Raskólnikov e a teoria do crime permitido

26/07/2016

Por Luiz Ferri de Barros – 26/07/2016

A psicologia de um criminoso que se julga acima da lei é minuciosamente analisada por Dostoiévski na obra prima Crime e Castigo.

Fosse linear o desenrolar dos fatos em Crime e Castigo (1866) e a saga de Raskólnikov, o trágico herói retratado por Dostoiévski, poderia igualmente ser resumida de forma linear: o crime pré-meditado; o castigo pela consciência e o sofrimento; e, finalmente, a redenção pelo amor.

Entretanto, a história de Raskólnikov e a forma como Dostoiévski a narra não são lineares. Na medida em que a narrativa se desenvolve no tempo, com maior intensidade ela igualmente avança para a compreensão íntima dos personagens, aprofundando a análise psicológica.

Crime e Castigo é um clássico que merece ser lido muitas vezes. Trata-se de livro especialmente interessante para advogados, sejam criminalistas ou não. Para além da extraordinária análise psicológica de um criminoso, ou exatamente por conta disto, o universo do direito é parte central da trama. Não por acaso o protagonista é um estudante, ou ex-estudante, de Direito. Inquéritos e provas são debatidos em diálogos; e um juiz de instrução é personagem destacado da história.

A narrativa dos fatos privilegia o mundo psicológico dos personagens, principalmente do protagonista, Raskólnikov, estudante de Direito que abandonara a Faculdade por falta de meios para se manter. São as emoções, os diferentes estados de espírito e as crenças dos personagens que comandam as ações objetivas.

Dizendo de outra forma, Dostoiévski enfatiza a narração daqueles fatos intelectuais e psicológicos que transcorrem no íntimo dos personagens e é a psicologia dos personagens que comanda os fatos externos da realidade, sendo o mundo real, em muitas passagens, quase integralmente subalterno à subjetividade do protagonista e das demais pessoas que o circundam.

No nível da peculiar subjetividade de Raskólnikov, encontraremos a teoria do crime permitido, segundo a qual, dividindo os homens entre os “ordinários” e os “extraordinários”, o jovem estudante afirma que os primeiros devem viver na obediência às leis; enquanto os extraordinários têm o direito de cometer toda sorte de crimes e infringir a lei precisamente porque são extraordinários e, nessa condição, suas ações poderão vir a representar uma contribuição ao bem comum no futuro.

Sua teoria do crime permitido é ilustrada pela citação de figuras históricas, com especial atenção a Napoleão, frequentemente mencionado por Raskólnikov em seus raciocínios e conversações como exemplo acabado de um homem extraordinário, que, não obstante ser o responsável direto por fabulosos e sanguinolentos morticínios, não é tido como criminoso e sim como herói.

No nível individual, sua teoria, aliás objeto de obscura publicação do estudante numa revista menor,  permite a Raskólnikov desaguar na ideia da tolerância ao crime único: aquele que é permitido se o objetivo central é bom. Um único crime e cem boas ações!

Por essas sendas vemos o romance psicológico de Dostoiévski ampliar-se para reflexões históricas, políticas e éticas de natureza atemporal. Raskólnikov é um personagem desequilibrado, que, por sua desmesurada vaidade, orgulho, egoísmo e presunção julga-se um homem extraordinário e, como tal, com direito a matar uma velha agiota, que ele considera um piolho, com vistas a roubar-lhe o dinheiro para, segundo os seus planos, ultrapassar os “primeiros passos” e seguir seus estudos para ao final tornar-se o grande homem que imagina ser e praticar as boas ações que o esperam no futuro.

Na complexidade psicológica de seus personagens, Dostoiévski não deixa espaço para o maniqueísmo. Assim, o jovem Raskólnikov, afinal um frio e brutal assassino, é, ao mesmo tempo, um filho e um irmão carinhoso, e um cidadão generoso, disposto a amparar o sofrimento alheio fazendo presente a miseráveis de todo o dinheiro que possui.

A teoria do crime permitido que nos apresenta Dostoiévski não é uma apologia e sim uma reflexão crítica – e de inteira atualidade. O que ele diz dos napoleões de todas as épocas vale para os déspotas de hoje com ainda maior força, pois sendo contemporâneos são os únicos cujos crimes podemos combater.

Igualmente é atemporal a crítica à ideia do crime único individual: “um crime e cem boas ações!” Tivesse o crime permitido a Raskólnikov praticar as cem boas ações, ainda assim teria havido o assassinato imperdoável.

Mas Raskólnikov não admite esse crime e jamais se declarará culpado do assassinato que praticou: qual é o crime em se matar um piolho? – ele se defenderá até o fim, insistindo na tese do crime permitido.

Retomando a ideia, aliás impossível, de resumir Crime e Castigo, poderíamos agora reformular os primeiros passos da saga psicológica percorrida pelo jovem herói Raskólnikov.

A premeditação do crime pouco teve a ver com o planejamento do assassinato, tarefa que ocupou pouco tempo e foi feita de forma tosca. Essa preparação prévia consistiu principalmente numa elaboração intelectual de ordem ética, baseada em falsos princípios, pela qual o jovem, julgando-se um homem extraordinário, acreditou ter o direito de matar a velha usurária.

O castigo, para Raskólnikov, não se inicia pelo sofrimento em face da consciência do crime e o consequente arrependimento. Muito ainda faltará ao jovem para ser capaz de compaixão. Pelo contrário, para Raskólnikov, o calvário de sofrimentos e o castigo, no início, são de ordem tão egoísta quanto a própria teoria do crime permitido.

O jovem sofre insuportavelmente porque o desenrolar dos acontecimentos demonstrará para si mesmo que ele não é, afinal, um homem extraordinário como anteriormente julgava ser. Sua incompetência para lidar com as consequências de seu ato fez com que ao assassinar a velha ele matasse a si mesmo psicologicamente, acabando com sua vida, e é só por isto que ele sofre.

Quando Dostoiévski escreveu seus livros, a Psicologia não existia enquanto ciência ou campo de conhecimento estruturado. No entanto, a profundidade da análise psicológica que Dostoiéviski faz de seus personagens é espantosa e fascinante.

Dostoiévski não aprendeu sobre a alma humana nos livros. No caso dele foi diferente: Freud e outros grandes mestres é que foram a seus livros para estudar as emoções humanas.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 5. Nº 16. São Paulo, abril de 2015.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br.


Imagem Ilustrativa do Post: Delitto e Castigo // Foto de: Emanuele // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/zakmc/3226123184

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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