Me ouvindo assim / (des)faço um outro / seu me olhar
Quiçá / em ti / encanto provocar
E desmontar / o ódio e / a aversão à cor / que chegam primeiro / do que quem eu sou
Li livros / ouvi discos / folheei jornais, me formei ao gosto / do que tanto faz
Meu grito é o mesmo / dos meus ancestrais / de um Amarildo / que não volta mais
Cairão mais! (… e quantos mais!?)
Nívea Sabino, 2016
A violência é um problema que assola o país e estampa as matérias da mídia diariamente, gerando insegurança e medo na população. Em razão disso, é natural e necessário que a segurança pública seja um dos pontos centrais dos planos de governo daqueles que figuram como candidatos à presidência do Brasil. Quem são os que morrem? Quem são os que matam? Quem são as pessoas que compõem as estatísticas? Essas são perguntas relevantes para elaborar uma linha de governo que combata o problema de forma efetiva e serão abordadas em linhas gerais.
Após o primeiro turno, continuam na disputa Fernando Haddad, candidato pelo Partido dos Trabalhadores, e Jair Bolsonaro, pelo Partido Social Liberal, dos quais analisaremos o documento que norteia a campanha e norteará o governo, caso sejam eleitos. Ambos falam dos homicídios como um problema, embora apresentem soluções que caminham em direções opostas.
O PSL, encabeçado por Jair Bolsonaro, elaborou um programa de governo baseado no punitivismo e na teoria da “tolerância zero”[1], expressamente citada no documento. Defende medidas direcionadas pelo mote “prender e deixar na cadeia”, que incluem a extinção das saídas temporárias e da progressão de regime e a redução da maioridade penal. Defende, também, políticas que visam o investimento nas forças policiais, visando a melhoria das investigações, a reformulação do Estatuto do Desarmamento para “garantir o direito do cidadão à legítima defesa” e a excludente de ilicitude para os atos efetuados por policiais no exercício de sua atividade profissional[2].
Cabe ressaltar, ainda, que o plano de governo do candidato do PSL contesta a ideia de que o Brasil tem a “polícia que mais mata”[3] e nega que um maior acesso às armas, através da alteração ou revogação do Estatuto do Desarmamento, promoveria mais violência. Alega que os dois pontos são “mentiras da esquerda”[4].
A adesão às ideias desse candidato por parcela da população que atingiu 46% (quarenta e seis por cento) dos votos válidos em primeiro turno demonstra que, de fato, a sanha punitivista agrada, uma vez que as pessoas veem nesse discurso uma solução para o problema da sensação de insegurança. Sobre o assunto, a autora Júlia Valente foi incisiva ao levantar o motivo da adesão social ao discurso direcionado pela violência, paradoxalmente, no combate à própria violência:
As práticas violentas são, muitas vezes, legitimadas socialmente devido a uma visão autoritária que divide os indivíduos entre “cidadãos de bem”, merecedores de seus direitos, e “bandidos”. Assim, a segurança pública está impregnada da metáfora da guerra: a guerra contra o crime, o traficante como inimigo e o território a ser recuperado.[5]
Também abordando o tema, a autora Ana Lúcia Sabadell cita o aumento da repressão como política simbólica. Afirma que, “nesse sentido, as políticas de segurança constituem uma política simbólica que tenta legitimar a repressão por parte do Estado, explorando a “insaciável necessidade de segurança” propaladas pelos políticos e pela mídia.[6]
O direito penal simbólico, como sugere o nome, em termos gerais, apresenta-se como mero simbolismo, que nem sempre produz os efeitos citados para fundamentar sua aplicação. O termo aborda a oposição entre realidade e aparência, entre o verdadeiramente desejado e o aplicado na prática, mascarando os efeitos reais da pena.[7]
A abordagem truculenta, baseada no aumento da quantidade de tipos penais e das repressões, bem como na supressão de direitos e garantias, parece uma solução simples e rápida, contudo, não corrige o problema.[8] De acordo com Vera Malaguti Batista, a segurança pública só pode ser assim tratada quando prevê um “conjunto de projetos públicos e coletivos que foram capazes de gerar serviços, ações e atividades no sentido de romper com a geografia das desigualdades no território usado”[9]. Afirma, ainda, que ignorar isso gera o controle truculento “dos pobres e resistentes na cidade”. E, numa democracia, ser pobre e resistir não deveriam ser condutas criminalizadas.
Fernando Haddad, por sua vez, propõe a articulação de programas e ações que envolvam segurança pública e políticas sociais. Ao estabelecer as diretrizes para o Plano Nacional de Redução de Homicídios, leva em consideração que a maioria das vítimas de homicídio é composta por jovens, negros e moradores de periferia, com uso da arma de fogo. Sendo assim, também defende a modernização do sistema institucional de segurança e a valorização dos profissionais da área, mas propõe políticas intersetoriais, “que deem qualidade aos serviços públicos nos territórios vulneráveis”, bem como o maior controle de armas e munições. Inclui, ainda, atenção à situação das crianças, mulheres e população LGBTI+[10]
Propõe, também, o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, com o objetivo de promover a reintegração social de quem passa pelo cárcere e “não mais a retroalimentação de mão de obra das organizações criminosas”, e o Sistema Único de Segurança Pública, promovendo a integração dos governos federal, estaduais e municipais. Pretende, assim, focar “em inteligência, priorização da vida, controle de armas, repactuação das relações entre polícias e comunidades, prevenção e valorização profissional das polícias.”[11] Defende, também, nova abordagem sobre a política de drogas, entendendo que o dinheiro movimentado pelo tráfico atualmente favorece a violência letal e o financiamento de atividades criminosas como a corrupção.
Essa visão conjuga várias esferas e trata o crime não como fato isolado e sim como inserido num contexto social complexo e com várias nuances. O plano de governo do Haddad, como exposto, dialoga de forma harmônica com o ideal de Segurança Pública apresentado pela Vera Malaguti e também com as estatísticas apresentadas pelo Atlas de Violência.
De acordo com o Atlas, os homicídios no Brasil têm cor, idade e classe social. Em 2016, último ano analisado pelo documento, foram 62.517 os homicídios no Brasil, com aumento das desigualdades de mortes violentas por raça/cor. A taxa de homicídios de não negros diminuiu 6,8% nos últimos dez anos, enquanto “a taxa de vitimização da população negra aumentou 23,1% ”.[12]
O Atlas da Violência conclui que 71,5% das pessoas assassinadas no Brasil é formado por pretas ou pardas[13] e essa porcentagem aumenta quando se trata de vítimas da atuação da polícia. Nesses casos, os negros são 76,2% dos assassinados.
Constatou-se, ainda, que, “em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Em dez anos, observou-se um aumento de 6,4%” e que também nestes casos há preponderância de assassinatos de mulheres negras em relação às não-negras[14].
Por fim, cabe ressaltar que o Atlas da Violência separou uma seção para abordar o tema das armas de fogo. Trouxe a contextualização histórica, desde 1980, que demonstra como e por que houve uma corrida armamentista a partir da década citada e evidencia que o crescimento de homicídios com armas de fogo apenas foi barrado com o Estatuto do Desarmamento, em 2003.
Portanto, questões como a violência contra o povo negro, contra as mulheres, violência oriunda das polícias e Estatuto do Desarmamento são pontos que precisam ser levados em conta na elaboração de um plano de governo que se pretenda eficaz. Não se trata de invenções da esquerda ou de determinado partido, mas de análise de dados concretos.
Neste ponto, cabe salientar o que foi dito pelo autor Luiz Flávio Gomes,
É justamente no momento de histeria coletiva ou de comoção nacional que os governantes devem mostrar prudência, equilíbrio, preparo técnico e emocional. E no momento de formular propostas de solução de um megaproblema, como é o da insegurança, devem estar cercados de gente que entende cada uma das intrincadas áreas envolvidas.[15]
A criação de medidas repressivas, com extinção pura e simples de direitos e garantias, não se apresenta como a solução adequada uma vez que, além de não atacar o problema, ela pode intensificá-lo, recaindo sobre as pessoas que se apresentam como as maiores vítimas.
Como os dados demonstram, a violência não faz a maioria de suas vítimas nas regiões onde há grande poder aquisitivo ou onde a maioria é branca. Há extrema necessidade em analisar as estatísticas a fim de que o problema seja efetivamente combatido e não simplesmente traga a falsa sensação de diminuição da violência.
Diante do que foi exposto, é preciso ultrapassar a barreira do medo para analisar o contexto com mais clareza. A necessidade de urgência em solucionar o problema da insegurança precisa considerar que este é um problema complexo e cujo combate tem que envolver medidas também complexas.
Notas e Referências
[1]COLIGAÇÃO BRASIL ACIMA DE TUDO, DEUS ACIMA DE TODOS. Proposta de plano de Governo. Brasília: 2008. Disponível em<http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517//proposta_1534284632231.pdf>. Acesso em 17 out. 2018. P. 10.
[2]_________. P. 32
[3]______ P. 28
[4]______ p. 28
[5] VALENTE, Julia. UPPs: Governo militarizado e a ideia de pacificação. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p. 103-104
[6] SABADELL, Ana Lucia. O conceito ampliado da Segurança Pública e a segurança das mulheres no debate Alemão In A violência multifacetada. César Barros Leal e Heitor Piedade Júnior. São Paulo: Boitempo, 2013. p 9
[7] HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y Protección de Bienes Jurídicos. p. 28.
[8] NOBRE, Ana Luiza. Guerra e Paz In Paz Armada. Vera Malaguti Batista [org.] Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p 20
[9] BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo In Paz Armada. Vera Malaguti Batista [org.] Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p 60
[10] COLIGAÇÃO O POVO FELIZ DE NOVO. Plano de Governo 2019 – 2022. Brasília: 2018. Disponível em <http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000629808//proposta_1536702143353.pdf> Acesso em 17 de out. 2018. p. 31
[11] ______ P. 33
[12] ______ P.4
[14] ______ P. 4
[15] FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; IPEA. Atlas da violência 2018. Rio de Janeiro: 2018 p. 44
[16] GOMES, Luiz Flávio. Medidas emergenciais contra a violência no Brasil In A violência multifacetada. César Barros Leal e Heitor Piedade Júnior. São Paulo: Boitempo, 2013. p 248-249.
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