Reflexões sobre o arquétipo de Posídon e o Direito Penal

28/05/2015

Por Marina de Cerqueira Sant´Anna – 28/05/2015

Ao assistir a aula sobre Posídon, no curso sobre “Mitos, Arquétipos e Psique”, oferecido pela Psique Clínica de Psicologia, em Salvador-BA, passei a refletir, angustiadamente, sobre a seguinte questão: o que o Direito e, em especial, o Direito Penal tem a ver com tal arquétipo?

Na mitologia grega, Posídon também conhecido como Possêidon, é considerado o Deus supremo do mar. É um dos filhos de Cronos e Reia e foi regurgitado pelo pai Cronos, juntamente com seus irmãos Héstia, Deméter, Hera, Zeus e Hades.

Após Zeus destronar o pai Cronos, houve uma divisão dos reinos entre ele e os irmãos Hades e Posídon. Hades herdou o reino dos mortos, Zeus os céus e Posídon o fundo dos mares. Portanto Posídon tem caráter de rei e utiliza o trindente, que representa o seu símbolo de comando.

Posídon, dentre outras questões, revela o arquétipo das emoções e possui a capacidade de penetrar no âmbito do inconsciente, onde se localizam os afetos mais profundos, como, por exemplo, a vingança, como também, por outro lado, a compaixão.

Uma das interpretações cabíveis sobre esse arquétipo reside exatamente na compreensão das nossas posturas ou das nossas personas na sociedade civil e, principalmente, no cenário jurídico que, por vezes, nos impõe a necessidade de tomada de posição representativa da ordem, da estabilidade e do progresso e, com isso, ofuscam-se, ou porque não, negam-se as nossas emoções e vitalidades do eu.

Na sociedade contemporânea, por alguns denominados de pós-moderna, que possui como característica a fragilidade dos laços sociais, observa-se que o viver tem se dado desde uma perspectiva unilateral, vale dizer, vivemos desde a nossa unilateralidade sem mergulhar na existência e, com isso, sem se permitir a vivenciar as vastas experiências trazidas pelos sentimentos: como afirma Zygmunt Bauman: “Sociedade Líquida”...É esse o cenário que nos encontramos!

E o que disso interessa para o Direito Penal? Ou melhor, o que isso repercute criticamente para quem pensa sobre o Direito Penal situado nesse ambiente pós-moderno? Tudo interessa!

Ora, a todo instante, as contingências sociais revelam intolerância assustadora para com os problemas que envolvem (ou que não deveriam envolver) o Direito Penal, de modo a tentar torná-lo cada vez mais expansivo e rigoroso, como se isso fosse trazer a sensação de ordem, paz e segurança.

Apenas para ilustrar, sem pretender ser exaustiva, podemos citar a nova figura qualificada do crime de homicídio, o feminicídio, inserindo-o, portanto, no rol de crimes hediondos e a incessante discussão sobre a redução da maioridade penal.

Verifica-se um essencial clamor pela intervenção do Direito Penal, cujo papel desempenhado deva ser o de protagonista na trama da vingança e da intolerância. É, é isso mesmo. Direitos Humanos para aqueles que são “amigos” do Estado, quem age com indiferença deve ser tratado como “inimigo”. Um dos legados de Günther Jakobs que vem sendo exaltado e repedido inconsequentemente, por nós Brasileiros.

A ausência do exercício de alteridade, aliada ao sentimento de vingança por vingança, com o intuito de restabelecer a ordem e a segurança, tudo tem a ver com o cenário da fragilidade dos laços sociais e do pouco, ou, nenhum, cuidado com o incremento e a repercussão de tal discurso em um ambiente de modernidade periférica e de essenciais lacunas quanto o tema é efetivação das garantias Constitucionais.

É preciso respirar e dar vazão aos sentimentos profundos, mas não aqueles relacionados ao ódio, mas sim aos atinentes à solidariedade. É preciso refletir e resgatar o Posídon positivo que existe dentro de nós!

O exercício pela garantia da segurança e da ordem não deve, aliás, não pode, estar impulsionado pelo sentimento de vingança, pois só serve para intensificar a liquidez das relações, a carência de compreensão do outro e, com isso, materializa-se o papel de viver o mundo na unilateralidade.

É preciso resgatar Posídon e permitir o seu diálogo com o Direito Penal, vale dizer, é necessário que os atores da Justiça Criminal permitam o grito desesperado de tal arquétipo e passem a entender os fenômenos jurídico-penais para além da própria sombra.

Talvez algumas pitadas dos seguintes ingredientes possam ajudar:

1- O Estado só deve lançar mão do Direito Penal diante de efetivas violações a bens jurídicos essenciais para a vida em sociedade,

2- Princípios como legalidade, lesividade, intervenção mínima e “ultima ratio” devem, necessariamente, não só funcionar como horizonte, mas, sobretudo, serem efetivados na atuação da justiça criminal,

3- O Direito Penal deve estar a serviço do poder punitivo, mas não para fomentá-lo e sim para contê-lo,

4- Deve-se evitar a expansão demasiada do Direito Penal sob a justificativa, conveniente, do surgimento de novos bens jurídicos,

5- O olhar para o acusado não pode ser a partir da nossa visão egoísta e preconceituosa,

6- Os fins perseguidos para afirmação da segurança e da ordem, não podem representar a adoção de meios cruéis e incompreensivos.

A ideia de que o Direito Penal precisa ser analisado a partir da Constituição e não o contrário, reforça o argumento no sentido de que é preciso deixar repercutir o Posídon que há dentro de nós.

Vale dizer, devemos respirar, refletir e permitir que sentimentos positivos possam servir de combustíveis para a afirmação da segurança. A vingança e a incompreensão não podem ser os elementos para a construção ou restabelecimento de tal sensação.

Quando pararmos para entender que as personas da ordem e do progresso podem e devem estar associadas aos afetos mais profundos, talvez conseguiremos nos libertar dessa esquizofrênica atuação do sistema de Justiça Criminal e, então, sairmos da unilateralidade.


MarinaMestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, Professora de Direito Penal da Universidade Católica de Salvador (UCSAL) e do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge), Servidora Pública do Ministério Público do Estado da Bahia e Membro Efetivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) - Tesoureira.                                                                                                  


Imagem Ilustrativa do Post: Poseidon is afraid // Foto de: Alexandre Dulaunoy // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/adulau/5857526865/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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