No último dia 12 de janeiro de 2021, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (CAOCRIM) expediu, sob a roupagem de “informação técnico-jurídica”, uma questionável “orientação” aos Promotores de Justiça com atuação na área criminal: i) inserir, no corpo das denúncias criminais por delitos de tráfico de drogas, pedido expresso para que seja fixado na sentença penal condenatória valor mínimo para reparação de danos morais coletivos de acordo com a gravidade dos fatos e as condições econômicas do infrator; ii) pleitear que os valores correspondentes sejam revertidos em benefício do Fundo Penitenciário do Estado de Minas Gerais, que tem por objetivo obter e administrar recursos financeiros destinados ao sistema penitenciário do Estado e à construção, à manutenção, à reforma e à ampliação de unidades destinadas ao cumprimento de reprimendas penais e medidas socioeducativas de internação.[1]
Em que pese a reconhecida importância do órgão para o compartilhamento de boas práticas dentro da instituição e a intenção salutar em buscar uma nova via que se mostre eficaz contra a violência gerada pelas redes de traficantes de drogas, o primeiro questionamento que se faz é se o CAOCRIM teria atribuição para expedir a “orientação” funcional aos membros do Ministério Público, o que não parece ser o caso. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Federal n. 8.625/93), estabelece expressamente no artigo 17, caput, que “a Corregedoria-Geral do Ministério Público é o órgão orientador e fiscalizador das atividades funcionais” dos membros do Ministério Público. Idêntica redação tem o artigo 38 da Lei Orgânica do Ministério Público mineiro (LC n. 34/1994) que, por sua vez, prevê a competência do Procurador-Geral de Justiça para “expedir recomendações, sem caráter normativo, aos órgãos do Ministério Público para o desempenho de suas funções, nos casos em que se mostrar conveniente a atuação uniforme, ouvido o Conselho Superior do Ministério Público” (CSMP), nos termos do inciso XXIV do artigo 18. O Conselho Superior, conforme artigo 15, X da Lei Federal e artigo 33, IX da Lei Estadual, tem competência para sugerir ao chefe da instituição “a edição de recomendação, sem caráter vinculativo, aos órgãos de execução para o desempenho de suas funções”. Portanto, da leitura e interpretação das leis de regência, somente o Corregedor-Geral e o Procurador-Geral de Justiça possuem competência legal para expedir orientação funcional aos membros do Ministério Público, sendo que o Conselho Superior deve ser ouvido quando a orientação vier do PGJ.
A propósito, que fique claro, não se questiona aqui o teor da legítima orientação funcional expressa no artigo 43 do Ato Orientador n. 2, de 12 de maio de 2020, expedido pela Corregedoria-Geral, que orienta fazer constar na denúncia “tópico expresso relativo à reparação dos danos causados pela infração, de modo a propiciar que a sentença penal condenatória a contemple”, utilizado em um dos considerandos como argumento para justificar a “orientação” ora questionada CAOCRIM.
Os dispositivos normativos invocados pelo CAOCRIM para legitimar a “orientação”, na verdade, referem-se à atribuição legal conferida ao órgão auxiliar para “remeter informações técnico-jurídicas” aos órgãos ligados à sua atividade, “promover a articulação, a integração e o intercâmbio entre os órgãos de execução”, e “desenvolver estudos e pesquisas, criando ou sugerindo a criação de grupos e comissões de trabalho, assim como bancos de dados de doutrina e jurisprudência, com remessa regular de informações técnico jurídicas aos órgãos ligados à sua atividade”.
Não é difícil distinguir a competência para a “remessa de informações técnico jurídicas” - ação legítima - daquela que confere poderes para “orientar” o promotor a atuar assim ou assado no seu exercício funcional. Orientar que o promotor criminal, em sua atuação, siga a doutrina de fulano ou o julgado não vinculante de cicrano já seria um claro desvio das atribuições do CAOCRIM. Sugerir que o parquet peça indenização por um dano moral coletivo de duvidosa existência, e cujos valores eventualmente arrecadados seriam destinados à construção e reforma de mais presídios, extrapola, em muito, o que se pode entender por remeter informações técnico jurídicas, notadamente quando alguns dos argumentos fundamentais da orientação são assumidos como “notórios”, apesar de cientificamente contestados por vasta literatura técnica e mesmo pelo conhecimento local.
Mas, certamente, a questão da (ausência de) legitimidade para expedir a orientação funcional aos promotores criminais não é nem de longe o maior problema da “informação técnico jurídica” expedida pelo CAOCRIM.
Merece especial atenção o principal argumento utilizado pelo CAOCRIM para orientar os promotores criminais a pedirem a fixação de indenização pelo dano moral coletivo nas denúncias de tráfico de drogas: “Considerando que o tráfico ilícito de drogas é um dos crimes mais perniciosos para a sociedade brasileira, pois dele notoriamente decorrem guerras pelo poder, ameaças, extorsões, homicídios, comércio clandestino de armas de fogo, corrupção e aliciamento de menores e servidores públicos, desestruturação de famílias, problemas de saúde pública relacionados à dependência química, aumento de crimes de furto e roubo para obtenção de meios para pagamento de drogas, domínio territorial por criminosos, abalo coletivo no sentimento de segurança, sobrecarga no sistema carcerário, tudo isso gerando graves prejuízos econômicos e extrapatrimoniais para a sociedade, de onde exsurge, claramente, o dano moral coletivo in re ipsa, que necessita ser reparado”...
Para iniciarmos uma reflexão quanto à assertiva do considerando é preciso compreender, inicialmente, em que consiste o crime de tráfico de drogas. Mas, para isso, temos primeiro que saber com alguma exatidão o que é droga - e não se trata de uma questão banal. Pois se o senso comum sugere que drogas seriam substâncias tóxicas ilícitas de uso sobretudo recreativo, quase sempre tendo em mente, no Brasil, a maconha, a cocaína e o crack (e em menor medida substâncias como o LSD, o ecstasy e o MDMA), na verdade, em termos técnico-jurídicos, a definição sobre quais substâncias entrariam ou deixariam o rol daquelas tipificadas no crime de tráfico de drogas cabe a um órgão executivo específico (a ANVISA), com poder discricionário para definir, a partir de critérios tecnicamente aleatórios (o que veremos em seguida), quais substâncias devem ter sua comercialização proibida, direcionando, em consequência, a atuação de uma vasta gama de autoridades policiais e judiciárias, incluindo o Ministério Público.
E, aqui, torna-se imperiosa a reflexão sobre o papel do MP nessa engrenagem: a instituição e seus membros não podem se orientar cegamente por deliberações infraconstitucionais aleatórias de outros órgãos, empenhando enormes esforços e vastos recursos para favorecer uma política tão velha e irracional quanto fracassada no que tange aos objetivos declarados de acabar com as drogas, com os traficantes e com a violência. Em atenção à sua missão constitucional o Ministério Público deve observar o histórico e as consequências da política de guerra às drogas, suas limitações, sua complexidade, suas conexões com o próprio poder público, buscando alternativas dentro do ordenamento jurídico que propiciem empregar recursos públicos em projetos mais benéficos à sociedade do que na construção e reforma de presídios. Por isso, reitero, parece importante compreender, desde a acepção mais básica, o que é droga e o que é o crime de tráfico de drogas, para daí reconhecermos o equívoco da orientação proferida pelo CAOCRIM.
De acordo com o dicionário Houaiss (HOUAISS, 2009, p. 713), a expressão “droga” é utilizada para retratar a “denominação comum a todas as substâncias ou ingredientes usados em farmácia, química, tinturaria, entre outros setores”. Também serve para definir “qualquer substância que se possa utilizar, nas pessoas e nos animais, para fins de alívio, diagnóstico, profilaxia, tratamento ou cura de doenças”. Em termos mais genéricos, define “qualquer substância alucinógena, entorpecente, cujo uso, além de alterar o humor e o comportamento, pode levar à dependência e à tolerância”. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), droga é qualquer substância que, introduzida no organismo, interfere no seu funcionamento (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1993).
Carneiro (2019, p. 16) elucida que:
O conceito de droga aparece na história cultural contemporânea, concomitantemente, como um fantasma do mal e como um problema de saúde. Como fantasmagoria encarna bodes expiatórios, obsessões patologizantes e medos irracionais. Mas é também o veículo de salvação da cura, como pílula mágica e panaceia para todos os males.
Em seguida, questiona:
Qual a natureza desse conceito que unifica no singular um objeto abstrato, o pânico moral da “droga” e, em conjuntos variados de centenas de moléculas e vegetais, os remédios para males cada vez mais abrangentes da vida cotidiana? (CARNEIRO, 2019, p. 16)
É preciso entender que “nenhuma droga é boa, nenhuma droga é má: todas são ambas as coisas” (HAGER, 2020, p. 16). Também é importante ter consciência de que o uso de drogas é tão antigo na humanidade que não há como precisar quando as drogas se inseriram na sociedade. O uso de drogas é provavelmente tão antigo quanto a própria humanidade, seja em rituais religiosos, na cura de enfermidades, ou simplesmente para o alcance de determinados níveis de estado físico e psíquico inatingíveis sem o uso daquelas substâncias.
Ao tratar da potencialização do consumo de drogas ao longo dos últimos anos, Carneiro esclarece:
Consumidores de drogas. Essa é a condição humana eterna que foi potencializada na era mercantil e industrial e alcança hoje a dimensão não só das panaceias como das pílulas da felicidade. Drogas para trabalhar, para dormir, para fazer sexo, para vencer a tristeza, o cansaço, o tédio, o esquecimento, a desmotivação. Cada vez mais a modelação e a modulação química da subjetividade se tornam determinantes não só na economia estrito senso das sociedades, mas nas economias psíquicas (CARNEIRO, 2019, p. 18).
Entendido o conceito de “droga”, seguimos na reflexão para compreender em que consiste o crime de tráfico de drogas, tipificado na Lei Federal 11.343/06. A Lei de Drogas é um exemplo clássico do que os juristas chamam de “lei penal em branco heterogênea”, ou seja, é uma lei incompleta, que precisa de um complemento normativo - que sequer é outra lei – para ser aplicada. Não é a Constituição, não é o Código Penal, não é sequer o Congresso Nacional, através dos legisladores escolhidos pelo povo, que definem quais as substâncias serão criminalizadas. No Brasil, é a ANVISA, pela Portaria n. 344/98, que estabelece as substâncias que serão consideradas “drogas” para efeitos penais, entre as quais estão a maconha, a cocaína, o lança-perfume, o êxtase, o LSD, entre outras mais ou menos conhecidas.
A Lei de Drogas, por sua vez, apenas no caput ao artigo 33 – há outras dezenas de condutadas equiparadas - prevê nada menos que 18 (dezoito) condutas enquadradas no crime de tráfico de drogas: importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas.
Numa perspetiva histórica, a criminalização de determinadas substâncias, ou seja, a criação do crime de tráfico de drogas é bastante recente. Segundo o jornalista e pesquisador Johan Hari (2018), até 1.900, era possível comprar legalmente qualquer mistura à base de cocaína, ópio ou maconha, seja no Brasil, na Inglaterra ou nos Estados Unidos:
Você podia ir a qualquer farmácia dos estados Unidos e comprar produtos feitos com os mesmos ingredientes da cocaína e da heroína. Os xaropes mais populares para combater a tosse no país continham derivados do ópio; um refrigerante novo chamado Coca-Cola era feito da mesma planta que a cocaína em pó; na Grã-Bretanha, as lojas de departamento mais exclusivas vendiam latinhas com heroína para as mulheres da alta sociedade (HARI, 2018, p. 18).
Normalmente, acredita-se que os critérios utilizados para diferenciar a droga lícita (álcool, tabaco, p. ex) da ilícita envolvam o grau de toxicidade, os possíveis danos e os benefícios à saúde individual e coletiva, os riscos associados ao consumo, a capacidade da substância de causar dependência química, entre outros critérios mais ou menos relacionados com o prejuízo, tanto ao indivíduo quanto à sociedade, do uso difundido daquela substância.
Apesar de serem aparentemente os critérios mais adequados para orientar as decisões governamentais sobre o nível de regulamentação ou proibição ao consumo de uma substância, nem sempre é possível encontrar uma equivalência entre os danos relacionados ao uso de determinada substância e o nível de regulamentação ou proibição de seu consumo. Através da história da proibição das drogas, percebe-se que muitos outros critérios (pouco ou nada científicos) foram decisivos para que determinada substância fosse considerada ilícita, conforme explicita Carl Hart:
Antes de tomar conhecimento dessa reportagem, eu achava que a situação legal de determinada droga era estabelecida basicamente por seu teor farmacológico. Mas vim a constatar que não havia motivos farmacológicos sólidos e racionais para o fato de o álcool e o tabaco serem legais e a cocaína e a maconha, não. Tratava-se sobretudo de um problema de razões históricas e sociais, de escolher os perigos relacionados a drogas que seriam ressaltados para alimentar a preocupação da opinião pública e os que seriam ignorados. Parecia que os verdadeiros motivos farmacológicos quase nunca eram levados em conta ou eram minimizados. As medidas de proibição do uso de drogas eram inevitavelmente antecedidas de uma cobertura noticiosa histérica, cheia de histórias assustadoras sobre o uso de drogas entre minorias desprezadas, não raro imigrantes e pobres. Como relata Musto, no caso da cocaína os temores estavam ligados aos negros do sul, no da maconha eram os negros e mexicanos os bichos-papões e no do ópio, os ferroviários chineses (HART, 2014, p. 234).
Entre esses outros critérios, os mais relevantes foram aqueles que até hoje pautam boa parte da vida em sociedade, definindo a maneira como as pessoas se organizam, produzem e consomem quase tudo o que as rodeia: critérios políticos, morais/sociais, econômicos e religiosos.
Registre-se que tais critérios podem ser extremamente relevantes e pertinentes para regular muitas coisas que afetam nossas vidas. De maneira alguma seria lúcido concluir que, se alguma medida foi definida por critérios políticos, econômicos ou religiosos, teria sido definida por um mau critério. É necessário se esforçar, todavia, para compreender que tipo de decisões devem se basear em critérios científicos, e que tipo de decisões devem fundamentar-se em outros critérios. A título exemplificativo, até pouco tempo atrás o adultério era crime punido com detenção de 15 dias a 6 meses. Se escrevêssemos que “o adultério é um dos crimes mais perniciosos para a sociedade brasileira, pois dele notoriamente decorrem ameaças, extorsões, homicídios, desestruturação de famílias, problemas de saúde pública relacionados à depressão, dependência química e suicídio, tudo isso gerando graves prejuízos econômicos e extrapatrimoniais para a sociedade, de onde exsurge, claramente, o dano moral coletivo in re ipsa, que necessita ser reparado” estaríamos errados? Caberia dano moral coletivo? Qual critério predominava quando da criminalização do adultério?
A ausência de critérios científicos para a definição de qual substância - entorpecente, psicoativa, alucinógena, estimulante – será criminalizada pela ANVISA parece refletir na ausência de cientificidade da afirmação do CAOCRIM que toma como notória uma relação de causalidade entre a venda de droga e os piores crimes do Código Penal, questão a ser problematizada. Afinal, é do comércio da substância criminalizada, envolvendo partes maiores e capazes, que decorrem os mais abjetos delitos ou é da criminalização desse comércio que se origina tanta consequência indesejada e violenta? Estaria a orientação do CAOCRIM fundada em um critério técnico jurídico ou seria obra de um encantamento pelo movimento de Lei e Ordem importado dos ideais punitivistas norte-americanos da década de 80?
Um olhar para a história pode orientar caminhos para respostas. A proibição da venda e do consumo de álcool nos Estados Unidos no início da primeira metade do século passado, por meio da “Lei Seca”, pode ser creditada tanto a critérios científicos (o reconhecimento dos inúmeros danos individuais e coletivos que o alcoolismo gerava na sociedade, por exemplo) quanto políticos, morais e especialmente puritano-religiosos. A proibição do álcool, que visava combater tanto os males à saúde pública (o alcoolismo) quanto a “degeneração moral” ou a “destruição das famílias” acabou por gerar consequências que, de tão danosas, acabaram forçando o governo norte-americano a reverter sua decisão.
Entre os danos sociais mais perniciosos do consumo do álcool, cita-se a repentina criminalização de considerável parcela da população que sempre pautara suas condutas no cumprimento das leis e que, até aquele momento, podia desfrutar do consumo das mais variadas bebidas com fins recreativos. Além disso, menciona-se ainda o sistemático aumento da corrupção policial e de servidores públicos e, principalmente, a violenta guerra entre as máfias que passaram a controlar a produção, distribuição e a comercialização da venda de álcool no país.
Em passagem explicativa, Ibanez e Framis (2010, p. 82) mostraram reflexos da política de proibição:
La ley seca contribuyó al desarrollo del crimen organizado estadunidense en muchos aspectos. Al forzar la retirada de buena parte de los empresarios que habían trabajado en la industria del alcohol, la prohibición ofrecía la oportunidad de ganar inherentes cantidades de dinero. En concreto, la ilegalización de todas las actividades relacionadas con la producción, la venta y el consumo de licores propició que se introdujeran aproximadamente dos millones de dólares en la economía ilegal de Estados Unidos durante el período de vigencia de la ley seca, y la mayor parte de ese dinero negro fue producido e gestionado por hombres vinculados con los grupos irlandeses, judíos e italianos preexistentes.
O crescimento exponencial da violência, e também o aumento de casos de graves danos à saúde por consumo de bebidas alcoólicas de péssima qualidade, inclusive envenenamento por etanol, somados à depressão econômica representada pelo crash de Wall Street em 1929, levaram o governo dos Estados Unidos a favorecer critérios políticos (isto é, a intenção política de acabar com a guerra entre as gangues) e econômicos (para reduzir o alto custo social da guerra entre os gangsters e os possíveis rendimentos com impostos sobre o consumo de álcool) em detrimento dos critérios moral-repressivos e médico-científicos (o prejuízo à saúde que o álcool causa nos indivíduos e na sociedade). Em 1932, a 21a Emenda revoga a proibição em nível nacional.
Assim como se verifica na história da proibição e da posterior legalização do álcool nos Estados Unidos, sempre é válido questionar: quem são os maiores beneficiados com a proibição de algumas substâncias? No caso da Lei Seca, por exemplo, seriam aqueles que bebiam socialmente e decidiram parar de beber devido à nova lei? Seriam aqueles que nunca beberam e se incomodavam com bêbados barulhentos? Seriam os familiares de um alcoólatra que, preso em flagrante fornecendo uma bebida para outro adulto, deixou de beber e vender durante os anos na prisão? Parece-nos não haver dúvidas de que os grupos que se dedicarão a comercializar as substâncias tornadas ilícitas, notadamente aqueles mais articulados e que lideram as redes de comércio, assim como a indústria de armas e munições que equipam polícias e traficantes são os maiores beneficiados.
A proibição canaliza bilhões de dólares para grupos criminosos que não possuem qualquer compromisso com a paz, com a segurança pública, com as leis e muito menos com a qualidade dos seus produtos. A única preocupação é maximizar os lucros e não ser preso, sem qualquer contrapartida para a sociedade. Não recolhem impostos, não pagam direitos trabalhistas, misturam toxinas no produto desejado pelo consumidor e, sem meios legítimos de cobrança, recorrem à violência.
Como fazem os grandes grupos que se dedicam ao comércio de substâncias ilícitas para garantir o fluxo das mercadorias e reduzir o risco de serem presos? Primeiramente, armando-se. O comércio de armas, lícito e ilícito, é parte fundamental do sistema criminoso que sustenta o tráfico de substâncias ilícitas. Outra maneira bastante usual é a corrupção, ou o suborno e a cooptação de autoridades para que não interfiram, ou mesmo para que participem nos negócios altamente lucrativos do tráfico.
O poder das organizações criminosas que comandam o tráfico de drogas não precisa ser detalhadamente explicado, pois já é de amplo conhecimento. De autoridades que comandam a operação de portos, passando por cocaína em helicópteros de senadores até militares que usam aviões presidenciais para levar encomendas para outros continentes, tudo está muito bem documentado. Entretanto, se os grandes volumes de entorpecentes costumam circular pelos ares e mares, a quase totalidade das vítimas fatais da guerra a algumas drogas e dos detidos em função do uso e do comércio dessas drogas são encontrados nas vielas e nos becos das periferias das grandes e médias cidades.
Diariamente, centenas de jovens são presos por delitos ligados ao comércio varejista de entorpecentes, geralmente praticado entre pessoas maiores e capazes. A simples entrada no sistema prisional é suficiente para estigmatizar o indivíduo e lhe retirar inúmeras oportunidades de emprego e trabalho honesto para o resto da vida. O país perde todos os dias centenas de jovens que poderiam contribuir para o sistema produtivo. Que empresário ou pessoa física está disposto a contratar um ex-presidiário? Os próprios editais para o serviço público costumam vedar aqueles que registram antecedentes criminais. Os custos sociais com o encarceramento de mais de 200 mil pessoas em razão de um ato de comércio de uma substância comprada e consumida voluntariamente são incalculáveis.
Por outro lado, os custos para se manterem centenas de milhares de pessoas encarceradas por crimes ligados ao uso e comércio de drogas - a grande maioria jovens negros das periferias - é mais facilmente calculável: são bilhões a cada ano. Estudo de 2016 da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados estimou que em 2011, quando havia pouco mais de 150 mil presos por drogas, eram gastos R$3,32 bilhões no sistema prisional apenas com estas prisões (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016). Hoje são mais de 200 mil pessoas presas por crimes relacionados às drogas e os custos, tomando por base o mesmo estudo da Câmara dos Deputados, são certamente muito maiores, algo próximo dos R$4,6 bilhões.
Todas as vezes que a Polícia Militar se direciona para algum aglomerado para prender pequenos traficantes, duas ou três guarnições se ocupam em uma diligência que não causa qualquer impacto na oferta ou na demanda de drogas, ou seja, em nada contribui para a proteção da saúde pública. Essas viaturas, que poderiam estar realizando o patrulhamento ostensivo que previne a ocorrência de furtos, roubos, violência doméstica, estupros, crimes de trânsito e homicídios, costumam ficar a madrugada parada nos aglomerados e em seguida se direcionam para as Delegacias de Plantão para o registro do flagrante. As Delegacias de Polícia Civil se tornam verdadeiros cartórios para registros dos depoimentos dos envolvidos nestas pequenas ocorrências, prejudicando as investigações de crimes violentos, em geral muito mais difíceis de serem apurados que a captura de jovens nas conhecidas bocas de fumo.
Encerrada a diligência no aglomerado, naquele mesmo ponto de venda, outros indivíduos venderão as mesmas substâncias para as mesmas pessoas que querem usar drogas. Aquela droga apreendida pelos militares (e que poderá voltar ao mercado por outras vias ilegais) se converterá em dívida cujo inadimplemento poderá custar a vida. Para pagar a dívida, aquele jovem que foi preso e que dificilmente conseguirá emprego lícito, provavelmente voltará a traficar ou terá que subtrair o patrimônio de terceiro, inclusive mediante emprego de violência ou grave ameaça, para evitar ser morto pelo credor, que não possui meios legítimos de cobrança. O ciclo vicioso se repete cotidianamente.
A prioridade dada ao combate ao tráfico de drogas, notadamente ao pequeno comércio varejista realizado por jovens de periferia com baixa instrução, ocupa recursos escassos que poderiam ser usados na apuração de corrupção, roubos, estupros e homicídios. Os mesmos policiais que deixaram de patrulhar as ruas durante a noite para capturarem os jovens comerciantes de drogas, afastam-se novamente do patrulhamento ostensivo para cerrar fileira nos corredores dos fóruns para deporem em juízo. As audiências das Varas Criminais são preenchidas com o processamento desses pequenos traficantes enquanto os casos de violência doméstica e homicídios no trânsito adormecem nos escaninhos até alcançarem a prescrição.
Além dos custos financeiros, o fortalecimento das organizações criminosas que dominam as prisões brasileiras é consequência direta do encarceramento massivo de pequenos traficantes, com repercussões negativas para toda a sociedade, não apenas no curto prazo.
São rotineiras as notícias de jovens e de crianças vítimas de balas perdidas durante troca de tiros nas periferias do Brasil. Além das balas perdidas, existem milhares de vidas que são eliminadas por balas certeiras, disparadas por ou contra agentes do Estado, e também por comerciantes concorrentes neste mercado bilionário. O Brasil é recordista mundial em número de homicídios e qualquer pesquisa séria concluirá que a maior parte dos assassinatos envolve disputas relacionadas ao mercado ilegal de drogas. Mata-se para cobrar dívidas de drogas, mata-se por disputas por locais de produção, rotas de transporte, pontos de venda. Mata-se para apagar arquivos sobre negócios com drogas, para subtrair a droga do concorrente. Os confrontos entre policiais e traficantes também eliminam milhares de vidas, não apenas dos ditos bandidos, mas de todos que de alguma maneira foram alistados para essa esdrúxula guerra: policiais, promotores, juízes e advogados. Não há como calcular o custo de uma vida, ou da dor que a ruptura no tecido social de uma família provoca.
Quando se criminaliza uma conduta, pretende-se proteger um bem jurídico relevante. A criminalização de determinadas substâncias é vendida como se protegesse a saúde pública de um mal absoluto e inerente por si só - como se a simples existência da droga fosse o problema. E mesmo se essa fosse a premissa, a impossibilidade factual de se acabar com as drogas já tornaria a política de guerra às drogas equivocada em suas premissas. Mas se a preocupação fosse com a saúde pública, não seria mais lógico defender padrões de segurança e qualidade das drogas, evitando-se, por exemplo, a transmissão de doenças devido ao compartilhamento de seringas, overdoses devido à mistura da substância proibida com produtos muito mais tóxicos que a própria substância criminalizada, doenças pulmonares em razão de fungos e bactérias na cocaína ou na maconha, ou se evitar surtos psicóticos causados por maconhas produzidas sem qualquer controle quanto ao teor de tetrahidrocanabinol (THC)?
A irracionalidade na criminalização de certas drogas como instrumento de proteção da saúde pública é facilmente demonstrada quando se analisam os números de mortes provocados por drogas lícitas e ilícitas, conforme informam Ilana Szabó e Melina Risso:
Entre 2006 e 2010, estima-se que 40.692 brasileiros faleceram por razões ligadas a substâncias lícitas e ilícitas. A grande maioria dos óbitos foi causada pelo uso do álcool (84,9% do total), em segundo lugar pelo tabaco (11,3%), em terceiro, por uso de mais de uma substância psicoativa (1,18%) e pelo uso de cocaína (0,8%). Outras drogas foram responsáveis por 1,6% dos óbitos (SZABÓ; RISSO, 2018, p. 97).
Há ainda outra contradição no argumento de que a criminalização de algumas drogas protege a saúde pública. A criminalização do uso de drogas afasta o dependente químico dos serviços de saúde. A pessoa que está com problemas em razão do abuso de drogas ilícitas evitará revelar sua condição de criminosa enquanto puder, mesmo para seus familiares mais próximos. Muitas vezes, mesmo visivelmente debilitado, o dependente segue negando para a família e até para os profissionais de saúde a origem ou o fator que vem agravando seus problemas. Não são poucos os relatos de overdoses por cocaína que só se tornaram fatais porque o usuário e seus amigos preferiram aguardar ajuda divina a procurar os serviços de urgência para o tratamento protocolar, receosos das nefastas consequências da política nacional sobre drogas.
Por fim, se o tráfico de drogas é crime que ofende a saúde pública e a criminalização de certas drogas teria como principal razão de ser inibir o consumo, se a indenização pelo dano moral visa reparar o dano causado pela infração penal, por que destinar as verbas indenizatórias para a construção de mais presídios e não para campanhas de conscientização dos malefícios das drogas (vide redução do consumo de tabaco desde a década de 1990 sem necessidade de criminalização da substância) e para tratamento de saúde dos dependentes químicos?
A manutenção do modelo proibicionista, que vem sendo abandonado em boa parte das nações e comunidades, contribui para a ineficiência dos instrumentos e métodos de investigação, bem como para o desperdício dos recursos extrajudiciais e judiciais disponíveis, que poderiam estar concentrados na apuração de homicídios, estupros, roubos, desvios de recursos públicos e outros crimes cujos danos para o tecido social são muito mais evidentes que a suposta defesa da saúde pública pretendida com a criminalização de uma ou outra substância tóxica, cuja persecução consome considerável força de trabalho do Sistema de Justiça Criminal.
O dano social causado pela política pública que criminaliza certas drogas é incalculável e não veremos o Ministério Público pedir indenização pelos prejuízos morais e materiais que a necropolítica de drogas vem causando desde a sua implantação.
Outros questionamentos brotam das reflexões sobre o teor da orientação do Centro de Apoio. Tentar reduzir o comércio e o uso de substâncias psicotrópicas com o Direito Penal é a melhor política pública para a proteção da saúde pública? Criminalizar o comércio e o uso de determinadas drogas implica na redução da prática de outros crimes, ou a regulação do comércio, ainda que incompleta e insatisfatória, pode apresentar um caminho com menos violência? Estará a atual política de drogas pautada nos fundamentos e orientada para os objetivos da República Federativa do Brasil, notadamente a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária?
Se orientar promotores não faz parte da competência do CAOCRIM, entre as atribuições normativas conferidas ao órgão verifica-se, no artigo 2o, incisos VII, VIII e IX da Resolução PGJ n. 99/2002, que lhe compete “manter permanente contato com o Poder Legislativo federal, acompanhando o trabalho das comissões encarregadas do exame de projetos de lei no âmbito criminal e da execução penal, divulgando o material correspondente e eventuais alterações legislativas; acompanhar a política nacional e estadual de segurança pública, realizando estudos e oferecendo sugestões para sua maior efetividade, especialmente no campo da execução penal; e propor alterações legislativas ou a edição de normas jurídicas”.
Embora certamente o autor deste ensaio não tenha competência normativa para expedir recomendações a qualquer órgão do Ministério Público, como contribuição meramente acadêmica sugere-se que o órgão auxiliar, no exercício de suas atribuições, proponha alterações legislativas capazes de reduzir os danos materiais e morais coletivos que a atual política de drogas vem causando, especialmente sobre os jovens negros das periferias e os policiais militares alistados para a guerra.
No documento a ser encaminhado ao Congresso Nacional, sugerimos pequena correção no considerando para torná-lo mais preciso e condizente com a realidade: “Considerando que a criminalização do comércio de certas drogas é uma das políticas públicas mais perniciosas para a sociedade brasileira, pois dela notoriamente decorrem guerras pelo poder, ameaças, extorsões, homicídios, comércio clandestino de armas de fogo, corrupção e aliciamento de menores e servidores públicos, desestruturação de famílias, problemas de saúde pública relacionados à dependência química, aumento de crimes de furto e roubo para obtenção de meios para pagamento de drogas, domínio territorial por criminosos, abalo coletivo no sentimento de segurança, sobrecarga no sistema carcerário, tudo isso gerando graves prejuízos econômicos e extrapatrimoniais para a sociedade, de onde exsurge, claramente, danos morais e materiais que necessitam ser imediatamente interrompidos”...
Afinal, quem pagará pelo dano moral coletivo causado pela guerra às drogas?
Notas e Referências
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Consultoria Legislativa. Impacto econômico da legalização da canabis no Brasil. 2016. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema10/2016_4682_impacto-economico-da-legalizacao-da-cannabis-no-brasil_luciana-adriano-e-pedro-garrido> Acesso em: 08 jul. 2020.
CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.
HAGER, Thomas. Dez drogas: as plantas, os pós e os comprimidos que mudaram a história da medicina. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Todavia, 2020, 336 p. Título original: Ten drugs: how plants, powders, and pills have shaped the history of medicine.
HARI, Johann. Na fissura: uma história do fracasso no combate às drogas. Tradução de Hermano Brandes de Freitas, São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Título original: Chasing the Scream: the first and last days of the war on drugs.
HART, Carl. Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Título original: High price.
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