Por Rogério Zuel Gomes – 27/12/2016*
Princípio ainda vigente na Teoria Contratual é o da relatividade dos contratos (“res inter alios acta”). Significa dizer: os contratos vinculam somente as partes que o firmaram. Todavia, dada a complexidade das relações contratuais que, em alguns casos, envolvem terceiros com interesses relacionados ao objeto contratado sem que com isso, estes terceiros figurem na relação contratual, surge a necessidade de se rever o referido princípio, a fim de que se possa em determinados casos afastá-lo ou mitigá-lo.
Este fenômeno de interligação sistemática, funcional e econômica entre contratos estruturalmente diferenciados implica consequências jurídicas[1] que desafiam o direito contratual contemporâneo, daí a necessidade de uma visão sob uma perspectiva que vai para além da análise da relação jurídica entre os contratantes diretos, assim entendidos aqueles que formalmente seriam os únicos detentores de direitos e obrigações decorrentes do contrato firmado. Esta assertiva ganha maior relevo, ainda, se tomarmos em conta alguns tipos específicos de contratos, v.g. o de financiamento habitacional, seguros de saúde, seguros de vida e previdência privada, como salientado quando tratamos dos contratos relacionais em ensaio anterior.
A Figura do Terceiro na Relação Contratual
Em regra o contrato não tem o condão de vincular, beneficiar ou prejudicar terceiro, daí a sua inoponibilidade a terceiros. Todavia, poderá surgir oponibilidade em determinadas circunstâncias, v.g. nas hipóteses em que se dê ciência de determinados atos a terceiros mediante notificação (sujeitos determinados) ou publicidade (sujeitos indeterminados). Ressalte-se, também, as hipóteses legalmente previstas que importam em reflexos jurídicos no patrimônio de terceiros, v.g. a promessa de fato de terceiro, contratos de seguro de vida, entre outros.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), observa Otavio Luiz Rodrigues Junior, resolveu outro significativo problema envolvendo o princípio da relatividade dos efeitos contratuais pela via da ampliação do conceito de fornecedor, já que diante desta nova qualificação jurídica, prestadores de serviços, fabricantes, importadores, distribuidores e vendedores passaram a representar um monólito de responsabilidade perante o consumidor, dando fim a discussões sobre quem seria terceiro em face de um contrato específico.[2]
Assim, releva trazer ao debate aquelas hipóteses em que o terceiro não participou diretamente do negócio jurídico celebrado, mas pode vir a sofrer consequências do seu não cumprimento. Dito de outra forma, se seria possível admitir que um determinado contrato pode servir de fonte de direito oponível a alguém que não fez parte dele.
As redes contratuais vistas como um sistema – Para uma visão além do princípio da relatividade
Com base no escólio de Rodrigo Xavier Leonardo podemos afirmar que as redes contratuais buscam potencializar benefícios e diminuir riscos num mercado cuja característica é a competitividade e especialização de seus integrantes.[3] As redes, desta forma, facilitam sobremaneira a oferta de produtos e serviços e, ao mesmo tempo em que proporcionam o barateamento do bem ofertado, facilitam a circulação do mesmo porquanto neste sistema[4] o próprio conjunto de benefícios resta otimizado, o que certamente contribui para atrair os contratantes. Note-se que, a exemplo das vantagens obtidas na forma de contratação por adesão, as redes contratuais buscam otimizar um semelhante conjunto de vantagens, não por acaso. A sociedade de massa, no que toca aos contratos, amoldou um conjunto de necessidades e soluções de fundamentos idênticos, justificado pela imperiosa necessidade de realizar elevados números de contratos no menor espaço de tempo e com menor custo possível. Como obstáculo à velocidade de contratação, o mercado depara-se com a necessidade de realização de tarefas complexas, implicando a impossibilidade do contratado em cumprir, em condições efetivas de concorrência, com o avençado sem que necessite de auxílio de um terceiro. Daí se poder afirmar, com Ricardo Lorenzetti, que há “um conjunto de partes interdependentes, de tal forma que uma não pode existir plenamente sem o concurso de outras. Precisa-se então de uma coordenação que gere um dever de cada uma das partes de contribuir para a manutenção do todo”.[5] A existência a que se refere o jurista argentino deve ser entendida, a nosso ver, também, como condição de existência/sobrevivência no mercado concorrencial, implicando reconhecer que, na realidade pós-moderna, o campo fértil para que as redes contratuais se desenvolvam está lastreado, basicamente, em relações contratuais contínuas (relacionais) que devem dar conta de necessidades surgidas ao longo deste caminho.
Assim, a rede contratual vista a partir da noção de sistema não permite uma eventual confusão com um simples conjunto de contratos. É necessário que entre dois ou mais contratos que formam o sistema exista um vínculo funcional, um nexo objetivo, que justifique a percepção de uma rede[6], e cujo objetivo/destino seja um só, não permitindo confusão com contratações independentes e autônomas. Referido nexo objetivo não retira desta forma de relação contratual os deveres inerentes à qualquer outra relação contratual, porém, a possibilidade de o terceiro sucumbir às consequências do não cumprimento do avençado por um dos contratantes se mostrará mais evidente, já que sua participação na rede se justifica também pela busca de lucro e espaço no mercado. Daí a oportuna lição de Judith Martins-Costa: “Nos contratos apresentados em cadeia e em rede, a questão já é delicada a partir do próprio juízo de qualificação, que deve iniciar com a compreensão da operação econômica que está na base do contrato, veste jurídica da operação econômica. Ora, se já não é tarefa simples qualificar juridicamente operações econômicas singulares - mas que não encontram correspondência em tipos legais - intuitivo é perceber as dificuldades na qualificação de ajustes em cuja base estão operações econômicas múltiplas, complexas e conexas, embora marcadas por uma unidade finalista. Nestes casos, mais do que evidenciar a singularidade de um ajuste atípico, deve o jurista compreender que está frente a um contrato que só é compreensível, econômica e juridicamente, se for alcançada a ideia de ‘supracontratualidade’: essa ideia está no cerne das redes ou sistemas contratuais”.[7] Mosset Iturraspe reforça este alerta quando destaca o cuidado em não se confundir a rede contratual a que nos referimos neste ensaio (o autor prefere a denominação contratação conexa) com contratos plurais independentes entre si: “En estos encadenamientos negociales falta el extremo o requisito del ‘destino común’, de la relación o vinculación económica entre los acuerdos. [...] No se busca um solo objetivo económico a través de vários contratos sino uma variedade de objetivos a través de uma variedade de contratos”.[8]
Assim, a necessária visão sistêmica desta relação contratual deve permitir, segundo Ricardo Lorenzetti, a identificação de uma finalidade negocial supracontratual a justificar o nascimento e funcionamento de uma rede, em função do surgimento de um grupo e não de uma união convencional de contratos a serem analisados a partir dos vínculos individuais. Daí se falar em deveres sistemáticos[9] independentes de uma causa jurídica que integre diretamente os componentes da rede. O que não se pode desprezar é a existência de uma causa econômica impondo aos vínculos individuais um funcionamento como sistema.[10] Trata-se, desta forma, de reconhecer a “conexidade”[11] como pressuposto do funcionamento da rede contratual, diferentemente da “integração”, que resulta em vínculo estreito e asfixiante entre as partes que formalmente compõem o contrato.[12]
A integração se relaciona com a causa contratual, o que individualiza o vínculo, enquanto que a conexidade se relaciona com a causa econômica, tornando o vínculo supracontratual. Na integração há um interesse associativo entre os contratantes, visto unicamente a partir do contrato estabelecido; na conexidade o interesse associativo se satisfaz através de um negócio que requer vários contratos unidos num sistema; na integração a causa associativa é o elemento essencial do contrato, o qual tem transcendência normativa quando de sua qualificação e interpretação; na conexidade o elemento associativo se situa no plano do negócio ou do sistema, e não do contrato, não sendo, portanto, um elemento essencial do contrato senão um pressuposto para o funcionamento do sistema.[13]
O reconhecimento do vínculo supracontratual, o que felizmente já vem sendo reconhecido pelo Judiciário,[14] não pode deixar de ser visto como enorme avanço na construção da teoria contratual contemporânea, deixando entrever que as condições de mercado impõem obrigações e procedimentos que haverão de ser sempre levadas em consideração a partir das novas regras de balizamento do comportamento contratual.
A bem da verdade, os contratos, sejam em rede, relacionais ou de adesão, têm o condão de disparar deveres pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais, o que acaba, como aduz Paulo Nalin, produzindo “efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros. Contrato, hoje, é relação complexa solidária”.[15]
Notas e Referências:
[1] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. p. 128 e ss.
[2] RODRIGUES JUNIOR, Luiz Otávio. A doutrina do terceiro cúmplice: autonomia da vontade, o princípio res inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. p. 91.
[3] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. p. 136 e ss.
[4] Referido autor identifica na rede contratual um sistema, pois além da união de diversos elementos, a vinculação ocorre de forma organizada, o que favorece os objetivos de estabilidade, persistência temporal e equilíbrio (In Redes contratuais no mercado habitacional. p. 148). Note-se que o autor também parte de uma nova premissa para a análise da relação contratual: a relação obrigacional vista para além do binômio direitos e deveres ou, ainda, para além da díade obrigação/responsabilidade (haftung und schuld). Ela há de ser vista como um processo cooperativo entre partes para que estas vejam os fins colimados concretamente realizados.
[5] LORENZETTI, Ricardo. Fundamentos do direito privado. p. 199-200.
[6] LEONARDO, Rodrigo Xavier. A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexões a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. p. 103.
[7] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil V. V, t. II. p. 257.
[8] MOSSET ITURRASPE, Jorge. Contratos conexos, grupos y redes de contratos. p. 46.
[9] LORENZETTI, Ricardo Luis. Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos fre a terceros. p. 30.
[10] LORENZETTI, Ricardo Luis. Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos fre a terceros. p. 33.
[11] Possivelmente em decorrência deste pressuposto, parte da doutrina estrangeira adota a denominação “contratos conexos”. Veja-se, por exemplo, a excelente obra da Jorge Mosset Iturraspe: Contratos conexos, grupos y redes de contratos. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1997.
[12] Assim LORENZETTI, Ricardo Luis. Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos fre a terceros. p. 33.
[13] LORENZETTI, Ricardo Luis. Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos fre a terceros. p. 33-34.
[14] Sobre este tema consultar: LEONARDO, Rodrigo Xavier. A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexões a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. p. 100-112. Na obra do mesmo autor, indicada acima, também constam inúmeros julgados tribunais estaduais tratando da matéria.
[15] NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional). p. 255.
GOMES, Rogério Zuel. Teoria contratual contemporânea: função social do contrato e boa-fé. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
LEONARDO, Rodrigo Xavier. A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexões a partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. RT 832
________. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: RT, 2003.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Esquema de uma teoria sistemica del contrato. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, V. 33, p. 68-69, out.-dez./1998. p. 51-78.
________. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
________. Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos fre a terceros. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, V. 28, p. 22-58, out.-dez./1998.
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Vol. V, T. II. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
MOSSET ITURRASPE, Jorge. Contratos conexos, grupos y redes de contratos. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1997.
_______. Justicia contractual. Buenos Aires: Ediar, 1977.
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional). Curitiba: Juruá, 2001.
RODRIGUES JUNIOR, Luiz Otávio. A doutrina do terceiro cúmplice: autonomia da vontade, o princípio res inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. Revista dos Tribunais. São Paulo, n° 821, p. 80-98, mar./2004.
* Versão resumida de trabalhado publicado anteriormente cujo tema também tratamos no nosso: Teoria contratual contemporânea: boa-fé e função social do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
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Rogério Zuel Gomes é Graduado pela Faculdade de Direito Joinville. Especialista em Direito Civil pela Universidade de Salamanca. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Valo do Itajaí. Advogado-Sócio do Escritório Gomes, Rosskamp e Sá Advogados. Professor Universitário.
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