REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO CONTEXTO INDÍGENA BRASILEIRO

13/05/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

há mais olhos que sono

onde lágrimas suspensas

virgulam o lapso

de nossas molhadas lembranças.

(Conceição Evaristo)

A estrofe que abre o presente texto compõe o poema “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, escrito por Conceição Evaristo (2017, p. 26) em homenagem à Beatriz Nascimento, a qual foi vítima de feminicídio depois de tentar ajudar uma amiga que sofria violência doméstica. Contudo, fica nítido que tal expressão artística fala de não apenas uma Beatriz, mas também das tantas outras que, dentro da lógica cisheteropatriarcal[1]-racista-capitalista do sistema vigente, têm negado o direito a uma vida sem medos.

Nesse sentido, gostaria de aqui chamar a atenção para um fato que recentemente gerou comoção (pelo menos em parcelas da sociedade): a denúncia do caso da menina Yanomami de 12 anos de idade, que teria sido estuprada e morta por um grupo de garimpeiros[2]. Se a noite não adormece nos olhos de mulheres adultas, ela muito menos adormecerá nos olhos de meninas indígenas que moram em aldeias isoladas e que vivem sob constante ameaça por parte de um conjunto de violações que, de maneira apenas imediata, se expressam na atuação dos garimpeiros.

Sobre essa tragédia, importa destacar alguns elementos para que não se incorra no erro de acreditar que se trata de um caso isolado, fruto da “ruindade” dos homens que atacaram a garota, e sem que se faça a devida mediação entre esse acontecimento e a dinâmica socioeconômica e política em operação hoje no Brasil, especialmente no que tange os rebatimentos dela para as populações indígenas e demais grupos que são postos num lugar de desprestígio e descarte.

Pensando nisso, destaco a gama de informações contidas no diagnóstico “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo[3], a partir do qual é possível observar que está em curso um processo agressivo de investida contra a população indígena, sobremaneira no que se refere aos últimos cinco anos. O citado documento apresenta, entre dados quantitativos e qualitativos, um retrato assustador (porém não surpreendente, como comentarei mais à frente) de como a atividade do garimpo tem afetado direta e indiretamente as vidas de indígenas e demais pessoas envolvidas nesse contexto. São agravos em relação à saúde (tanto no que tange a prevenção e o tratamento de doenças), às condições de sobrevivência das famílias que moram nas regiões afetadas, à exploração criminosa dos recursos naturais, e ao aumento da violência contra os povos indígenas, dentre outros.

Acerca do que tem motivado a exacerbação desse quadro, ainda de acordo com o relatório em questão, pode-se identificar a combinação de fatores como:

(...) 1) O aumento do preço do ouro no mercado internacional; 2) Falta de transparência na cadeia produtiva do ouro e falhas regulatórias que permitem fraudes na declaração de origem do metal extraído ilegalmente; 3) Fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas e, consequentemente, da fiscalização regular e coordenada da atividade ilícita em Terras Indígenas; 4) Agravamento da crise econômica e do desemprego no país, produzindo uma massa de mão de obra barata à ser explorada em condições de alta precariedade e periculosidade; 5) Inovações técnicas e organizacionais que permitem as estruturas do garimpo ilegal se comunicar e se locomoverem com muito mais agilidade; e 6) A política do atual governo de incentivo e apoio à atividade apesar do seu caráter ilegal, produzindo assim a expectativa de regularização da pratica (HUTUKARA ASSOCIAÇÃO YANOMAMI; ASSOCIAÇÃO WANASSEDUUME YE'KWANA, p. 10, 2022)

A partir disso, é possível vislumbrar o quão complexa é a teia na qual se encontra o correr da vida para aqueles/as que, mesmo isolados/as territorialmente, não deixam de integrar o funcionamento da totalidade da vida social. Contudo, antes de seguir com a problematização disso, gostaria de enfatizar outro elemento com base nas contribuições do mesmo documento,  e que, particularmente, considero espelhar uma das facetas mais graves desse retrato de ofensiva contra a vida indígena: a ocorrência de exploração sexual de adolescentes em troca de itens materiais para a garantia de sua própria sobrevivência[4].

Por limitações na estrutura do texto (tamanho), não poderei aqui entrar em detalhes sobre a supracitada situação, mas deixarei um curto resumo do que está em andamento nas regiões ribeirinhas Yanomamis: em virtude da destruição dos roçados plantados pelas famílias indígenas[5], bem como por outras variáveis, a fome hoje é uma realidade para esses grupos populacionais, de maneira que, em troca de alimentos, adolescentes tem sido submetidas a manterem relações sexuais com os garimpeiros. Para “facilitar” este acesso às adolescentes e fazê-las ficarem mais suscetíveis às suas investidas, pesquisadoras indígenas que estiveram em campo para a construção desse diagnóstico narram que os garimpeiros embriagam as garotas.

A exploração sexual não é uma exclusividade desse contexto, nem tão pouco o é a fome ou a tentativa de domínio e objetificação dos corpos das mulheres por meio de subterfúgios quaisquer, e isso me impele a fazer um questionamento: o que o caso da menina yanomami de 12 anos, estuprada e morta, tem a ver com a minha vida ou com a sua, que por hora parou para ler minhas inquietações e talvez comigo dialogar?

Para refletir sobre isso a apresentar meu ponto de vista, considerando o conjunto das informações até aqui apresentadas e sua conexão com as tessituras do que os demais cenários que compõem a realidade gritam, chamo atenção para o seguinte: o garimpeiro que pratica a violência sexual, dentre outras possibilidades de ações nocivas à vida indígena, é não só apenas a ponta de um incomensurável iceberg que encontra-se majoritariamente submerso e longe dos olhares alienados da população, mas também é parte do grupo que sofre com o funcionamento da engrenagem que favorece o capital e despreza a humanidade. Assim, se o garimpo ilegal opera de forma tão danosa nas Terras Indígenas (TIs), não são os garimpeiros, vindos de contextos precarizados de vida, os principais algozes e estrategistas dessa bárbara história. Para que isso seja possível, há todo um fomento econômico entrelaçado a escolhas políticas na base dessa movimentação, destacadamente a atuação de empresários com elevada capacidade de investimentos em diálogo com parcerias políticas que agem no sentido de abrir as brechas necessárias para facilitar o aumento cada vez maior da produção de fortuna às custas da destruição da natureza e daqueles/as que a defendem e são parte constitutiva dela.

Dessa forma, ao se jogar luz sobre tais apontamentos a partir de uma leitura de totalidade da realidade e retomando o fato que inicialmente me trouxe até aqui, é possível fazer a seguinte afirmação: se uma menina foi violentada e morta dentro desse cenário, esse não é um episódio descolado da costura social na qual determinados grupos populacionais são oprimidos, explorados e - destaco - exterminados, em nome da produção e reprodução do capital. Não se trata apenas da postura machista individual de determinados sujeitos, nem tão pouco pode se reduzir tal problemática a uma “questão cultural”. Trata-se, antes, da forma como as estruturas cisheteropatriarcais, racistas e classistas/capitalistas se engendram para forjar relações sociais desiguais e nas quais determinadas vidas sejam matáveis e outras protegidas; nas quais haja crianças e adolescentes de um lado, enquanto do outro há apenas um bolo não individuado de “menores” que precisam ser responsabilizados/as (especialmente por seus próprios infortúnios!); nas quais o histórico de violência seja tão naturalizado, que uma ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, se sinta à vontade para declarar que lamenta o episódio do estupro e morte da menina Yanomami, mas que casos como esse acontecem todos os dias[6]; nas quais há uma guerra - por vezes declarada, por vezes velada - contra os corpos dos grupos subalternizados, destacadamente contra aqueles que cotidianamente são colocados sob invisibilidade e inferioridade de forma mais acentuada[7].

Dessa forma, finalizo este texto - que começou como uma denúncia-reflexão -, transformando-o numa convocatória, e afirmando a necessidade de rompermos com a fragmentação da vida e da história, assim como com a busca da pessoalização do nosso inimigo. Ele não é um homem encarnado no papel de um garimpeiro, mas sim um sistema responsável pela formação de sujeitos e sujeitas que se subjetivam e se objetivam no mundo dentro de determinadas condições materiais, as quais hoje só permitem, para a grande maioria de nós, a sobrevivência dentro dos processos de opressão e de exploração que vivemos de forma desigual e combinada. Mas, exatamente por ser movimento e história, é que não podemos deixar de esperançar e agir para transformar essa realidade. Para que outras meninas indígenas não sejam vítimas de crimes de nenhuma ordem, assim como para que todas aquelas que habitam as TIs, e todas nós - de todos os cantos do planeta! -, possamos sentir a noite finalmente adormercer nos nossos olhos de forma serena, cheias de molhadas lembranças banhadas pelas alegrias que nossas lutas coletivas ão de produzir. Contra todas as formas de opressão e de exploração, sigamos juntas/os/es!

 

Notas e Referências

CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara de Morais. Feminismo, diversidade sexual e serviço social. São Paulo: Cortez, 2018.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê. 2017.

HUTUKARA ASSOCIAÇÃO YANOMAMI; ASSOCIAÇÃO WANASSEDUUME YE'KWANA. Yanomani sob ataque: garimpo ilegal na terra indígena Yanomami e propostas para combatê-lo. Boa Vista: Instituto Socioambiental/Hutukara Associação Yanomami; Associação Wanasseduume Ye’kwana. 2022. Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para> Acesso em 06 de maio de 2022.

 

[1] O termo se refere ao fato de que não há apenas um padrão hierárquico de opressão e de exploração dos homens sobre as mulheres (patriarcado), mas também, de forma imbricada, há uma hierarquização dos padrões cisgenerificados (identificação compulsória do gênero com o sexo biológico) e heteronormativos sobre os corpos, e que são determinantes dentro das relações sociais (CISNE; SANTOS, 2018).

[2] Foi formada uma comitiva composta por integrantes do Ministério Público Federal (MPF), da Polícia Federal (PF), da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) para apurar a denúnica de estupro seguido de morte da menina Yanomami. Depois da realização de visita técnica ao local, o MPF se manifestou afirmando que não foram encontrados indícios materiais que comprovassem os crimes denunciados, havendo então a necessidade de aprofundamento das investigações, que seguem em curso. Contudo, destaque-se que historicamente situações como essas e outras referentes à outras práticas de ataque aos povos indígenas vem acontecendo não de hoje, o que dá concreticidade e demasiada importância para a denúncia do referido caso. Ademais, destaque-se também que, além de tal fato, foram denunciados o sequestro de uma bebê e de uma mulher (tia da garota morta e mãe dessa outra criança). As informação sobre a denúncia do caso e sobre o andamento da investigação podem ser acessadas, respectivamente, em: <https://amazoniareal.com.br/nara-bare-diz-que-estupro-e-morte-de-menina-yanomami-e-genocidio-institucionalizado/> e em  <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-04/comitiva-faz-diligencias-para-investigar-morte-de-menina-yanomami>.

[3] O relatório foi publicado em abril de 2022 e consta como importante fonte de informações sobre o povo Yanomami,  bem como sinaliza questões que podem caber em outras realidades indígenas brasileiras. O documento pode ser acessado em: <https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/prov0491_1.pdf >.

[4] Não obstante, destaque-se ainda que há em funcionamento, paralelamente à isso, uma rede de cooptação de mulheres adultas de fora das regiões indígenas para a prostituição, a partir da promessa de grande rentabilidade finaceira, quando, na verdade, muitas das que se aventuram nesse trabalho no meio da floresta, se tornam prisioneiras, posto que não conseguem se quer reunir os recursos necessários para bancar sua viagem de volta para casa.

[5] A ação dos garimpos não destrói apenas as matas selvagens, mas também as terras cultivadas pelas populações indígenas ((HUTUKARA ASSOCIAÇÃO YANOMAMI; ASSOCIAÇÃO WANASSEDUUME YE'KWANA, 2022)

[6] A fala da ex-ministra Damares Alves foi feita no contexto de uma entrevista ao veículo Uol News, e pode ser encontrada no seguinte endereço eletrônico: <https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/damares-sobre-estupro-de-menina-yanomami-lamento-acontece-todo-dia>.

[7] Se os números oficiais sobre violência divulgados por instâncias como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública são preocupantes e impactantes no que tange ao escopo total da população, o que dizer de contextos específicos como os das mulheres, crianças e adolescentes indígenas, dentro dos quais há o desafio - ou até um entrave estrutural, em certa medida - da subnotificação de casos acompanhado do descompromisso em investigar as ocorrências e dar-lhes algum tipo de encaminhamento.

 

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