Quem tem medo da execução penal?  

22/03/2019

 

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

A execução penal é, em regra, uma área pouco abordada dentro das ciências penais. Dificilmente faz parte da grade curricular enquanto disciplina obrigatória das faculdades de direito, pesquisa-se e escreve-se pouco sobre os temas que se relacionam a ela. Apesar da pouca atenção dispensada ao tema, é inegável sua importância, uma vez que é no âmbito do cumprimento de pena que a violação de direitos acontece de forma mais explícita e recorrentemente, ainda que seja neste momento que as pessoas deveriam deparar-se com a tal ressocialização.

Durante meu trabalho de conclusão de curso na graduação, em 2014, lembro do meu orientador falando que quase não existiam monografias sobre execução penal e mais raras ainda eram as que iam in loco para conversar com quem de fato vivenciava o cárcere. Vejam bem, falar sobre as leis e princípios que envolvem a execução penal não é suficiente. É preciso conhecer a realidade e entender que o pouco que a gente vê na academia sobre o assunto sequer é aplicado na prática.

Evidente que são várias as críticas cabíveis ao tema, a começar pela naturalização da violação de direitos. Na ADPF 347, o Supremo Tribunal Federal, em caráter liminar, declarou o sistema penitenciário brasileiro como “Estado de coisas inconstitucional”.

Com isso, deixou claro, a quem possa interessar, que os cárceres brasileiros vivenciam um “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária” (ADPF 347 MC/DF, Relator: Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Julgado em 09/09/2015). Apesar disso, a população carcerária continua crescendo vertiginosamente no Brasil[i], as alterações legais tendem a ser mais duras[ii] e grande parte da população segue bradando por mais penas, mais presos, mais sofrimento.

Diante dessa situação, é preciso reafirmar o óbvio: estamos diante de um sistema penal falido, que não traz qualquer benefício para a sociedade e que sequer cumpre as leis ou as determinações constitucionais. As taxas de criminalidade e reincidência crescem. As violações são várias. É o Estado na mais pura degradação de si mesmo. E de forma ainda mais cruel à parcela de sua população formada por negros, pardos e economicamente vulneráveis.

Caetano cantou que “presos são quase todos pretos ou quase pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”[iii]. A poesia reflete a realidade macabra, confirmada pela análise conjunta entre a decisão da ADPF 347, a história do Brasil e o perfil registrado pelo Infopen[iv]. Nenhum dado ou palavra, entretanto, é suficiente para demonstrar a crueldade real do que se encontra dentro dos cárceres.

Não é raro encontrar situações em que as pessoas dividem espaço com ratos, que há deficiência de atendimento médico básico ou de surto de doenças como sarna. Estamos falando de gente que adoece e morre nas prisões. De torturas cotidianas em razão da falta de estrutura. Por que as pessoas insistem em fechar os olhos diante do caos? O descaso é reflexo de uma população soberba, egoísta, racista, incapaz de se enxergar no outro. Incapaz de considerar a humanidade no outro. Que, apesar de se achar muito melhor que as pessoas encarceradas, não consegue perceber que esse tipo de tratamento, além de cruel, injusto, ilegal e inconstitucional, reflete uma sociedade doente e que, em vez de tratar suas enfermidades, insiste em cutucar a ferida até provocar uma infecção generalizada.

A questão é matemática: endurecemos as penas, prendemos muito – com condenação transitada em julgado e em caráter provisório -, tornamos as prisões lugares cada vez mais insalubres e, ainda sim, a população carcerária cresce. Além disso, aumenta também a velocidade com que isso acontece[v]. É óbvio que o caminho não é esse. E já passou da hora de enfrentar esse assunto com a seriedade que ele merece.

Sobre o assunto, o magistrado e autor Luis Carlos Valois afirma “as normas e princípios de execução penal são a própria contradição da prisão”[vi] . Não dá para virar as costas. Os operadores do direito e a sociedade como um todo precisam debater as prisões e a Execução penal com aprofundamento, sem soluções mirabolantes e, sobretudo, sem fazer o uso do Direito Penal Simbólico. Simbolismos vazios, evidentemente, não alteram a realidade fática, a não ser para angariar votos durante as eleições.

É necessário refletir, analisar os discursos, trazer diferentes visões e debater incansavelmente até que a transformação comece a acontecer. Quem está se favorecendo com o sistema penal da forma como está? Sabemos que não é a sociedade. São as indústrias de armas e equipamentos de segurança? São os próprios legisladores? É a mídia que produz e vende o medo? São os fornecedores de alimentos das unidades prisionais? A quem interessa a barbárie? E quem é que tem medo das discussões sérias sobre execução penal?

Tornou-se urgente e imprescindível estudar sobre a execução penal e o cárcere para entender quais são os mecanismos que nos fazem continuar funcionando nesse esquema degradante. A partir daí, traçar novos modelos que efetivamente sejam capazes de dar uma resposta positiva para a sociedade, que cumpra as determinações constitucionais e sejam capazes de considerar a humanidade que resiste, apesar de tudo.

 

Notas e Referências

[i]
        BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. Atualização – Junho de 2016. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pùblica. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Sítio eletrônico. Disponível em <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf> Acesso em 20 mar. 2019.

[ii]      Vide o Projeto de Lei Anticrime, proposto pelo Ministro Sérgio Moro, disponível em <http://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime.pdf> Acesso em 20 de mar. 2019.

[iii]     Sobre a questão do racismo institucional, recomendo o texto de Priscila Serafim Proença, “O Sistema Penal como instrumento de gestão de subalternidade étnico-racial”, disponível também nesta coluna através do link <https://emporiododireito.com.br/leitura/o-sistema-penal-como-instrumento-de-gestao-de-subalternidade-etnico-racial> Acesso em 20 de mar. 2019.

[iv]    BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. Atualização – Junho de 2016. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pùblica. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Sítio eletrônico. Disponível em <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf> Acesso em 20 mar. 2019.

[v]     Ibdem.

[vi]
                    VALOIS, Luis Carlos. Processo de Execução Penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019, p. 80.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: architecture 2 // Foto de: Dennis Hill // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/fontplaydotcom/503736220

Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura