Reflexões e consequências práticas da descaracterização do regime de hediondez para o tráfico privilegiado pela Suprema Corte

28/06/2016

Por Alessa Pagan Veiga e Arthur Corrêa da Silva Neto - 28/06/2016

Na sessão realizada no dia 23 de junho de 2016, o Supremo Tribunal Federal – STF, no âmbito do Habeas Corpus – HC 118.533, impetrado pela Defensoria Pública da União – DPU, por maioria decidiu que o crime de tráfico privilegiado não tem natureza hedionda.

Aludido julgamento teve início na sessão do dia 24 de junho de 2015, na oportunidade a relatora Ministra Cármen Lúcia e o Ministro Luis Roberto Barroso definiram voto por descaracterizar o regime de hediondez do delito em comento, todavia abrindo divergência o Ministro Edson Fachin declinou entendimento pelo caráter hediondo do delito, na oportunidade votaram no mesmo sentido os ministros Teori Zavascki, Rosa Weber e Luiz Fux.

Na mesma sessão pediu vista para melhor analisar o caso o Ministro Gilmar Mendes, o qual devolveu a vista na sessão do dia 01 de junho 2016, momento em que votou com a relatora, não obstante ainda na mesma assentada os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, reconheceram como hediondo o crime de tráfico privilegiado.

Assim, quando parecia que o julgamento teria o desfecho de manter a jurisprudência da Corte, o Ministro Presidente Ricardo Lewandowisk tomou a palavra sem adiantar seu voto, manifestando questões fáticas sobre a qual de forma inerente circundava o tema, tais como dados estatísticos que o reconhecimento da não hediondez do tráfico privilegiado, levaria à soltura de 45% das mulheres presas e que 68% das mulheres encarceradas são decorrentes de envolvimento em delitos de tráfico de drogas.

A partir dessa declaração se deu início a um vasto debate no qual foram trazidos diversos argumentos, nessa medida o Ministro Fachin, de forma não usual, entendeu por pedir vista do processo para uma reanalise, haja vista que como consoante declinou na sessão havia aberto a divergência apenas tomando por base o precedente da Corte que até aquele momento era por caracterizar como hediondo o delito de tráfico privilegiado.

Retomado o julgamento em 23 de junho de 2016, o Ministro Fachin antes de declinar que reajustava o voto, assentou que o pressuposto fático vinculado ao recorte de gênero trazido pelo Ministro Presidente teve o condão de instigá-lo a fazer uma reanalise da questão.

Na ótica de revisão do seu voto balizou sua fundamentação jurídica, nos seguintes termos: a) observância do princípio da individualização da pena; b) necessidade de previsão legal e estrita para inserção de qualquer delito como crime hediondo e equiparado, mas que tal não acontece com tráfico privilegiado; c) verificação do princípio da proporcionalidade e interpretação sistemática do ordenamento jurídico dão ensejo a desconfiguração da natureza hedionda em razão de que, trata-se de delito que a pena por muitas vezes margeia patamar de pena caracterizador de crime de menor potencial ofensivo e que sequer cabe prisão preventiva, que não encerra óbice a aplicação de pena restritiva de direito, que mesmo o delito de associação para o tráfico não é hediondo, assim como um delito que prevê para se subsumir tenha o agente que ser primário, ter bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas nem integrar a organização criminosa, seja considerado hediondo; d) Em que pese o art. 33, § 4°, da Lei de Drogas não ser tipo penal autônomo, a lei 8.072/90, quando quis atingir pelo regime da hediondez figuras típicas com causa de diminuição de pena, por exemplo crime tentado, o fez expressamente; e) a análise da questão também não resiste a consideração da tipicidade conglobante que consiste em tipicidade material e formal, pois do ponto de vista material a conduta privilegiada do tráfico não finca matizes de hediondez; f) Considerar o tráfico privilegiado hediondo faz quebrar a unidade do sistema jurídico, entre outros aspectos abordados, mas sendo estes os principais.

Logo, em seguida a mencionada manifestação na mesma esteira os Ministros Teori Zavascki e Rosa Weber reajustaram o voto para acompanhar a relatora.

Ainda como razão de decidir foi declinado pelo Ministro decano Celso de Mello a necessidade de respeito as regras de Bangkok que objetivam viabilizar aplicação em favor das mulheres alternativas diversas da prisão. Outro ponto também levantado foi o impacto que tal decisão traria para o encarceramento feminino.

Constando igualmente como ratio decidendi, a Ministra Carmen Lúcia apontou acerca de que muitas das mulheres presas na situação objeto do julgamento, estão em ocasião de dependência psicoafetiva ou mesmo econômica de companheiro que a introduz na prática delitiva, outras vezes são presas por estarem no mesmo ambiente de depósito da droga, mas um fato marcante a se ressaltar é o impacto social, pela perspectiva relativa ao afastamento dos filhos das respectivas mães.

Por fim, o Ministro Presidente Ricardo Lewandowisk declinou acerca da homenagem que o julgamento fazia as regras de Mandela, diploma internacional definido por Gerivaldo Neiva[1] como:

O documento da ONU conhecido atualmente como Regras de Mandela (em homenagem ao grande líder negro sul africano) é uma atualização do documento "Regras Mínimas para o Tratamento de Presos" aprovadas em 1955, em Genebra, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas por meio das suas Resoluções 663 C (XXIV), de 31 de julho de 1957 e 2076 (LXII), de 13 de maio de 1977.

O Ministro Lewandowisk ainda repisou quanto aos impactos fáticos como a possibilidade de concessão do indulto e comutação que não poderiam ser deixados de lado, assim como os números do INFOPEN que registram um contingente de 68% das mulheres encarceradas estarem envolvidas com delitos relacionados ao tráfico de drogas ou associação para o tráfico e em grande medida na conduta típica objeto do julgamento, declinou também que os números registrados na estatística carcerária quanto ao tráfico muito decorre da própria crise econômica que o país atravessa.

Mas, desse julgamento para além das digressões jurídicas sempre muito pertinentes, nitidamente o que importou mais foi o aspecto fático-sociológico que o tema objeto de julgamento tinha, notadamente, sua conexão com o encarceramento feminino.

Destarte, desse julgamento que possui matizes históricas – merecendo o detalhamento aqui realizado – se extrai a ampla possibilidade de a perspectiva fática dialogar com o interprete e ser determinante no juízo decisório.

Tal encaminhamento no âmbito do STF já havia sido pontuado pelo Ministro Barroso, como registramos[2] no HC 123.108.

Essa modalidade de análise das questões penais, reputamos extremamente adequada, pois colmata vertente interpretativa das mais modernas.

Ademais, essa linha de decidir tomando uma política criminal desencarceradora insere no contexto cálculo que deveria ter sido realizado pelo Poder Legislativo que muitas vezes não o faz por ser interesse contramajoritário.

Combater a superlotação carcerária deve implicar contas no legislativo de quanto por exemplo a inserção de um tipo penal ou um aumento de pena ou obstaculização de progressão de regime mesmo do ponto de vista econômico traz para o Estado.

A conjugação de esforços deve ser comum a todos os Poderes, mas o Poder Judiciário como poder moderador bem encaminha a questão com a sinalização que um julgamento como o que delineado traz.

Na doutrina, acerca do tema em tela Roxin[3] já alertava que existem limites impostos ao legislador na criação de normas, dentre eles: a) São inadmissíveis as normas jurídico-penais unicamente motivadas ideologicamente; b) Os simples atentados contra a moral não são suficientes para a justificação de uma norma penal; c) As leis penais simbólicas não buscam a proteção de bens jurídicos; d) As regulações de tabus tampouco são bens jurídicos, e por isso não devem ser protegidas através do Direito Penal; e) Os objetos de proteção de uma abstração incompreensível não devem reconhecer-se como bens jurídicos.

A saúde pública, dito bem jurídico protegido pelo crime de tráfico de drogas, é abstrata. Não há lesão direta a bem de terceiros. Trata-se mais de tabu temporário, cujas opiniões da sociedade são contraditórias e sustentadas pela moral e bons costumes, que ora implica em algo a ser repreendido, ora implica em algo a não ser repreendido, como várias substâncias que apareceram e desapareceram ao longo da história da humanidade.

Se a própria essência do crime de tráfico é colocada em questão, já que a saúde pública é um bem abstrato, não existindo lesão direta a bem de terceiro, já se indagava, qual seria a razão ou circunstância de se considerar o crime de tráfico privilegiado equiparado a hediondo?

Nos termos do artigo 33, §4º da Lei 11.343/2006, as penas do tráfico de drogas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Ontologicamente, crime hediondo é a antítese de padrões éticos de comportamento sociais, cujos autores são perversos em grau extremo e de alta periculosidade.

Não há equiparação a hediondez no ânimo de um sentenciado primário, que não tem a vida voltada ao tráfico de drogas. A interpretação literal de determinados artigos, de forma isolada das garantias do sentenciado, dos princípios gerais e de outras normas penais e processuais, resultava no desvio do sentido jurídico da norma de crimes hediondos e equiparados.

O inciso XLIII, do artigo 5º, da Constituição Federal, que determina maior rigidez aos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos, conforme estabelecido no julgamento foi devidamente lido à luz do princípio da proporcionalidade e igualdade.

Com base em tais princípios verificamos a existência de leis de menor potencial ofensivo, leis penais comuns e leis penais hediondas ou equiparadas.

Desse modo, se fez a verdadeira justiça, pois conferir como se fazia antes do over rule empreendido, o mesmo tratamento penal ao agente primário, de bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas e nem integre organizações criminosas, era estabelecer tratamento igual a pessoas diferentes.

No tráfico privilegiado não há aspecto subjetivo que indique caráter repugnante ou extrema periculosidade do agente. Temos aspecto subjetivo de privilégio, que se sobrepõe ao aspecto objetivo da norma.

Há muito tempo a jurisprudência não considera o crime de homicídio qualificado-privilegiado como hediondo, justamente em razão do privilégio ser incompatível com a hediondez do crime.

O artigo 2º da Lei 8.072/90 veda anistia, graça, indulto e fiança aos crimes hediondos, à prática de tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e ao terrorismo. O artigo 44 da Lei 11.343/06, por sua vez, prescreve que é equiparado a crime hediondo apenas os crimes previstos nos artigos 33 “caput” e § 1º, e 34 a 37. Portanto, como foi anotado no HC 118.533, não há menção expressa do § 4º, do artigo 33 da Lei de Drogas, logo sua inserção com a natureza de hediondez sempre se mostrou indevida.

Com efeito, sempre entendemos que o artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas, retirava a equiparação à hediondez, porque se tratava de crime praticado por réu primário, de bons antecedentes, e que não se dedicava a atividade criminosa.

A hediondez ou equiparação à hediondez se baseia em critérios legais. O princípio da legalidade estrita é garantido pela Constituição Federal, no inciso XXXIX, do artigo 5º. Portanto, se própria lei exclui o tráfico privilegiado do rol dos crimes equiparados a hediondos, pelo princípio da legalidade, a pena deve ser considerada comum para fins de direitos na execução penal.

Seguindo os ditames da norma inserta no artigo 44 da Lei 11.343/2006, os Decretos Presidenciais, a partir do Decreto n. 6.706/2008, estabelecem a vedação do indulto e comutação aos crimes de tortura, terrorismo ou tráfico de drogas, nos termos dos artigos 33 “caput” e § 1º, e 34 a 37, daquela lei.

Nessa senda, desconsiderada a natureza de hediondez, tendo como fundamento a legalidade estrita como consignado na ratio decidendi do HC 118.533, consequência também imediata do julgamento é o cabimento de indulto e comutação de penas para aquelas pessoas privadas de liberdade que tenham incidido no artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas.

Também no plano execucional os direitos a progressão de regime e livramento condicional se darão respectivamente nos percentuais de 1/6 e 1/3, face o reconhecimento como delito comum.

Nessa medida, fruirão desse direito como anotado no voto do Ministro Ricardo Lewandowiski, página 09:

Estima-se que, entre a população de condenados por crimes de tráfico ou associação ao tráfico, aproximadamente 45% desse contigente (ou algo em torno de 80.000 pessoas, em que grande maioria, repito, mulheres) tenha experimentado uma sentença com o reconhecimento explicito de privilégio.

Mister ressaltar, igualmente, agora como consequência no plano do processo penal de conhecimento que é indiferente para consubstanciar a conduta de tráfico privilegiado a quantidade e a substância, haja vista que é imanente ao tipo aspectos subjetivos do agente.

Nesse contexto, também vale assinalar que a grande ou pequena quantidade da droga não terá o condão de fazer os juízes de instâncias anteriores fazerem o escrutínio de se o delito de tráfico privilegiado a partir dessa faceta terá a natureza ou não de hediondo, haja vista que a lógica imposta pela Suprema Corte é, reconheceu está o agente subsumido na conduta do artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, então a natureza do crime praticado é comum, por conseguinte os direitos estabelecidos na execução penal todos lhes serão concedidos pelo raciocínio do crime comum.

Aludidas assertivas se extraem diante da constatação de que o quadro fático delineado no julgamento em tela era de que os réus foram pegos com 772 kg de droga, em um caminhão escoltado por batedores.

Ressalte-se, que os Ministros amplamente debateram também essa questão, alguns colocando que a moldura fática talvez não teria sido a melhor para debater a tese, todavia discordamos dessa assertiva, tendo em vista que o enunciado normativo não faz menção a quantidade, mas tão somente a necessidade de ser primário, ter bons antecedentes, e não se dedicar a atividade criminosa e nem integrar a organização criminosa.

Desse modo, quantidade e substância são irrelevantes ao enquadramento da conduta, portanto, ou o agente se dedica a atividade criminosa e integra organização criminosa não sendo capitulado no privilégio ou é capitulado no privilégio e sua conduta é considerada delito comum fazendo jus na execução da pena aos direitos decorrentes da natureza desse delito.

Mas, como última perspectiva que se espera a partir do julgamento do STF é que os órgãos componentes do aparelho repressivo do Estado não distorção a histórica decisão passando a capitular toda e qualquer conduta como artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006, buscando voltar ao estado quo ante, mas se assim o fizerem esperamos dos órgãos jurisdicionais a clareza necessária para identificar o movimento e debelá-lo.


Notas e Referências:

[1] Neiva, Gerivaldo. As regras de Madela implodem o sistema prisional brasileiro. < http://jornalggn.com.br/noticia/regras-de-mandela-e-o-sistema-prisional-brasileiro-por-gerivaldo-neiva > acessado em 25.06.2016.

[2] Silva Neto, Arthur Corrêa. Jurisprudência do STJ que estabelece prazo prescricional do Código Penal para PAD do apenado influencia na superlotação carcerária < http://emporiododireito.com.br/jurisprudencia-do-stj-que-estabelece-prazo-prescricional-do-codigo-penal-para-pad-do-apenado-influencia-na-superlotacao-carceraria-por-arthur-correa-da-silva-neto/ > acessado em 25.06.2016.

[3] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009, p.20-25.


Alessa Pagan Veiga. Alessa Pagan Veiga é Defensora Pública do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Sanitário pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Representante de Minas Gerais na Comissão Especializada em Execução Penal do CONDEGE. Coordenadora da Câmara de Estudos de Execução Penal da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais. .


Arthur Corrêa da Silva NetoArthur Corrêa da Silva Neto é Defensor Público do Estado do Pará; Membro do Conselho Superior da DPE/PA; Coordenador Geral da Comissão de Execução Penal do CONDEGE; Membro do Conselho Penitenciário do Estado do Pará; Membro do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária do Pará – CEPCP; Membro do Grupo Condutor da implantação no Estado do Pará da Política Nacional de Atenção Integral a Saúde da Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP; Coordenador Geral do Projeto “Defensoria Sem Fronteiras” do CONDEGE realizados nos Estados do Paraná e Pernambuco; Coautor do Livro Execução Penal – Novos Rumos, Novos Paradigmas. 1ª ed. 2ª tiragem, rev. Manaus: Aufiero.


Imagem Ilustrativa do Post: Combate à criminalidade e ao tráfico de drogas // Foto de: Fotos GOVBA // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agecombahia/5907211062

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura