Por Ricardo Jacobsen Gloeckner - 21/03/2015
Apesar de toda a polêmica em torno da possibilidade ou vedação da admissibilidade de investigação contra o presidente da República, mormente pelas tramitações difusas que assume a famosa operação Lava-Jato, ingressa em pauta de discussão a extensão do art. 86, § 4º da Constituição da República, que prevê: “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
Ultimamente andei lendo vários artigos e manifestações justamente sobre esta norma constitucional. Algumas levianas, outras epistemologicamente falidas. O ponto nevrálgico da questão, deixando de lado as paixões partidárias que levam alguns signatários destes artigos e/ou manifestações a brindar o leitor com uma plêiade de leituras tortas da norma em comento, recai justamente sobre o aspecto processual penal. Eis aqui nosso ponto de ancoragem.
Numa leitura perfunctória da norma constitucional, o presidente da república possui uma imunidade temporária contra acusações relativas a atos criminosos praticados antes do exercício do cargo. Em raciocínio inverso, eventuais práticas criminosas realizadas durante o exercício do mandato não estão ao abrigo da norma em questão, sendo, portanto, flagrante a possibilidade de acusação contra o portador do cargo.
Entretanto, a norma em questão é aberta em relação à investigação. E ingressa a discussão sobre a admissibilidade de instauração de investigação contra o presidente. Vários argumentos foram esgrimidos a despeito desta possibilidade. Vamos a eles.
O primeiro argumento utilizado em prol da admissibilidade da investigação contra o presidente da República, durante o seu cargo, residiria na necessidade de se evitar a “perda ou desaparecimento das provas”. Uma leitura apressada poderia dar razão a este argumento que apesar de tudo, é falso. A uma, considerando que a investigação preliminar não tem por função a produção de provas, a não ser em regime de excepcionalidade. O termo prova requer a jurisdicionalização, coisa que a investigação preliminar não possui. Ademais disso, a ausência de sujeição ao contraditório e à ampla defesa fazem da investigação preliminar um instrumento de cognição sumária e não plenária, consoante os bizarros entendimentos de que a investigação preliminar teria como função a produção de provas. Deve-se registrar que a investigação preliminar não desconhece a produção de provas, ditas não-renováveis (ou irrepetíveis). Todavia, sempre em caráter de exceção. Portanto, em síntese, a investigação preliminar não possui como instrumentalidade própria a produção de provas (lembro aos desavisados que não estamos diante do modelo americano da discovery e disclosure). Para aprofundamento a obra em parceria com o amigo Aury Lopes Júnior, Investigação Preliminar no Processo Penal.
Um segundo argumento utilizado é o de que a Constituição veda tão somente a acusação contra o Presidente. Não a investigação. Assim, não estando prevista a imunidade, nada obstaria a investigação. Para além de se tratar de um argumento que não oferece suporte lógico (a uma por que o direito não se presta a ser determinado em razão de inferências lógicas, a menos que ainda tenhamos que conviver com os adeptos do Círculo de Viena; a duas pelo fato de que acusação e investigação não são inferências recíprocas, mas paramétricas), o argumento é de um infantilismo pueril. Quem não pode o mais pode o menos? Qual a função da investigação preliminar? Se tomarmos em consideração que a investigação preliminar possui várias funções, sendo uma delas a de oferecer suporte a um processo criminal (evitando assim as denominadas denúncias vazias e indicando a presença da justa causa para a ação penal), que instrumentalidade exerceria uma investigação cujo objeto principal (o processo) se encontra obstado? Naturalmente, esta investigação exerceria funções simbólicas e políticas, mas não jurídicas. E ao exercer uma função anômala, perderia sua característica principal: a de servir como instrumento por seu turno a serviço do processo.
Naturalmente que estes dois argumentos utilizados para se advogar em prol da admissibilidade da investigação contra o presidente da República são pobres. Todavia este não é o pior dos problemas. A criação de espaços de exceção, sujeitos ao decisionismos e aos dissabores do momento político compromete a instrumentalidade constitucional do processo penal. Dentre inúmeros problemas de legalidade (e constitucionalidade encontrados nos meandros da famosa operação), reputo estar na hora de se acabar com o período da pornochanchada constitucional. Não se pode tergiversar quando o assunto em questão são os direitos fundamentais e as regras constitucionais. Numa sociedade que vive às pressas, temos pressa até mesmo de iniciar um procedimento que deverá aguardar o seu momento adequado para nascer...
Ricardo Jacobsen Gloeckner é Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Doutor em Direito pela UFPR. Advogado.
Imagem Ilustrativa do Post: Miss Red the Ted (...) // Foto de: Darling Starlings // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/magicattic88/16778004446/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode