Recebimento de verbas sucumbenciais pela Defensoria Pública após a Emenda Constitucional 80/2014

24/06/2015

Por Leandro Fabris Neto e Juliano Botelho de Araújo - 24/06/2015

A Emenda Constitucional nº 80/2014 foi um grande passo rumo ao fortalecimento da Defensoria Pública. Contudo, ao estipular que se aplica à Defensoria Pública, “no que couber”, o disposto no artigo 93 e no inciso II do artigo 96, ambos da Constituição da República, a norma prevista no art. 134, §4º possibilita interpretações equivocadas, motivadas por subjetivismos e desprovidas de critérios de integridade e coerência.

Um exemplo pode ser encontrado em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso, o qual, debruçando-se sobre a questão do cabimento de recebimento de verbas sucumbenciais pela Defensoria Pública, assim decidiu:

AGRAVO REGIMENTAL — APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO PROVIMENTO PARCIAL — DECISÃO UNIPESSOAL DO RELATOR — DEFENSORIA PÚBLICA — HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS PAGAMENTO PELO MUNICÍPIO — IMPOSSIBILIDADE — EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 80/2014.

A Emenda Constitucional nº 80, de 4 de junho de 2014, conferiu as mesmas prerrogativas da Magistratura à Defensoria Pública, assim incabível receber honorários advocatícios do Município, logo é de se manter decisão unipessoal do Relator que os excluiu.

Recurso não provido”. (AgR, 168178/2014, DES.LUIZ CARLOS DA COSTA, QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data do Julgamento 16/12/2014, Data da publicação no DJE 22/12/2014)

A relevância da interpretação constitucional é mais elevada do que em outros ramos jurídicos, devido à estrutura material e normativa da Constituição, exigindo métodos próprios para a busca do sentido das normas constitucionais.

Como bem remarca Inocêncio Mártires Coelho, as normas "nem sequer traduzem decisões inequívocas do legislador, muito menos uma suposta ou imaginária vontade da própria Constituição – limitando-se, no mais das vezes, a enunciar princípios ou a indicar objetivos a serem comunitariamente alcançados e/ou renovados ao longo do tempo”. (Interpretação constitucional., 4º Ed., Saraiva, 2011. P. 40 e 61).

O sentido textual da norma é multívoco e é nessa plurivocidade de significações que se exprime a norma.

A interpretação do texto conduz à norma, sendo esta o resultado daquela.

A atividade interpretativa é construída sobre os elementos linguísticos que constituem o texto normativo.

O trabalho da interpretação constitucional consiste em identificar e estabelecer o “resultado constitucionalmente correto”, como afirma Konrad Hesse (Cf.: SARLET, Ingo et al. Curso de Direito Constitucional. 2012. P. 203).

Bem por isso, só se interpreta corretamente quando, mediante um procedimento racional e controlável, se chegar a um resultado igualmente racional e controlável e, com isso, assegurar a previsibilidade e certeza jurídica, respeitando-se, sempre, a integridade e coerência do Direito.

Não é o caso da interpretação que fundamentou a decisão supracitada, emanada do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.

Diz o artigo 134 da Constituição da República:

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5o desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional no 80, de 2014)

1o Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. (Renumerado do parágrafo único pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)

2o Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2o. (Incluído pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)

3o Aplica-se o disposto no § 2o às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional no 74, de 2013)

4o São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional no 80, de 2014)

Com essa remissão constitucional do § 4o do artigo 134 ao disposto no artigo 93 e ao disposto no inciso II do artigo 96, o tribunal sustentou não ser cabível a fixação de honorários à Defensoria Pública e, em inconveniente interpretação, concluiu, em resultado, que o inciso XXI do artigo 4º da Lei Complementar 80/94 não têm mais eficácia normativa, aplicando-se quase que integralmente o regime jurídico insculpido para a magistratura aos defensores públicos.

Cumpre registrar, por relevante, que a técnica da remissão normativa deve ser interpretada de forma restritiva.

Assim, a remissão do §4º do artigo 134 da CRFB deve obedecer a certos parâmetros normativos pré-fixados na própria Constituição, com base nos quais o poder constituinte, dentro do âmbito da moldura constitucional da norma, especifica suas hipóteses de incidência.

Desse modo, a remissão só incidirá nos casos não previstos nos parágrafos anteriores. Essa é a única forma de assegurar a coerência do Direito e a eficácia normativa das normas previstas nos demais parágrafos do artigo 134.

O que fez a decisão do Tribunal de Justiça mato-grossense foi criar vedação não prevista nos artigos 93 e 96, II, da CF, aplicáveis diante da remissão do §4º do artigo 134, buscando, de outro lado, aplicar analogicamente a regra constante de dispositivo diverso, qual seja, o artigo 95, § único, II, CF ou, ainda, de regra atinente ao Ministério Público (art. 128, §5º, II, “a”, CF), em verdadeiro arbítrio interpretativo.

Portanto, não há que se falar em aplicação de norma à qual o artigo 134, §4º, da CF não fez remissão. A própria existência e ordenação normativa referente à Defensoria Pública afasta entendimento contrário.

Com efeito, não se pode aplicar vedações da magistratura para a Defensoria que não foram disciplinadas nos artigos 93 e 96, II, da CF (normas aplicáveis diante da remissão do §4º do artigo 134).

Apenas a Constituição e a Lei complementar que organiza a Defensoria poderá estabelecer as regras atinentes às vedações. E, quanto ao recebimento de verbas sucumbenciais, assim o faz a Lei complementar nº 80/1994:

Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:

[…]

XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores;     (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

Vê-se que a norma supracitada, ao utilizar o advérbio exclusivamente, vincula o emprego da quantia equivalente à verba honorária em fundo gerido pela Defensoria Pública.

Forçoso reconhecer, portanto, que toda e qualquer quantia recebida a título de verbas sucumbenciais seja obrigatoriamente aplicada no aparelhamento e aperfeiçoamento dos membros da Defensoria Pública.

A decisão em questão incidiu em verdadeira ilegalidade e inconstitucionalidade, uma vez que aplicou, subjetiva e discricionariamente, em relação à Defensoria Pública, norma constitucional não afeta à instituição (art. 95, § único, II).

Conclui-se, portanto, que, mesmo após a Emenda Constitucional nº 80/2014, não há qualquer óbice ao recebimento de verbas sucumbenciais pela Defensoria Pública.


Leandro Fabris Neto é graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru (Instituição Toledo de Ensino - ITE). Pós-graduando em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (RJ). Membro da Law Enforcement Against Prohibition - LEAP Brasil. Defensor Público (MT).

 


Juliano Botelho de Araújo é graduado em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Ex-advogado da Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (FUNAP-SP). Defensor Público (MT).                                                                                                                       


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