O fenômeno da globalização caracterizado pela grande concentração de capitais, diminuição de espaços provocada pela evolução dos sistemas e generalização célere da comunicação, tentou impor determinada cultura, convicção, modo de agir e pensamentos, supranacionais, causando verdadeiras transformações.
Em virtude disto atualmente, alterou-se as relações pessoais e econômicas, sendo em algumas ocasiões, as individuais, não mais perceptíveis e nacionalizadas, mas sim difusas e decorrentes da volatilidade do capital mundial, tendo os conflitos resultantes desse processo atingido não mais vítimas determinadas, mas sim a sociedade como um todo.
Com a implementação do Estado Social e interventor inaugurou-se uma nova modalidade de bens jurídicos, que possuem caráter mais social, mais ligado a ideia de garantia da propriedade, de garantia da liberdade, cuja relevâncias para sobrevivência da humanidade e a manutenção de suas condições básicas é indiscutível, denominando-se de bens jurídicos transindividuais.
As constituições modernas, inclusive a Constituição Brasileira de 1988, impôs ao Estado, exatamente o papel de controle social que se atribui ao Direito Penal, de estabelecer ao Poder Público obrigações positivas de proteção dos valores constitucionais consagrados com o fim de reduzir lesões privadas a direitos essenciais mediante a prevenção de crimes e estipulando sanções penais, com a finalidade de regular a vida em sociedade (CUNHA, 1995)
Esta intervenção estatal exigida, por sua vez, tem caráter normativo, devendo ser utilizado o Direito, em especial para alguns, o Direito Penal como “remédio”, aderindo à proposta que este seria o único mecanismo de intervenção apto a diminuir os riscos.
Silva Sánchez (2002) explica que o Estado ao instituir uma sanção penal, depara-se com duas pretensões legítimas marcadas pela necessidade de proteger os indivíduos dos mais variados abusos cometidos por outros indivíduos (abusos privados) e também pelo dever de intervir na liberdade dos indivíduos sem violar direitos fundamentais (abusos estatais).
Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o Estado passa a deter o monopólio da força para reagir de forma mais severa contra o comportamento desviante, criando sanções penais, ele assume, paralelamente, o compromisso de fazê-lo da maneira menos arbitrária (e menos danosa socialmente) do que o faria o particular, evitando a vingança privada.
Assim, o Direito Penal, tem a finalidade de regular a vida em sociedade, assegurando expectativas e disciplinando os limites da liberdade individual, ele também possui características próprias que devem ser levadas em consideração para a delimitação de seus fins e dos fatores que justificam sua existência.
Quando o Estado passa a regular à gestão da promoção das liberdades individuais do cidadão, protegendo os bens jurídicos antes não alcançáveis, os difusos e coletivos, como a ordem tributária, sistema financeiro, relações de consumo, livre iniciativa, meio ambiente, enquanto bem jurídico, denomina-se de Direito Penal Moderno.
Essa expansão de proteção do Direito Penal, tem causado certa discussão, pois para Gomes (2002) somente os bens imprescindíveis para a convivência dos indivíduos em sociedade podem ser objeto de proteção de uma norma penal incriminadora. Ademais é necessário que esse interesse seja essencial para o desenvolvimento da personalidade do ser humano e para o convívio pacifico em sociedade.
O jurista afirma que a necessidade de tutela penal desses novos bens jurídicos tem provocado uma grande revolução na estrutura de certos delitos por conta da ausência de concretude desses bens, adicionado a um considerável aumento de interconexões causais e à crescente substituição de contextos de ações individuais por outros de caráter coletivo.
Tal expansão de proteção tem sido acompanhada pelo uso cada vez mais comum de novas técnicas de tipificação, criando inúmeros crimes de perigo abstrato, pois a legitimidade deste ramo do Direito pressupõe não só uma atuação eficaz no combate ao comportamento criminoso, mas também a contenção do arbítrio estatal mediante a imposição de regras formais para a aplicação de pena e a existência de um critério material mínimo que justifique a tipificação ou descriminalização de comportamentos.
Hassemer (2003), originário da Escola de Frankfurt, é um dos principais críticos da proteção destes novos bens jurídicos universais e abstratos, entendendo que a utilização constante de crimes de perigo abstrato, pode gerar uma excessiva antecipação de proteção, provocando uma flexibilização de certas garantias penais clássicas, dificultando a contenção do arbítrio estatal.
Para Hassemer (2005) caberia somente ao Direito Penal a tutela dos interesses individuais clássicos, isto é, a proteção de bens jurídicos individuais e concretos, devendo a outros ramos do Direito tutelar os novos e grandes riscos da sociedade atual e futura, sob pena de sucumbir a característica de ultima ratio do Direito Penal.
É valioso destacar que o Direito Penal não tem como única finalidade, a redução da violência estatal, mas também deve preocupar-se em reduzir a prática de atos privados que afetem o convívio pacifico entre os indivíduos, logo, não é possível excluir a possibilidade de criminalização de condutas que atentem contra certos bens coletivos e abstratos que não guardem referibilidade a um indivíduo concreto.
Porém esta obsessão social pela pena leva uma expansão muitas vezes exacerbada da tutela penal, pois embora o direito penal possua certa carga pedagógica, a sua tutela jamais poderá impedir a prática de determinada conduta por estar tipificada no ordenamento jurídico, senão bastaria criminalizar certa conduta como lesiva à sociedade para que esta não fosse mais praticada.
Portanto, embora a tutela penal seja necessária, esta não é a única solução definitiva para todos os problemas sociais, devendo ser usada pelo Estado, apenas quando outro ramo do Direito não puder solucionar (princípio da subsidiariedade) e nos casos de sérias lesões ou ameaças de lesões aos bens jurídicos de maior relevância (princípio da lesividade).
Notas e Referências
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime: Uma perspectiva da criminalização e descriminalização. Porto, Universidade Católica Portuguesa Ed.1995.
GOMES. Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo. Revista dos Tribunais,2002
HASSEMER, Winfred. Características e Crises do moderno Direito Penal. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre, ano II, n 18, fev – mar 2003.
HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.
SILVA SÁNCHEZ, José Maria. A expansão do Direito Penal – Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode