Quem se importa?

16/05/2016

Por Fernanda Frizzo Bragato – 16/05/2016

A última semana marcou, no Brasil, o desfecho de um longo, desgastante e previsível processo de impedimento da Presidente da República. Embora ainda não esteja consolidado, tudo indica que se confirme nos próximos meses. Nas fases que antecedem o veredito final, o impedimento foi acatado por maioria esmagadora do Parlamento, que respondeu a uma forte demanda oriunda e articulada pelos setores mais empoderados de nossa sociedade: grande mídia, empresariado, grande parte da classe média e do poder judiciário. Embora não se possa dizer que o impedimento tenha sido igualmente uma reivindicação das classes econômica e culturalmente desfavorecidas que, durante os últimos treze anos experimentaram expressivas melhorias advindas de políticas públicas de redistribuição, seu silêncio contribuiu para a adesão avassaladora da classe política à tese do impedimento. Poucos resistiram e continuam denunciando o processo de impedimento como uma nova espécie latino-americana de golpe de Estado, a exemplo do que já ocorreu em Honduras (2009) e Paraguai (2012).

Para os que apoiam o impedimento, a corrupção que se instalou nas entranhas do governo PT seria o motivo determinante para o afastamento da Presidente. No entanto, a partir do momento em que a corrupção se tornou uma realidade inafastável do governo interino que sucederia Dilma Roussef e dos políticos que conduziram o próprio processo, ganhou força o argumento da incompetência da Presidente que conduziu o país a uma profunda crise econômica. Para os que se opõem, o impedimento não pode ser utilizado como um voto de desconfiança do Parlamento, articulado com o propósito de destituir presidente democraticamente eleito porque ele ou ela não corresponde às expectativas sobretudo de quem não o(a) elegeu (a minoria). O impedimento é um processo constitucionalmente previsto, mas que depende de uma condição juridicamente aferível, ainda que quem o julgue sejam políticos e não juízes: o cometimento de crime de responsabilidade, cuja tipificação encontra-se prevista na Lei 1.079/50, à qual remete o parágrafo único do art. 85 da CRFB/88.

Pareceres de pesquisadores da área jurídica como Marcelo de Andrade Cattoni, Marcelo Neves, Lenio Streck, Geraldo Prado, Ricardo Lodi, Alexandre Melo Franco Bahia, Alexandre Morais da Rosa e outros têm demonstrado que as chamadas “pedaladas fiscais” praticadas pela Presidente e, da mesma forma, por diversos Governadores de Estado e convalidadas anualmente pelos Tribunais de Contas, somadas à alegação genérica da emissão de Decretos em 2015 que teriam violado a Lei Orçamentária não são fatos enquadráveis nos tipos penais da Lei 1.079/50. Ou seja, não há embasamento jurídico – tipo penal configurado – a justificar a instauração de um processo de impeachment. Por isso é fácil admitir que só a perda de apoio político justificaria que um Presidente da República caísse com base em tão pífio e frágil argumento.

Se não há base legal para um processo de destituição de Presidente da República democraticamente eleito e somente razões políticas podem justificá-lo, estamos diante de uma ruptura legal e democrática: o chamado “golpe”. A Constituição, que prevê hipóteses estreitíssimas de afastamento de Presidente da República, não fora, até o momento, respeitada pelo Parlamento brasileiro e tampouco pelo Supremo Tribunal Federal que, quando provocado, preferiu omitir-se. Se um processo de impeachment sem base legal foi instaurado e a Presidente encontra-se afastada, o voto da maioria foi desrespeitado. Quem não elege presidente, é capaz, no entanto, de derrubá-lo.

Mas quem se importa com a ruptura legal-democrática no Brasil? O argumento do efetivo cometimento de crime de responsabilidade tem sido o menos invocado para defender a legitimidade do impedimento. Porque não se pode seriamente defendê-lo, invocam-se outros em seu lugar em uma tentativa de silenciar o seu debate. Mas só se pode silenciá-lo porque ele realmente não importa. Devemos nos perguntar por que a legalidade, o respeito à Constituição e à democracia não são valores caros à sociedade brasileira que, desde que se tornou República, tem vivido pequenos lapsos democráticos rapidamente rompidos por atos arbitrários e ilegais. É verdade que desta vez se tentou utilizar um argumento travestido de legalidade (“o impeachment está previsto na Constituição”), mas a fala do ex-ministro do STF, Carlos Ayres Britto, bem sintetizou o momento da política brasileira: estamos diante de uma “pausa democrática para freio de arrumação”. Ou seja, quando se julga que é preciso reorganizar o país, justificam-se as pausas democráticas, sempre foi assim. A democracia não vale em momentos de crise; a democracia pode ser suspensa; a “arrumação” só pode ocorrer em condições de Estados de exceção, em que o princípio da legalidade, os direitos fundamentais e o devido processo legal são postos de lado. O ex-ministro compreende (e justifica) a tolerância brasileira com a ruptura legal-democrática. Nesses momentos, são sempre minoritárias as vozes insurgentes, mesmo que, posteriormente, a história venha lhes dar razão.

Precisamos nos perguntar por que o conjunto de valores e propostas que representam o Estado Democrático de Direito importa tão pouco no Brasil (é verdade que não é só aqui). É nos momentos de crise que sua validade tem que ser testada e é justamente aí que eles têm sucumbido. Por que a sociedade brasileira, em momentos de crise, sempre opta pela quebra da institucionalidade em favor de argumentos de conveniência que atendem, via de regra, suas elites? Quando se os deixam de lado, há uma consciência do que a legalidade e a democracia representam em termos de construção de uma sociedade justa e solidária e, por isso mesmo, são facilmente abandonados? Que motivos podem ser tão fortes para determinar esse descompromisso? Isso tudo nos faz questionar se é possível levar a cabo um processo de equilibrada transformação social que atenda a demandas de redistribuição, participação política e reconhecimento, urgentes e necessárias para uma sociedade mais igualitária e menos violenta, em meio a tanta falta de compromisso com a democracia, os direitos fundamentais e o devido processo legal. Que futuro esperar de um país com raízes tão profundamente autoritárias e sectárias, onde os setores marginalizados são tão facilmente silenciados?


Fernanda Fizzo Bragato. Fernanda Fizzo Bragato é graduada em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS e Pós-doutora no Birkbeck College da Universidade de Londres. Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), ambos da Unisinos. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br


Imagem Ilustrativa do Post: Rio+20 - Cópula dos Povos // Foto de: Gian Martins // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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