Reapreciação da prisão preventiva pelo juiz da instrução criminal

31/01/2020

O advento do Juiz das Garantias tem sido tema de patente discussão doutrinária desde a promulgação da norma instituidora, apelidada por “pacote anti-crime”, na [talvez] simbólica data de 24 de dezembro de 2019.

Desde então, conforme já pontuamos em oportunidades pretéritas, críticas – umas acertadas, outras controversas – são direcionadas ao instituto que inegavelmente trouxe o recrudescimento da observância as garantias fundamentais presentes no texto constitucional e na codificação processual-penal.

Apesar das críticas ao instituto, as medidas que mais se destacam em relação as responsabilidades processuais atribuídas ao magistrado que detém o papel de “juiz das garantias” são aquelas relativas a prisão preventiva, tema de constante preocupação e debates doutrinários por parte dos operadores do direito minimamente preocupados com os axiomas humanitários do Estado Democrático de Direito.

A começar pela expressa subtração na norma processual da possibilidade de decretação de medida cautelar restritiva da liberdade de ofício - poder este que, atribuído ao magistrado, violava o sistema acusatório, o qual vem incorporado ao códex processual em seu art.3º-A, vedando a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Desta forma, modificou-se demasiadamente o “script processual” desencadeado pela prisão em flagrante lavrada pela autoridade policial, devendo o respectivo auto ser apresentado a autoridade judiciária, no prazo de até 24 horas, a qual designará audiência de custódia, por expressa disposição do Art.310/CPP, convertendo a prisão em flagrante em preventiva, concedendo a liberdade provisória, ou relaxando a prisão.

Importante observar acerca do disposto no art.310, §4º, in verbis:

§4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva.”

Nota-se que o dispositivo impera que a prisão em flagrante tornar-se-á automaticamente ilegal caso o agente não seja apresentado perante a autoridade judiciária no prazo de até 24 horas, por ocasião da audiência de custódia, devendo o flagrante ser relaxado pela autoridade competente, o que poderá ser provocado pela defesa por petição simples de relaxamento de prisão perante o juízo competente.

Entretanto, o magistrado que receber o pedido de relaxamento da prisão ilegal poderá, no mesmo ato, decretar a prisão preventiva do agente, não havendo óbice expresso a tal medida.

Percebe-se que o legislador não vislumbrou qualquer impedimento a apreciação da legalidade da prisão em flagrante do agente, mesmo que esta não tenha sido analisada no tempo hábil de 24 horas, eis que se manteve a possibilidade da decretação da prisão preventiva.

Desta forma, importante se indagar sobre a hipótese de prisão em flagrante procedida com abuso de poder por parte dos agentes de polícia, consubstanciado no emprego de violência física, tornando o ato ilegal. Contudo, o ponto de divergência a se levantar é que os vestígios do abuso de poder perpetrado, normalmente, perdem-se no decorrer do lapso temporal de 24 horas, impossibilitando a apreciação do fundamento de ilegalidade do ato.

Portanto, a disposição adotada pelo legislador possibilitaria a ratificação de atos praticados com abuso de poder e violência física, implantando sistemática de condescendência com a ineficiência estatal verificada na ausência de apresentação do preso a autoridade judiciária no prazo previsto em lei.

Desta forma, ratificada a prisão em flagrante e convertida em medida cautelar pessoal, a atuação do Juiz das Garantias encerra-se com o recebimento da denúncia ou queixa, conforme Art.3º-C, a seguir:

Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.

Destarte, recebida a denúncia ou queixa pelo Juiz das Garantias, em exercício do último ato processual a si atribuído, o feito deverá ser distribuído a uma das serventias jurisdicionais da comarca, devendo o juiz da instrução reexaminar a necessidade das medidas cautelares determinadas pelo magistrado previamente competente, no prazo máximo de 10 dias, por disposição do Art.3º-C, §2º.

Não obstante, verifica-se que o dispositivo textualmente seguinte conflita pragmaticamente com a necessidade de reapreciação das medidas cautelares pelo juiz da instrução, visto que o §3º do Art.3-C determina que os autos da investigação criminal, apreciados pelo Juiz das Garantias, não seguirá em apartado aos autos judiciais submetidos à jurisdição do Juiz da instrução processual.

Para maior elucidação, segue o disposto na norma:

§3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.

Conforme salientado pela doutrina e admitido pela norma em comento, a separação dos autos do inquérito policial dos autos da ação penal visa a subtração da dissonância cognitiva consubstanciada na ratificação dos fatos contidos nos elementos informativos pelo magistrado que analisa as provas produzidas perante o contraditório e a ampla defesa.

Da análise do exposto, vislumbra-se a situação fático-processual de prisão preventiva decretada com base em elementos colhidos na investigação criminal, cabendo ao Juiz das Garantias receber posterior denúncia e encaminhar ao Juiz da instrução, o qual deverá reexaminar a medida cautelar fixada, baseada em elementos colhidos no curso do inquérito policial.

Indaga-se: seria possível o adequado reexame da prisão preventiva fixada com base em elementos de investigação procedido por Juiz que não detém os autos inquisitoriais, os quais contém os elementos justificadores da medida?

A reflexão pretendida encontra respaldo na possibilidade de decretação de prisão preventiva no curso do inquérito policial se presentes provas da autoria e materialidade do delito, requisitos fundamentadores também da instauração do procedimento investigatório, resguardado o periculum libertatis comprovado para a decretação da medida.

Ipso facto, constata-se que se a medida restritiva é decretada no curso da investigação criminal, então os instrumentos de convicção do magistrado estão presentes apenas no inquérito policial, não acompanhando os autos judicias submetidos a análise do Juiz da instrução, restando prejudicado o reexame da medida cautelar pelo Juiz que não possui (e nem pode possuir) todos os elementos motivadores.

 

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