seus reais efeitos – para além do benefício direto aos donos do capital – seria apressada. Passados quase 4 anos de sua aprovação, o que se comprovou foi uma maior concentração da renda nos EUA, servindo a pandemia de lição para enfatizar que quaisquer modelos preditivos estão mais sujeitos à imprevisibilidade e contingências do que a certezas.

Quanto à distribuição dos lucros e dividendos, mais do que a retórica vazia da ‘bitributação’ (a nosso ver, essa tese é mais matemática do que jurídica), o que deveria prevalecer seria uma verificação empírica se o valor está, de fato, sendo ou não tributado na pessoa jurídica. Caso esteja, deveria se apurar qual a alíquota efetiva sobre a referida parcela a ser distribuída aos sócios. A partir daí, poderia se pensar em deduções e aplicação de uma tabela progressiva.

Noutro giro, o Brasil deveria ingressar em debates mais “reais”, uma vez que, no estado da legislação pátria e da dogmática jurídica, dificilmente será possível acompanhar as rápidas transformações dos modelos de negócios e desenvolvimentos tecnológicos, especialmente no âmbito da inteligência artificial e tecnologia da informação. Nosso sistema estanque, construído sob o mito da tipificação cerrada, dificilmente alcançará certos tipos de transações. Em vez de artificialismos, a pauta deve se voltar para a construção de uma estrutura e nível de tributação mais eficientes e em bases mais equitativas.

Em linha conclusiva, o panorama mundial sugere que o significado de reforma tributária não se confunde mais com a simples eliminação de tributos ou meras alterações legislativas. O que está acontecendo é uma verdadeira alteração do horizonte histórico em que o tributo é pensado não mais como empecilho (power to destroy). Essa alteração de sentido lhe atribui uma função de instrumento de transformação, de efetivação de políticas públicas e de concreção de direitos. Por isso, a discussão caminha para a instituição de tributos globais (global taxes), especialmente sobre a renda mínima das multinacionais, sobre incentivos e criação da “tributação verde” (carbon tax), sobre transações financeiras (currency transaction tax – CTT) e a respeito da revisão da tributação sobre o consumo na economia digital.

 

 

Notas e Referências

[1] Corporate Tax Statistics SECOND EDITION, 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/tax/tax-policy/corporate-tax-statistics-second-edition.pdf.

[2] Ministério da Economia. Receita Federal. Disponível em: https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/estudos-diversos/inform_tribut_sociais_setoriais_pjs-2016-a-2018.pdf

[3] Nota técnica n. 15/2020. Disponível em: https://unafisconacional.org.br/wp-content/uploads/2020/09/Nota-Tecnica_Tributacao-Lucros_Dividendos.pdf

[4] Idem, ibidem.

[5] Carga tributária anual. 2018. https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf

[6] Taxes in America: What Everyone needs to know. New York: Oxford University Press, 2020

 

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