REFLEXÕES QUANTO AO PROJETO DE LEI N. 6583/2013 (ESTATUTO DA FAMÍLIA) À LUZ DA CRFB/1988    

25/05/2019

 1 INTRODUÇÃO

A presente investigação científica tem como tema o Estatuto da Família, objeto do projeto de Lei n. 6583/2013 à luz da CRFB/1988. O problema de pesquisa questiona o conceito de família do inserido no projeto e sua interface com os demais grupos sociais e a própria CRFB/1988. Com relação à metodologia empregada, foi utilizado o método de abordagem e de procedimento o dedutivo. Já as técnicas de suporte adotadas compreendem o uso de legislação, doutrinas e artigos

 

2 REFLEXÕES QUANTO AO PROJETO DE LEI

Verifica-se, pois, que a proposta do Estatuto da Família já nasce na sua totalidade inconstitucional. Tal projeto conceitua família como sendo “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” É perceptível que tal conceito é embasado em preceitos religiosos. A única família que será contemplada pelas políticas públicas contidas no projeto é a família tradicional (que a igreja institui) composta por pai, mãe, e filhos, ou por qualquer um dos pais e seus filhos (famílias monoparentais).

A realidade da sociedade brasileira não é mais a mesma do século passado. Vive-se hoje em um Estado Democrático de Direito (Art. 1º, caput, CRFB/1988). A discussão a respeito de políticas públicas voltadas para as famílias não pode ser exclusiva da vontade heteronormativa. Não há de se falar em um único modelo de família na sociedade, e muito menos que este é o modelo a ser seguido por todos os indivíduos. No Brasil e no mundo, existem hoje diversas formas de entidade familiar, e estas são excluídas das políticas públicas que o projeto oferece – todos os indivíduos das diferentes famílias contribuem com os mesmos tributos que a dita “família tradicional” –, mesmo assim se insiste em impor uma exclusão de direitos e garantias.

É perceptível por detrás do projeto de lei a promoção de interesses religiosos, por meio de um discurso machista que exclui qualquer forma de entidade que não seja a tradicional família seguidora dos dogmas religiosos. Se o conceito de família diz respeito apenas a uma única forma de entidade familiar, é consequência disso a exclusão das demais formas de comunidade familiar. O que torna a questão ainda mais emblemática é que com essa exclusão de tipologia e favorecimento de outra (família tradicional), fere-se também todos os princípios jurídico-sociais que estruturam a sociedade e o ordenamento jurídico brasileiro, como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, CRFB1988) e o Princípio da Igualdade (Art. 5º, CRFB/1988).

Os direitos e garantias dos demais tipos de família são violados gravemente. A violação acarreta insegurança para todos os direitos e garantias dessas demais formas de família, como por exemplo os direitos patrimoniais e sucessórios. Excluir das políticas públicas que são oferecidas pelo Estatuto, as demais formas de família, é ferir gravemente cláusula pétrea consagrada na CRFB/1988 – igualdade. No ano de 2013, a Ordem Jurídica brasileira teve um grande avanço, pois, em decisão histórica, o Conselho Nacional de Justiça resolveu que as autoridades competentes não poderão recusar habilitação de casamento ou conversão de união estável em casamento de pessoas do mesmo sexo. Mesmo assim, há decisões contrárias à Resolução n. 175/2013.

Não há de se falar que tal Resolução não possui legitimidade normativa para que decisões sejam tomadas a partir das disposições constantes da Resolução, pois a própria Constituição permite o posicionamento ora normatizado no art. 103-B, CRFB/1988. Quando da não formalização legal da união de pessoas do mesmo sexo, seja pelo casamento ou pela união estável, direitos patrimoniais e sucessórios desses indivíduos não são assegurados, uma vez que não legalizada a união, os bens constituídos na constância da união são repassados aos parentes de acordo com a linha sucessória legal estipulada pelo Código Civil brasileiro vigente (Lei nº 10.406, de 10-01-2002). Portanto, a imposição do Estatuto acarretará no acúmulo de ações no judiciário, visando o reconhecimento da união homoafetiva, a fim de que os bens que foram constituídos da união permaneçam entre os indivíduos que os constituíram.

As exclusões que o projeto de lei ocasiona ao conceituar de forma restrita o que vem a ser uma entidade familiar são muitas. Não há dúvidas quanto a exclusão das famílias compostas por pessoas do mesmo sexo, tendo em vista o discurso machista e religioso que tenta solidificar a propositura do estatuto. Um homem e uma mulher sem filhos não constituirão família, pois segundo o estatuto é necessário que possuam descendentes. Aqui é perceptível de forma clara o interesse religioso, uma vez que a família é a que a igreja projeta, os descendentes do casal tornar-se-ão seguidores fiéis aos mandamentos da igreja. Os avós que cuidam e educam seus netos desde o nascimento, por falta dos pais ou outro motivo, também não são considerados indivíduos que formam uma entidade familiar. Da mesma forma, os tios que cuidam de seus sobrinhos, os padrinhos e seus afilhados. Segundo o estatuto, constituirá família, a comunidade formada pelos pais e seus descendentes. Descendência pressupõe consanguinidade. Ou seja, filhos adotados não constituirão família, pois não possuem o mesmo sangue de seus pais. As famílias compostas por filhos adotados serão excluídas de todas as políticas públicas oferecidas pelo estatuto.

O relacionamento entre os indivíduos dessa tipologia diversa de família não é considerado para o estatuto algo normal, por isso não constituem família. Portanto, não existe um conceito de família único. Pode-se verificar que são inúmeras as entidades familiares. Cada uma tem os indivíduos que as compõem a sua forma de se relacionar. O que o estatuto conceitua é a vontade religiosa e machista externalizada em uma norma legal.

Por outro lado, quem defende a propositura da instituição do estatuto da família, argumenta que a proposta é para garantir a não desconstrução do conceito de família. Somente se desconstrói algo que está construído. Não é o caso da conceitualização do que vem a ser família. Nunca houve um conceito de família, pois todas as formas de relacionamento compõem uma entidade familiar e cada uma vive da sua forma. Não se pode dizer que existe uma unicidade familiar dentro de uma sociedade diversificada como é a brasileira.

O que está por detrás do projeto é a não desestruturação da família tradicional que solidifica os ideários religiosos. A desconstrução do conceito de família como elucida o deputado, nada mais é do que a desconstrução de uma sociedade religiosa que não quer perder sua hegemonia. A Carta Magna de 88 consagrou em diversas diretrizes que estruturam o corpo constitucional, o Princípio da Laicidade Estatal, verificam-se tais postulados, dentre outros artigos, no art. 19, I.

 

3 PARA CONCLUIR

O discurso de que a solução para o conflito entre a sociedade e o que dispõe o Art. 226 da Constituição de 88 aborda também a Proposta de Emenda a Constituição-PEC, com a finalidade de alterar tal dispositivo, para concessão do direito de contrair matrimônio pessoas do mesmo sexo. Contudo, o referido artigo não exclui o casamento homoafetivo. O artigo se omite no que diz respeito ao casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, não há a necessidade de uma PEC para alterar este preceito magno, basta que os operadores do direito, – e não apenas o Legislativo –, interpretem a Constituição Federal de forma sistêmica. A interpretação sistemática, “isto é, a descoberta da mens legislatoris da norma jurídica pode e deve ser pesquisada em conexão com as demais do estatuto (Constituição) onde se encontra” (FRANÇA, 1999, p. 11). Por este método, a interpretação busca correlacionar os dispositivos normativos da Constituição. Não se pode interpretar a Constituição em “pedaços”, mas como um todo harmônico. Hans Kelsen ao elaborar a famosa pirâmide normativa, na qual a Constituição fica no topo, abaixo a legislação, por conseguinte, atos administrativos, e posteriormente os contratos e decisões, já trabalhava com a interpretação sistêmica da Constituição a fim de manter os dispositivos num todo harmônico.

 

Notas e Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 175/2013 - Enunciado nº 14. Min. Joaquim Barbosa. Brasília-DF 14 maio 2013. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2504>. Acesso em 14 nov 2015.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projetos de Lei e Outras Proposições. Brasília-DF, 2013. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005>. Acesso em 06 nov 2015.

FRANÇA, Rubens Limongi. Hermenêutica Jurídica. 7. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1999.

 

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