Fatal
O esforço afinal concluído
e – agora – o que foi
feito, inalcançável.
O retorno ao tumulto,
à pressão do informe que,
ao durar se desmanchando,
forma um outro fascínio igual.
(Duda Machado)
Há 60 anos, foi inaugurado com o golpe militar de 1964 um dos decursos mais obscuros do Brasil, como muitos historiadores acertadamente definem o intervalo de 21 anos em que o país esteve sob o jugo da Ditadura Militar. Isto porque, perseguição política, supressão de direitos, censura, tortura e assassinato compunham a dinâmica brutal de poder perpetrada pelos governantes auto outorgados do período.
Tudo em volta estava deserto, mas, apesar do impossível chão militarizado, despontaram no cenário cultural nacional alguns dos nomes mais importantes do que se convencionaria chamar de música popular brasileira. Entre eles, destacam-se os baianos Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia, cujas histórias estão entrelaçadas desde o início: subiram ao palco juntos pela primeira vez em 1964 para fazer o show Nós, por exemplo, que inaugurou o Teatro Vila Velha em Salvador.
Eles fizeram parte, cada um à sua maneira, de um campo artístico que passa a desempenhar, após o golpe, um papel de resistência cultural à implantação do projeto representado pelo movimento militar, ainda que de forma não homogênea.
Maria Bethânia estreou profissionalmente em 1965, no Rio de Janeiro, no musical Opinião, espetáculo considerado a primeira resposta cultural ao golpe, “uma tentativa destemida de conferir o impacto gerado pelo golpe e os limites de expressão da cultura na nova conjuntura política” (Teixeira, 2024, p. 40). Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, ao lado de outros artistas, fundaram e declararam extinto entre 1967 e 1968 o Tropicalismo, um movimento de renovação da canção popular que, catalisando os impasses da situação pós-1964 e as ambiguidades que dilaceravam as práticas políticas e culturais no período, abriu novas possibilidades criativas para essa geração (Teixeira, 2024).
A participação de Gal no Movimento Tropicalista - assim como seu elo afetivo-estético com Caetano e Gil - foi fundamental, como se verá, para a sua transição de cantora bossanovista a ícone da juventude e, posteriormente, ponta de lança da resistência estética à ditadura no país (Contente, 2021) ao atingir o auge de sua persona política em Gal a todo vapor, espetáculo que estrelou em 1971.
Os festivais e o Tropicalismo
Em 1966, Gal Costa participou do I Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Defendeu com suavidade bossanovista a música Minha senhora, de Gilberto Gil e Torquato Neto, mas não foi classificada.
Em 1967, Caetano Veloso e Gal Costa lançaram em conjunto, devido a uma decisão comercial da gravadora Philips, o álbum Domingo (1967), que marcaria a estreia fonográfica de ambos e de uma das uniões estéticas mais profícuas e importantes da música brasileira. O disco foi lançado pouco tempo antes do happening tropicalista.
Nesse ano de intensa mobilização estudantil e de muitas novidades no âmbito cultural (Teixeira, 2024), também se realizou o III Festival da Música Brasileira, da TV Record, em São Paulo, cuja novidade ficaria por conta das músicas Domingo no parque, de Gilberto Gil, e Alegria, alegria, de Caetano Veloso: acompanhados pelos Beat Boys e Os Mutantes, eles traziam inovação no modo de compor, elaborar arranjos (com a introdução das guitarras elétricas, por exemplo) e de cantar.
A essa altura, já havia toda a movimentação estético-intelectual-comportamental que formaria as bases do Tropicalismo, mas Gal ainda se apresentava de forma menos radical do que a explosão que viria a ocorrer em 1968 (Maia, 2023). No Festival citado, ela defendeu Bom dia, de Gilberto Gil e Nana Caymmi, e Dadá Maria, de Renato Teixeira – músicas com melodias retraídas e letras alinhadas à canção de protesto (idem).
A consolidação das ideias e dos ideais tropicalistas culminou na gravação do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis (1968), criado coletivamente por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes (Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias), Tom Zé, Rogério Duprat, Torquato Neto e José Carlos Capinam. Com a interpretação de Baby, composição de Caetano que integrava o disco, Gal adquiriu projeção nacional, convertendo-se em um ídolo da juventude (Contente, 2021).
Alinhada à estética tropicalista, Gal Costa performou um momento paradigmático de sua carreira, um marco de transição de cantora tímida para artista símbolo da Tropicália: a defesa de Divino maravilhoso (Caetano Veloso e Gilberto Gil) no IV Festival de Música Popular Brasileira, em novembro de 1968.
Após a participação no disco coletivo tropicalista, Gal se interessou pela música ao avaliar as novas composições dos colegas. Caetano sugeriu que ela cantasse no festival e Gil se dispôs a fazer o arranjo, embora a ideia de uma roupagem explosiva na canção tenha partido de Gal, que queria cantá-la de uma maneira nova, diferente do que havia feito até então.
Usando um cabelo inspirado no estilo black power e uma roupa com espelhos e balangandãs, Gal cantou com fúria e força para uma plateia em polvorosa. Antes de entoar o refrão, é preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte, soltava um grito forte em total harmonia com o arranjo incendiário e a postura provocativa de quilate tropicalista. Segundo a cantora, foi a primeira vez que ela sentiu que tinha presença de palco.
O ano que não terminou
No dia 13 de dezembro de 1968, poucas semanas após a apresentação explosiva da cantora, foi promulgado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que "era uma ferramenta de intimidação pelo medo, não tinha prazo de vigência e seria empregado pela ditadura contra a oposição e a discordância" (Schwarcz; Starling, 2015, p. 455).
O decreto governamental marcou o endurecimento da ditadura militar ao legitimar práticas que suprimiam as liberdades individuais e os direitos humanos primários. O ato ditatorial institucionalizou a repressão política e o terror promovido pelo Estado durante o regime.
Sob esse panorama opressor, no final de dezembro daquele ano, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos sob a duvidosa acusação de que teriam desrespeitado a bandeira brasileira e o Hino Nacional, símbolos da pátria. Após dois meses encarcerados entre São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, foram enviados para o exílio em Londres, de onde só retornariam definitivamente três anos depois.
A partir daquele momento, coube a Gal o papel de preservar a transgressão tropicalista em solo brasileiro. Sem suas principais referências, ela passaria por um processo tão doloroso quanto criativo que a colocaria na linha de frente da resistência tropicalista (Contente, 2021).
Nesse contexto, ela se mudou de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde encontrou suporte afetivo e artístico na cena contracultural, sobretudo no músico Jards Macalé e no poeta Waly Salomão. Waly seria o responsável por dirigir, em 1971, um dos maiores atos culturais contra a repressão militar: o espetáculo Gal a todo vapor, com produção de Paulinho Lima e arranjos do guitarrista Lanny Gordin.
Sinto alegrias, tristezas e brinco
O clima crescentemente repressivo assolava o Rio de Janeiro no início dos anos 70. O grande conforto, contou a cantora, eram as Dunas da Gal, um território livre durante a ditadura onde era possível se expressar. Segundo Jorge Mautner, cantor e amigo que frequentava o local, era um lugar que poderia ser chamado de “Dunas da Liberdade”.
O local originado pela retirada de parte da areia do mar para a construção do Píer de Ipanema virou o ponto de encontro de jovens, artistas e intelectuais no período. As dunas dificultavam a visualização a partir da rua, isolando a juventude de praia do caos urbano. Era lá que Gal Costa – ao lado de Waly Salomão, Jards Macalé, Jorge Mautner e outros - passava o dia antes de apresentar no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, Gal a todo vapor.
A concepção e a montagem do show ocorreram nessa ambientação coibitiva que havia se instaurado no país e se intensificado no final de 1968, com o AI-5. O banimento de Caetano Veloso e Gilberto Gil havia sido especialmente doloroso para Gal, que ficara sem seus dois alicerces artísticos e afetivos. Por isso, é muito importante a inclusão no repertório das músicas que Caetano vinha compondo no exílio londrino: Como 2 e 2, Maria Bethânia e Chuva, suor e cerveja (Jardim, 2017).
Os versos Sinto alegrias tristezas e brinco e Rio e também posso chorar, extraídos respectivamente das canções Como 2 e 2 e Hotel das Estrelas, que compunham o roteiro do show, são explicativos dos sentimentos ambíguos e dos paradoxos que permeavam aquele momento histórico. Embora o contexto fosse politicamente desfavorável – ou talvez por isso, como reação – no fim de 1971 o Rio de Janeiro era um centro de efervescência cultural: muitas peças de teatro e shows estavam em cartaz.
O corte violento em toda a movimentação tropicalista e o esmagamento vindo do poder ditatorial concentrado no AI-5 tiveram como resposta cultural a criação de obras carregadas de lirismo, mas também enérgicas, com mensagens cifradas e subjetivas, que forjaram a resistência estética à tirania militar, como as canções dos jovens compositores Waly Salomão e Jards Macalé apresentadas no show. O espetáculo estrelado por Gal traduzia a dor, a angústia e a euforia daquela juventude que queria se libertar do terror imposto.
A estética de Gal a todo vapor, o cenário, o repertório e os arranjos dilatam (ou delatam) a tensão característica daquele momento, manifestando o mal-estar com o que vinha ocorrendo no Brasil desde 1968. O tom soturno geral que permeia o espetáculo é misturado a momentos de catarse. A construção do roteiro parecia tentar dizer o que era possível ainda, em meio ao avanço da repressão.
A cenografia ou ambientação visual de Luciano Figueiredo e Óscar Ramos consistia em duas grandes faixas de pano no fundo do palco com palavras de Waly Salomão em destaque: uma vermelha, com a palavra FA-TAL, e outra branca, abaixo dela, com a palavra VIOLETO. O chão do palco espelhava essa combinação.
A palavra-destaque FA-TAL, que deu nome ao disco, tem origem na experiência de Waly na prisão militar, onde passou dezoito dias encarcerado por porte de maconha e produziu os textos que foram a base para o livro Me Segura Qu’Eu Vou Dar um Troço (1972), no qual o termo é evocado em alguns poemas (Contente, 2021). Relacionado à Gal, que usava batom vermelho e corpete mínimo no espetáculo, essa palavra adquiria um sentido erótico e de resistência naquele contexto de repressão militar.
A iluminação seguia a divisão do show em duas partes: a primeira, com Gal ao violão, mais intimista, tinha um foco de luz somente; a segunda, com o palco iluminado, correspondia ao momento mais agitado, quando havia maior participação do público que ficava na penumbra (Jardim, 2017).
O repertório do show era formado de dezessete canções, sendo que duas delas se repetiam no programa: Fruta gogoia (folclore baiano), Charles anjo 45 (Jorge Ben), Como 2 e 2 (Caetano veloso), Coração vagabundo (Caetano Veloso), Falsa baiana (Geraldo Pereira), Antonico (Ismael Silva), Sua estupidez (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), Fruta gogoia, Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão), Dê um rolê (Morais Moreira e Luiz Galvão), Pérola negra (Luiz Melodia), Mal secreto (Jards Macalé e Waly Salomão), Como 2 e 2, Hotel das estrelas (Jards Macalé e Duda Machado), Assum preto (Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga), Bota a mão nas cadeiras (folclore baiano), Maria Bethânia (Caetano Veloso), Chuva, suor e cerveja (Caetano Veloso) e Luz do sol (Waly Salomão e Carlos Pinto).
As canções compostas por Waly Salomão e Jards Macalé, em conjunto ou com outros parceiros, para o espetáculo foram as realizações mais significativas dessa etapa artística de Gal Costa, pós-tropicalismo. Dessa safra, quatro composições marcantes definiram a estética do show: Vapor barato, Mal secreto, Hotel das estrelas e Luz do sol (Jardim, 2017).
A canção Vapor barato ficou conhecida como símbolo do espetáculo. Em linhas gerais, o eu lírico da música é um hippie da época, vestido com calças vermelhas, casaco de general, cheio de anéis que se diz cansado e encara uma desilusão amorosa. O desejo de fuga da situação está declarado nos versos E vou tomar aquele velho navio e Que eu tô indo embora. Obviamente, uma leitura das entrelinhas permite ampliar o significado da canção para a representação da ânsia de liberdade daqueles que queriam escapar do ambiente asfixiante em que viviam desde o AI-5. O próprio título remete a uma válvula de escape possível e comum do período, o cigarro de maconha.
Todas as outras músicas do show são impactadas por Vapor barato (Jardim, 2017). Mal Secreto, Hotel das estrelas e Luz do sol também exprimem uma modulação afetiva sombria que cifra outros sentidos políticos. A primeira faz alusão em seu título e tema poético ao poema homônimo de Raimundo Correia, que discorre em seus versos sobre dissimular a felicidade, mascarar a dor. Tomado pela tristeza, o sujeito poético da canção declara Minha alma chora/ Vejo o Rio de Janeiro, reescrevendo de maneira condizente com o período os célebres versos de Tom Jobim concebidos anos antes.
Em Hotel das estrelas, os versos Sobre um pátio abandonado/ Profetas nos corredores/ Mortos embaixo da escada descrevem um cenário desolador que tende a piorar, já que o eu poético sente No fundo do peito esse fruto/ Apodrecendo a cada dentada.
Luz do sol é a música que encerra o espetáculo. A canção, de ritmo variado, narra em seus versos a história de um desencontro amoroso, a chegada de alguém que arrebata a alegria e a calma. A variação de sentimentos do eu poético segue a variação do ritmo. Em um verso, adverte energicamente: Quando estiver assim não me apareça, saia, desapareça da minha vista; em outro, diz ternamente: Apareça como a luz do sol batendo na porta do meu lar. Por fim, fechando a música e o show, Gal grita repetida e intensamente: Quero ver de novo a luz do sol! Quero ver de novo a luz do sol! Quero ver de novo a do sol!
A carga dramática desse último grito (Quero ver de novo a luz do sol!) expressa a urgência de se libertar de muitos desencontros narrados ao longo do espetáculo (Jardim, 2017). Ao mesmo tempo, considerando o contexto político, o grito de Gal é lançado como um forte protesto; nele, parece estar contida toda a dor e todo o anseio de liberdade da sua geração.
O show, montado no período mais duro da ditadura, foi registrado no disco duplo Fa-tal: Gal a todo vapor (1971). Embora o cineasta Leon Hirszman tenha filmado o espetáculo, a íntegra do material, sob a guarda da Cinemateca Brasileira, permanece inédita. Há, porém, raras imagens disponíveis na série documental O nome dela é Gal (2017), dirigida por Dandara Ferreira, que, ao lado do disco e dos depoimentos de quem vivenciou o momento histórico, ratificam o poder catártico daquela montagem para a juventude da época e a sua importância na frente de resistência cultural à repressão militar.
A coragem, o talento e a integridade de Gal Costa e de todos os artistas que atravessaram aquele período sombrio seguem sendo, seis décadas após o golpe, faróis na luta constante pela liberdade que a democracia – esse conceito em movimento – exige para se manter respirando.
E tudo mais jogo num verso: coisas sagradas permanecem
Gal Costa morreu no dia 9 de novembro de 2022. A sua partida deixou uma lacuna impreenchível na música popular brasileira e abriu uma fenda no peito de cada um que integra a legião que ama o seu trabalho, admira a revolução musical e comportamental que ela representou e reconhece a importância de manter viva a memória de sua grandeza artística. Assim, o que ela produziu de beleza perdurará, com o seu brilho agudo ecoando na eternidade das canções.
Notas e referências
Contente, Renato. Não se assuste, pessoa! As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2021.
Jardim, Eduardo. Tudo em volta está deserto: encontros com a literatura e a música no tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.
Maia, Taissa. A todo vapor: o tropicalismo segundo Gal Costa. Rio de Janeiro: Garota FM Books, 2023.
Schwarcz, Lilia Moritz e Starling, Heloísa Murgel. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Teixeira, Heloísa. Rebeldes e Marginais: cultura nos anos de chumbo, 1960-1970. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.
Filmografia: O nome dela é Gal [Série documental]. Direção: Dandara Ferreira. Brasil, 2017.
Imagem Ilustrativa do Post: Gal Costa // Foto de: Thereza Eugênia // Sem alterações
Disponível em: Arquivo pessoal
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