Questões e apontamentos à Felipe

11/12/2020

 Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma esperança qualquer.

É preciso que alguma coisa atraia
a vida
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminhos.

É preciso que haja algum respeito
ao menos um esboço:
ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas
- Poema do aviso final de Torquato Neto

Machado de Xangô, fazer honrar teu choro
- Criolo, Convoque Seu Buda

É tormentosa a vida sob a crise contínua e a precariedade quando se estampa em todas as vitrines o que anda refletindo em nossa cidade, nas vitrines virtuais em geral, mais do que sempre já foi.

Felipe, somos colegas desde a graduação na Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul e hoje assistimos a privatização leite-bolsonarista que encarregará da venda de um “sistema integrado com acesso direto à infraestrutura logística completa, crescimento de mercado estável e margens premium de refino”, longe de entender o que são margens premium de refino, imagino que estes “ativos” que atendem bem ao mercado do Cone Sul arriscam a tornarem-se monopólio privado. Vale dizer que a Refap (Refinaria Alberto Pasqualini) localizada em Canoas, município que habitamos nesta longa jornada de estudos, agora na La Salle. Onde você não só fez um belo trabalho, como dedica-se a pensar e trocar sobre o tema da colonialidade e da construção nacional. Pergunta-se sob o índice da ideologia desenvolvimentista, qual a consequência da divisão racial no pensamento jurídico na sociedade brasileira. Além de interessante o tema, ele atrai os últimos debates de intelectuais negros brasileiros e atualiza-se com a visível disputa conceitual. Questão que me deterei neste texto, para que possamos ampliá-la em outra oportunidade.

 

 

A dinâmica da pesquisa social no/do direito está deslocada da própria apreensão da conscientização e politização praticada pelo marxismo. Digo isto como tensionamento do campo político-acadêmico na análise e inserção da realidade em movimento, tentando contrariar a tendência conservadora da tradição jurídica. Em quais posições na estrutura se equilibra a esquerda jurídica e como ela se desacopla do grito de que só sobreviverão os concursados no campo das necessidades? Que tendência é essa que nos empurra ao centro do dissenso na sanha de resolvê-lo, solucioná-lo, ao invés de construirmos juntos e juntas aos modos e formas periféricas de legitimação?

Pode o jurista recusar o campo jurídico?

A que mudança passam as pessoas afetadas e atuantes com a morte de João Alberto quando o nome e a teoria-chave que dão consistência para ao enfrentamento no campo das ideias se recusa em recusar as negociações de respostas institucionais? O que se altera substancialmente com a participação de Silvio de Almeida em comissão independente?

Vejamos minha capacidade de responder a estas perguntas da última à primeira. Sim, a participação do professor e intelectual Silvio de Almeida pode ajudar eficientemente a pensar formas amplas de reparação e evitar mortes por sua firme posição em defesa da vida dentro dos lugares institucionais, como ele mesmo colocou em seus dezessete pontos[1].

A próxima questão apresentada – e estendida a você, Felipe – é de como a posição jurídica mina a consistência e a radicalidade da luta que se fundamenta no registro acadêmico-jurídico. Me parece que as e os dissidentes da posicionalidade juridicista, aquelas e aqueles que se colocaram em voz e letra contra a aderência institucionalizada do professor Silvio de Almeida tem uma certa legitimidade e é nela que se foca minha argumentação. Sua existência é do impulso de ação, de conquista de novos lugares, na construção de pensamentos novos, na insurreição e a machadadas, se for preciso, como nos lembra Torquato N. em seu Poema do aviso final.

Ao se ver saturada a disposição prático-teórica do racismo estrutural, não estaríamos diante de sua incapacidade de promover agitação fora das instâncias de negociação, longe das fórmulas de administração estatais e corporativas, Felipe? Penso que isto causa duas posições incômodas a serem consideradas, trabalhadas e superadas. A primeira incomodidade está no princípio da formalização jurídica que será ferido, a segunda, trata do princípio da formalização teórico-acadêmica da aposta antirracista sendo reposicionado pelo dissenso.

Reinventar e suturar estas mazelas será tarefa importantíssima para que o princípio da formalização não desborde por cima da luta social e/ou política. Caso contrário, facilmente se dará o argumento de que o engajamento institucional social-democrata constitui o fim último da capacidade de transformação, disto discordo completamente e creio que você também.

Longe de me ater no julgamento da opção de Silvio de Almeida ou de formar opinião sobre ela, creio que cabe nos manter a par do impossível próprio da formalização, acompanhar a decisão prática do conceito e persistir nos seus pontos de impossibilidade. Forçá-los, recusando persistentemente o campo jurídico. Cortar o semblante que sustenta a desigualdade constitutiva não se dá por aderência teórica ou jurídica e sim na capacidade de torcer e perturbar a subjetividade que desfaz os sentidos comuns.

Surpreendentemente durante a confecção do texto ocorre a transposição do conceito, o nome que recebe modifica-o de imediato, as condições teóricas que o cercam. Foi Jones Manuel que resolveu toma-lo sem receio.

Com o consenso da práxis do conceito bloqueada, a teoria de Sílvio de Almeida bambeou em sua receita, causou descontentamento por parte de aderentes do movimento negro, da luta anticolonial, das sensibilidades rebeldes que giram entorno destas forças. Um sintoma interessante que desdobra questões acerca do intelectual público e do conceito na construção nacional do pensamento juridicizado e, agora, não juridicizado também.

O mais interessante foi que em meio ao nosso debate, Felipe. Jones Manuel “raptou” o conceito de Sílvio e costurou nele uma retomada anti-colonial para ele. No curto vídeo O que é racismo estrutural[2] para Carta Capital, Jones nos convida a pensar a superação do racismo sob bases emancipatórias sem olvidar das lutas e expressões anticoloniais, basta conferir os títulos que vão interessar a ti, pesquisadores do TSD e demais pesquisadores-críticos da La Salle: A sociologia do negro brasileiro, Raça, Classe e Revolução: a luta pelo poder popular nos EUA e Colonialismo e luta anticolonial.

Aproveito para dividir contigo a leitura de Losurdo: Presença e Permanência[3] da editora Anita Garibaldi, livro dedicado a Domenico Losurdo com dois textos dele, um estudo bibliográfico de Stefano Azzarà, um estudo introdutório de João Quartim de Moraes e este que subscrevo rapidamente, da lavra de Diego Pautasso, Marcelo Fernandes e Gaio Doria.

O texto Marxismo e a questão nacional: Losurdo e a dialética nacional-internacional nos introduz ao pensamento do autor italiano sobre a construção nacional, que iminentemente dialoga com o Estado e suas instituições. Segundo os autores, o debate sobre a relação entre as lutas de libertação nacional e a causa comunista nem sempre foi consenso. A origem do debate remonta a sequência política da União Soviética, inclusive acerca de considerações feitas no Manifesto de 1848. Se num primeiro momento a afirmação do Manifesto Comunista pôs a questão apátrida dos operários, posteriormente, nomes como Rosa Luxemburgo, Otto Bauer, Kautsky e Lenin retomaram a questão nacional sob o calor do final do século XIX e início do século XX.

Ao rememorarem este debate, os autores apontam que Losurdo é aderente da linha de Lenin, em que o comunismo não pode ignorar as lutas de libertação nacional no sistema internacional de Estados hierarquizados econômica e politicamente. Mais, trata-se justamente da aclimatação do marxismo à realidade histórica e geográfica de cada país, pois a práxis de uma teoria universal tem de responder a desafios locais e nacionais que se perguntem sobre o processo de modernização. Logo, a distinção entre nação oprimida e nação opressora significa uma diferença elementar sobre a questão nacional se formos falar da divisão social do trabalho e/ou da superação dos processos de desumanização. Para Losurdo, o debate de Lenin contra Rosa em Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação resgata o ímpeto de apoio às lutas de libertação nos países periféricos, a crítica aos democratas-constitucionais e a articulação do ímpeto popular no desenvolvimento da soberania nacional.

Para os autores, a dialética integridade-autodeterminação em Losurdo corresponde aos desafios nacionais que não podem ser projetados sem se considerar complexidades e assimetrias internacionais. Dentre elas, pode-se citar não só o intervencionismo “humanitário” norte-americano, a mudança de regime via golpe constitucional e outros modos de desestabilização, que não se restringem a quarteladas... É este recrudescimento neoliberal que avança sobre o Estado de Direito e a legitimação por exportação de valores pela nação reverte-se em hostilidade de retórica imperial. Losurdo defende que a autodeterminação dos povos expõe as contradições das narrativas imperiais e nos coloca diante e à prova da, já repetida noção, de “democracia universal”. Em suma, Domenico Losurdo acrescenta a luta de classes uma certa complexificação em sua teoria geral do conflito social.

Este é só um pequeno ponto que podemos pensar diante da retomada teórica do conceito proposta por Jones Manuel. Enfim, já me estendi demais tanto na apresentação deste debate no campo teórico-político. Jones Manoel na vanguarda destes novos avanços pelas plataformas digitais, desestabiliza a noção até então estabelecida de racismo estrutural e responde à angústia pela funcionalização do termo. Vale dizer que está aberta a questão, como sempre esteve; e quem pode nos responder são as pessoas que no conceito leem a sociedade, e desta leitura se influenciam em comum, pensam e radicalizam suas práticas de transformação social e política. O racismo estrutural como conceito não deixará de estar formalizado nos livros e teorias, entretanto, o movimento real pode questioná-lo como acesso ao real. Podemos pensar e suspeitar que ele (o conceito) não nos sirva mais como machado, ou então, para seguir com Torquato, nos valha àquele que se dispõe a empunhá-lo.

P.S.: A velocidade do conceito. Antes de terminar este texto ouço a notícia de que #busque racismo estrutural foi pintado hoje na avenida Faria Lima neste dia 10 de dezembro de 2020.

 

Notas e Referências

[1] Link sobre a explicação de Silvio de Almeida em Comitê: https://www.brasil247.com/brasil/silvio-almeida-explica-sua-participacao-em-comite-do-carrefour-se-eu-puder-evitar-mais-uma-morte-farei.

[2] Jones Manuel, O que é racismo estrutural, Carta Capital. Em 02 de dezembro de 2020, https://www.youtube.com/watch?v=rM1DEFdVGiA.

[3] MORAES, João Quartim de. Losurdo: Presença e Permanência. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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