Recall político, um passo de democracia

18/03/2020

Confiança. Esta me parece ser a palavra mais adequada para significar a liga vinculante das relações pessoais e sociais. Penso confiança como a aposta e depois a torcida para que nossos investimentos, sejam os afetivos (pessoais), sejam os políticos (públicos), deem certo.

Não concebo confiança como entrega cega, que aliena a responsabilidade que atine a cada um manter em suas relações. Confio no outro com quem me relaciono em caráter privado ou público, mas não renuncio aos direitos e deveres para com o vínculo que se estabelece.

Nas escolhas que nos compete fazer de autoridades públicas, a confiança é necessária, ou tudo estará fragilizado. A suspeita desgasta os liames da Nação e deixa sem o devido respeito os titulares dos Poderes do Estado. Se queremos conviver, não confiar não é uma opção razoável.

Agora, o indivíduo não alienado – o cidadão –, que é mais que um mero eleitor, deve reservar-se um adequado tanto de ceticismo. Não a suspeita de quem imputa acusações gerais, sem nome indicado ou fato narrado, tipo: “todo político é ladrão”. Mas uma desconfiança metódica.

O ceticismo metódico, nas relações políticas de uma Sociedade, não pode ser pessoal, pois seria irrelevante, surtiria efeitos limitados; mais um desabafo particular do que um gesto cívico. Devem ser construídos meios institucionais por meio dos quais a cidadania articulada possa atuar.

Falta-nos uma instituição que supervisione, com efeitos políticos, os políticos eleitos. Não há previsão de providências quanto às decepções pós-eleitorais. E não falo do político ladrão, que esse, havendo provas (e muitas vezes sem elas) é levado às barras dos tribunais.

Nosso desgosto está no desinteresse, na incompetência, na inoperância, na traição das promessas que os marqueteiros redigem e que os candidatos leem sem compromisso. Estamos enfastiados. Isso nos desinteressa pela República. Mas sabemos que não podemos abandoná-la.

Na Idade Média houve o mandato imperativo: a atuação do político era vinculada à vontade estrita dos seus representados. O eleito ficava sem margem de interpretação do melhor interesse público. Tal formulação restou impraticável, e menos ainda o seria numa democracia de massas.

A ideia prevalecente, e em verdade correta, é a de que o mandatário político representa toda a Nação. Ele não é o delegado de interesses específicos, mas o representante fiduciário da coletividade que, ao seu honesto alvitre, interpreta fatos e conveniências e cumpre a vontade geral.

Mas se o mandatário trai suas obrigações cívicas, que fazer? Bem, há um instituto usado em alguns países que se chama recall. Trata-se de uma forma de revogação de mandato aplicável quando o descontentamento dos eleitores para com um determinado político é significativamente amplo.

Usa-se uma petição (notice of intente to recall petition) com objetivo de retirada de poder, assinada por um número mínimo previsto de eleitores e dirigida diretamente à autoridade pública que sofreu perda de confiança, requerendo-se a sua substituição ou demissão do cargo.

Se a autoridade requerida se nega a atender o solicitado, seja por omissão de resposta, seja por responder negativamente, é realizada votação conforme previsto em lei, submetendo-se aos eleitores que caibam votar a cédula com as opções de confirmar, ou não, a remoção intentada.

Com algumas variações, muitos lugares empregam o instituto. Mais em municípios, mas não só. Nós, ocasionalmente temos ímpetos de reforma política, mas, suspeito, quem alcançou o poder pelas regras vigentes não as mudará, e menos ainda inventará de se “expor” à inspeção popular.

 Mas – confiança – uma revisão honesta de nossas leis eleitorais bem que poderia contemplar o instituto do recall. Talvez com um caminho legal para exercer reclamação de político os cidadãos não desistamos da política como lugar e meio de organização da vida em comum.

 

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