Raduan Nassar: um escritor de poucas palavras

18/10/2016

Por Luiz Ferri de Barros – 18/10/2016

Raduan Nassar, “o maior escritor brasileiro em inatividade”, foi eleito vencedor do Prêmio Camões 2016, a mais importante distinção da literatura em língua portuguesa.

Consta que Raduan Nassar, ao saber de sua escolha para o Prêmio Camões 2016, com a ironia que lhe é peculiar, teria dito à reportagem de um grande jornal que o procurou para entrevistá-lo: “Não entendi este prêmio. Minha obra é um livro e meio!” Dito o quê, declinou do convite para a entrevista.

A atribuição a ele desta láurea, que além de muitíssimo prestigiosa confere ao vencedor substancial prêmio pecuniário – 100 mil euros –, confirma que nas artes o que vale é a qualidade. Assim, com dois livros publicados na década de 1970, e tendo depois disto abandonado a literatura, Raduan Nassar tornou-se o décimo segundo brasileiro a vencer o Prêmio Camões, ao lado de João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Antonio Cândido de Melo e Souza, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, entre outros.

Os dois livros fundamentais de Raduan Nassar são o romance Lavoura Arcaica e a novela Um copo de cólera, publicados respectivamente em 1975 e 1977. Em 1997, já afastado da literatura há vinte anos, publicou Menina a Caminho e outros textos, reunindo contos anteriormente impressos em revistas e jornais.

A ironia do escritor ao referir-se à sua “minguada” obra, por diversas vezes, composta por não mais do “um livro e meio”, explica-se: a novela Um copo de cólera tem pouco mais de 80 páginas – seria este o seu “meio livro”; o romance Lavoura Arcaica não chega a 200 páginas.

No entanto, essas obras, feito notável e extraordinário, já nasceram como clássicos da grande literatura, transformando de imediato um escritor anônimo num dos grandes autores brasileiros de todos os tempos. Mas, imediatamente seu meteórico sucesso nas letras, Raduan Nassar abandonou a literatura. Comprou uma fazenda no interior do estado de São Paulo e foi para lá dedicar-se inteiramente a ser fazendeiro.

Avesso a entrevistas, os motivos que o levaram a abandonar a literatura nunca foram bem explicados; ou, melhor dizendo, bem entendidos. Seu afastamento, no entanto, contribuiu para criar uma aura de mistério e ampliar o interesse por este autor de poucas palavras, que produziu memoráveis textos, compactos e de intensa força dramática e poética.

Instado a explicar por que abandonou a literatura, o escritor que se transformou em fazendeiro, de início, chegou a afirmar que “não há criação artística ou literária que se compare a uma criação de galinhas”, para depois classificar sua própria resposta como “desequilibrada”, emendando, todavia, com a seguinte reflexão: “Se eu fosse um sujeito equilibrado, eu não teria tido a liberdade de fazer aquela afirmação [sobre a criação de galinhas]. Só desequilibrados é que descobrem que este mundo não tem importância. O bom senso seria uma prisão.”

Sua decisão foi ainda mais difícil de entender porque Raduan Nassar, antes, havia abandonado tudo que fazia na vida para dedicar-se inteiramente à literatura. A resposta mais “equilibrada” que se obteve do autor para essa dupla renúncia – primeiro para abraçar as letras, depois para largá-las – consiste numa explicação existencial que parece não explicar tudo: “Foi a paixão pela literatura, que certamente tem a ver com uma história pessoal. Como começa essa paixão e por que acaba, não sei.”

Diante do enigma, não faltou quem dissesse que o escritor, sujeito de temperamento tímido e arredio, não aguentara a pressão do sucesso; nem tampouco faltou quem dissesse que ele tinha esgotado sua aventura com as palavras, como se não lhe coubesse mais o que inventar no seu trato experimental com o idioma, ou o que contar com equivalente força dramática. Dele também já se disse que é “o maior escritor brasileiro em inatividade”.

Lavoura Arcaica é a história de uma família rural patriarcal, descendente de imigrantes, com arraigada ética de trabalho e rígidos valores religiosos. A história é narrada a partir da ótica de um filho desajustado, que dela se desgarra, fugindo da fazenda onde vivem para esquivar-se do amor incestuoso por uma irmã. Esse filho pródigo vem a ser resgatado por seu irmão mais velho num fétido quarto de pensão e é levado de volta ao lar. Mas o seu retorno traz a desarmonia e faz irromper terrível tragédia na família. A história configura, assim, uma inversão da parábola do filho pródigo.

Um Copo de cólera relata o encontro amoroso de um homem mais velho, um quarentão talvez, culto e sistemático, e sua jovem namorada, uma jornalista politizada, seus jogos sexuais e sutis provocações noturnas que, de forma repentina, ao raiar do dia, acabam por explodir em coléricos vitupérios que um lança ao outro, deflagrados pela ira que provocam no homem as formigas saúvas que durante a noite abriram um buraco na cerca viva do jardim de sua chácara.

Em ambos os livros, Raduan Nassar vale-se de estilo original e peculiar de escrita, muita vez vazada na forma de prosa poética e sempre utilizando-se de pontuação diferenciada, sendo cada capítulo dos livros – salvo na parte final do romance – escrito num único período, sem parágrafos, e com uso quase que exclusivo de vírgulas. A absoluta precisão com que o escritor escolhe as palavras e o cuidado com que as usa demonstra laborioso trabalho de um artífice da linguagem.

O ritmo dos textos não é o mesmo nos dois livros, no entanto. Enquanto Lavoura Arcaica não é leitura sempre fácil, chegando mesmo a ser pesado em várias passagens, Um copo de cólera desenvolve-se num ritmo alucinante, carregando consigo o leitor que não consegue se desvencilhar do movimento arrebatador e sempre surpreendente do texto.

Os dois livros foram adaptados ao cinema, com a utilização quase textual de suas narrativas para os diálogos dos personagens.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 5. Nº 25. São Paulo, outubro de 2016.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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