Quem paga a conta do inadimplemento contumaz do ICMS?

05/07/2020

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

“Numa economia capitalista, os impostos não são um simples método de pagamento pelos serviços públicos e governamentais: são também o instrumento mais importante por meio do qual o sistema político põe em prática uma determinada concepção de justiça econômica ou distributiva”[i]

A constatação acima feita por MURPHY e NAGEL no clássico “O mito da propriedade privada” é extremamente necessária para que possamos olhar o sistema tributário não como uma guerra entre Fisco e contribuintes, mas como uma escolha do tipo de sociedade que queremos.

Na escolha das bases tributáveis de um sistema há sempre uma escolha política e moral. Um trade-off entre eficiência econômica e igualdade/justiça distributiva. A tributação sobre o consumo é, em regra, uma escolha pela eficiência econômica em detrimento da redistribuição de renda ou igualdade. Seu objetivo primordial é arrecadatório.

Especialmente a adoção da não cumulatividade no ICMS tem como objetivo a eficiência econômica. A técnica pretende neutralizar os efeitos da tributação nas decisões econômicas dos agentes de mercado, seja para não afetar a forma de organização da produção, seja para não interferir na concorrência. Da técnica da não-cumulatividade decorrem outros dois princípios: (i) o da repercussão legal obrigatória, segundo o qual a carga econômica do ICMS deve repercutir sobre o contribuinte de fato (consumidor) e o (ii) da neutralidade econômica, segundo o qual sob a perspectiva do processo de circulação da riqueza,  não distorce a formação dos preços[ii].

A capacidade contributiva buscada pelo ICMS, portanto, é a do consumidor e não a do empresário comerciante ou fabricante. Como alertam Misabel Derzi e Sacha Calmon[iii] em artigo sobre a não-cumulatividade:

Tais tributos não oneram a força econômica do empresário que compra e vende ou industrializa, porém a força econômica do consumidor, segundo ensina Herting.

[...]

Entretanto, não apenas no Brasil, mas em diversos sistemas tributários forâneos, o legislador abandonou a expressão imposto sobre o consumo para adotar outras, como imposto sobre operação de circulação, imposto sobre a produção industrial. Não se trata de uma preocupação técnica, voltada a ajustar o nome ao formalismo jurídico. Antes, por motivos psicológico-tributários, quer-se vincular o imposto ao empresário, tornando-o pouco perceptível aos olhos dos consumidores leigos e não empresários.

Por essa razão, pela possibilidade da transferência total econômica e jurídica do ônus tributário ao consumidor que os contribuintes pleitearam no STF a retirada do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS, alegando que seriam meros intermediários no recolhimento do ICMS. O STF, no RE 574.706, acolheu a tese dos contribuintes, citando lição de Roque Carraza entendeu que “enquanto o ICMS circula por suas contabilidades, eles apenas obtêm ingressos de caixa, que não lhes pertencem, isto é, não se incorporam a seus patrimônios, até porque destinados aos cofres públicos estaduais ou do Distrito Federal

Em franca oposição à tese dos contribuintes, a União sustentava que a exclusão do ICMS da base de cálculo de PIS/COFINS não se justificaria, pois o ICMS seria um custo idêntico ao IPTU, ao aluguel ou aos demais custos fixos da empresa. Desse modo integraria o preço da mercadoria e, portanto, seria faturamento. Tese revivida atualmente pelos advogados que tentam afastar a caracterização da criminalização do não recolhimento contumaz de ICMS.

Trata-se, portanto, de uma questão de coerência do STF entre o decidido no RE 574.706 (ICMS na base de cálculo de PIS COFINS) e no RHC 163.334 (Criminalização do não recolhimento de ICMS). E o que a decisão do STF tem a ver com justiça fiscal e desigualdade social? 

O ICMS e a tributação sobre o consumo em geral têm caráter regressivo. O que significa que quando um consumidor bilionário ou um consumidor que ganha um salário mínimo compram a mesma mercadoria, ambos pagam exatamente o mesmo valor de ICMS. Nada obstante, a carga tributária arcada pelo consumidor relativamente a sua capacidade contributiva é absolutamente desigual.

Aquele mesmo ICMS pago pelo bilionário representa uma ínfima parcela de sua capacidade contributiva, já para o consumidor de baixa renda aquele tributo compromete parcela absolutamente significativa de seu orçamento mensal. Isso porque pessoas de baixa renda gastam praticamente todo seu orçamento em consumo.

O que acontece se o comerciante, favorecido na escolha da tributação sobre o consumo, onera o consumidor final, que arca com o ICMS, e não recolhe o tributo para fazer frente a ineficiência operacional de sua empresa ou para expandir seus negócios em vez de pegar empréstimos no mercado?

Deturpa-se a escolha política tributária feita em prol da eficiência econômica e neutralidade, porque se permite uma concorrência desleal entre os participantes do mercado e agrava-se de forma gritante a regressividade do tributo e a desigualdade social por ele produzida.

Os altos índices de inadimplemento/evasão do ICMS apontados pelas pesquisas[iv], que hoje giram em torno de 27% do tributo estimado, mostram de forma cristalina que não estamos tendo eficiência econômica e estamos agravando a desigualdade de forma brutal.

O ciclo de agravamento da desigualdade social se dá justamente porque na ausência de arrecadação dos valores previstos do ICMS, o Estado, para prover os direitos sociais preconizados na Constituição Federal como saúde, educação e segurança, precisa se valer de instrumentos como refinanciamento de dívidas, aumento da tributação e gastos vultosos com a cobrança judicial dos tributos via execução fiscal, que hoje somam mais de 30 milhões de processos[v]. Essa alta litigiosidade custa caríssimo ao cidadão comum, que arca com esse sistema judicial.

Todos esses instrumentos apenas agravam ainda mais a desigualdade social e destroem a livre concorrência no Brasil. O inadimplemento contumaz do ICMS onera o consumidor e o comerciante que paga seus impostos em dia.

É exatamente por essa razão que o bem jurídico tutelado pelo art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 (vulgarmente apelido de apropriação indébita tributária) é muito maior que um simples pagamento de tributo. Esse crime protege a escolha política e moral feita pelo Brasil, ao se privilegiar a eficiência e neutralidade econômica em detrimento de uma maior justiça redistributiva. Para um país com desigualdades imensas como o Brasil a simples escolha pela prevalência da tributação sobre o consumo já custa muito caro, porque agrava as desigualdades sociais existentes via tributação.

Agora permitir que o empresário contribuinte de ICMS não recolha esse ICMS que onerou única e exclusivamente o consumidor e o utilize para desequilibrar a neutralidade do mercado, via inadimplemento contumaz, é permitir um injusto e indigno financiamento da atividade privada de poucos as custas de toda sociedade. É compactuar com a desproteção social sistêmica, que além de ver a tributação ser constantemente majorada em razão da evasão, ainda priva a sociedade de bons serviços públicos pela frustração do ingresso de recursos públicos.

É preciso lembrar quem paga a conta desse inadimplemento contumaz de ICMS como medida de conscientização política, a fim de não se tecerem injustas críticas ao precedente do STF, que pôs fim a um longo período de impunidade. O Estado apenas representa em juízo o real destinatário da tributação: a sociedade!

Oportuno, portanto, relembrar o memorável discurso da primeira ministra britânica Margaret Thatcher na Convenção do Partido Conservador em 1983, absolutamente pertinente ao caso ora analisado:

“Não nos esqueçamos dessa verdade fundamental: O estado não tem fonte de recursos a não ser o dinheiro que as pessoas ganham. Se o estado desejar gastar mais, só poderá fazê-lo pegando emprestado suas economias ou aumentando seus impostos. E não é um bom pensamento achar que outra pessoa pagará por isso. Será você a pagar por isso. Não existe essa coisa chamada dinheiro público. Existe apenas dinheiro dos contribuintes que pagam tributos.”[vi]

 

Notas e Referências

[i] MURPHY, Liam e Thomas Nagel, O mito da propriedade, Martins Fontes, 2005, fl. 5

[ii] TORRES, Ricardo Lobo, O princípio da não cumulatividade e o IVA no direito comparado, in: O princípio da não cumulatividade /coordenador Ives Gandra da Silva Martins.- São Paulo: editora revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 2004 (Pesquisas tributárias, Nova Série, 10

[iii] COELHO, Sacha Calmon Navarro e DERZI, Misabel Abreu Machado, ICMS não cumulatividade e temas afins, fl. 109 in: O princípio da não cumulatividade /coordenador Ives Gandra da Silva Martins.- São Paulo: editora revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 2004 (Pesquisas tributárias, Nova Série, 10)

[iv] http://www.quantocustaobrasil.com.br/artigos/sonegacao-no-brasil-uma-estimativa-do-desvio-da-arrecadacao-do-exercicio-de-2018

[v] Relatório Justiça em números CNJ, disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf

[vi] Let us never forget this fundamental truth: The state has no source of money other than the Money people earn themselves. If the state wishes to spend more it can do so only by borrowing your savings or by taxing you more and it`s no good thinking that someone else will pay. That someone else is you. There is no such thing as public Money. There is only taxpayers Money. Disponível em https://www.margaretthatcher.org/document/105454

 

Imagem Ilustrativa do Post: Worshipful Master's Gavel // Foto de: Bill Bradford // Sem alterações

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