Quem ama não mata: o enterro da “legítima defesa da honra”

19/03/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A tese da “legítima defesa da honra” ganhou fama no Brasil na década de 1970, quando Doca Street foi julgado pelo assassinato de sua companheira, a socialite Ângela Diniz. Com quatro tiros, Doca tirou a vida de Ângela na noite de 30 de dezembro de 1976, na casa em que veraneavam em Búzios. O crime, que chocou pela sua violência e pela notoriedade dos envolvidos, foi largamente noticiado pelos veículos de comunicação[i]. Emissoras de televisão acompanharam o julgamento de Doca, transmitindo à audiência todos os passos do júri popular, os argumentos utilizados pela acusação e pela defesa e comunicando em tempo real a sentença: pena de dois anos, com direito à sursis e ao cumprimento em liberdade.

Durante todo o julgamento, a defesa lançou mão de narrativas que buscaram transformar a vítima, Ângela Diniz, na culpada pelo seu próprio assassinato. Sua vida pessoal foi exposta e ela foi retratada como a “Vênus lasciva”, uma mulher promíscua, usuária de drogas, desregrada, de vida fácil e que desvirtuava os bons costumes, mesmo estando em um relacionamento com Doca. Segundo a tese da defesa, que foi acatada pelo júri, Doca teria assassinado Ângela para defender sua honra, teria agido, portanto, “em legítima defesa da honra”, teria matado por amor.

Movimentos feministas se insurgiram contra o resultado do julgamento e contra a tese da “legítima defesa da honra”, lançando a campanha nacional “Quem ama não mata”[ii]. A pressão desses movimentos levou o Ministério Público a recorrer da sentença e, em novo julgamento, ocorrido em 1981, Doca foi condenado a quinze anos de prisão em regime fechado. Esse julgamento acabou se tornando um dos marcos do feminismo brasileiro e movimentou o que veio a ser um dos seus principais eixos de luta: o combate à violência contra mulheres[iii].

Mais de três décadas após o julgamento de Doca Street, foi promulgada a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), que estabelece uma pena base maior para os crimes cometidos contra as mulheres, em relação aos homicídios cometidos contra homens. Essa qualificadora do crime de homicídio busca proteger as mulheres das desigualdades decorrentes das representações e das valorizações díspares entre o masculino e o feminino, que as colocam em situação de vulnerabilidade e opressão. A tipificação do feminicídio é, portanto, um processo de visibilização da discriminação e da desigualdade de gênero contra as mulheres, que, em sua forma mais extrema, pode resultar em morte. É a resposta às demandas dos movimentos feministas contra as narrativas de que as vidas das mulheres pertencem aos homens e que podem ser suprimidas ao seu bel prazer.

Antes da Lei do Feminicídio, os assassinatos de mulheres podiam ser qualificados conforme alguma das qualificadoras do Código Penal – em geral, motivo torpe ou fútil (art. 61, II, a, CP) – o que dificultava seu enquadramento em alguma dessas categorias e abria espaço para discussões sobre quais foram os motivos que levaram ao cometimento do crime. Assim, de um lado, a acusação tentava demonstrar que os motivos foram desproporcionais ou imorais, enquanto a defesa alegava que o réu agiu em legítima defesa (da honra) ou, ainda, justificava o crime a partir de alguma das hipóteses de diminuição da pena do homicídio, previstas no art. 121, §1º, do Código Penal: cometimento do crime em razão de motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. A discussão sobre os motivos do crime abria ainda mais espaço para a avaliação sobre a vida e a conduta da vítima, a partir de estereótipos de gênero, e para sua consequente culpabilização[iv]. Com a Lei do Feminicídio, a qualificadora passou a ser objetiva, bastando que o crime tenha sido cometido contra uma mulher, por ela ser mulher, não importando outros motivos que estavam “por trás” do crime.

Apesar disso, a tese da “legítima defesa da honra” como excludente de ilicitude continuou sendo utilizada no Tribunal do Júri para legitimar e justificar os assassinatos de mulheres cometidos por seus companheiros. Narrativas estereotipadas de gênero continuaram sendo acionadas para conceder ou para colocar em suspenso a credibilidade dos envolvidos. A ideia de que existiria um “papel social” inerente a mulheres e homens continuou sendo utilizada para, de um lado, produzir uma imagem desabonatória das vítimas, que não representam o ideal da “boa mãe”, da cuidadora, da mulher frágil e passiva. De outro, para retratar os réus como “homens bons”, corretos, trabalhadores e pais de família. Se percebe, portanto, um duplo movimento baseado em estereótipos de gênero utilizado no Tribunal do Júri: o primeiro é o de hierarquização entre as vítimas, a partir da construção de perfis que merecem mais ou menos os crimes que sofreram. O segundo, ligado ao primeiro, se relaciona à circulação, ao deslocamento entre vítimas e réus[v], transformando os homens em vítimas da conduta de suas companheiras e as mulheres assassinadas em culpadas por suas próprias mortes, assim como ocorreu com Ângela Diniz.

Diante desse contexto, em janeiro de 2021, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779 – DF, com pedido de medida cautelar, objetivando que o Supremo Tribunal Federal (STF) desse interpretação conforme à Constituição aos dispositivos do Código Penal que tratam da legítima defesa, de modo que fosse afastada a nefasta tese da “legítima defesa da honra”, ainda acatada em alguns Tribunais de Justiça do Brasil. Em 26 de fevereiro, o Relator, Ministro Dias Toffoli, decidiu, em caráter liminar, que “[...] a chamada “legítima defesa da honra” não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico pátrio [...][vi]”, sendo inconstitucional por contrariar os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida, da antidiscriminação e da igualdade de gênero.

O Relator aproveitou para esclarecer o óbvio: que não existe algo como “legítima defesa da honra”. Esse termo, empregado de forma inadequada, não pode ser confundido com a legítima defesa prevista como excludente de ilicitude no art. 23, II, do Código Penal. Isso porque, nos termos do art. 25 do mesmo instrumento legal, para se configurar legítima defesa, é necessário que haja a confluência dos seguintes requisitos: a) agressão injusta atual ou iminente; b) direito próprio ou de terceiro; c) uso moderado dos meios necessários e; d) presença de um ânimo de defesa. Por agressão injusta se entende aquela que ameaça ou lesa um bem jurídico. No caso de uma traição, estamos diante de um desvalor ético e moral, “[...] não havendo que se falar em um direito subjetivo de contra ela agir com violência.” Inclusive, nesse mesmo espírito, o art. 28, I, do Código Penal prevê que a emoção ou paixão não excluem a imputabilidade penal. Ainda, matar alguém que supostamente lhe traiu não configura uso moderado de meios necessários, pelo contrário, há uma nítida desproporcionalidade entre a suposta ofensa e a sua repulsa. Afinal, a honra do homem não pode ser tomada como um bem jurídico de maior valor do que a vida da mulher. “Portanto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional de forma covarde e criminosa.”[vii] O Ministro ressaltou ainda que a “legítima defesa da honra” se configura como uma estratégia argumentativa odiosa, desumana e cruel, que contribui para a naturalização e para a manutenção da violência contra as mulheres.

No dia 13 de março desse ano, a ADPF foi julgada pelo Pleno do STF. Por unanimidade, as Ministras e Ministros decidiram pela inconstitucionalidade da tese da “legítima defesa da honra”, retomando os argumentos lançados pelo Relator e ressaltando que essa narrativa discrimina mulheres desde o período colonial e contribui para a produção e manutenção das desigualdades de gênero em nossa sociedade. Ainda, determinaram que nem a defesa, nem a acusação, nem a autoridade policial e nem o juízo podem utilizar, direta ou indiretamente essa tese ou qualquer argumento que a induza, seja nas fases pré-processual e processual, ou em julgamentos perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade dos atos e julgamentos[viii].

Essa decisão, que enterra, finalmente, a nociva tese da “legítima defesa da honra”, proferida justamente no mês em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher, constitui mais uma vitória importante na luta de enfrentamento às violências contra mulheres, em especial neste momento em que os dados de feminicídio no Brasil têm aumentado com a pandemia e com o isolamento social[ix]. Contudo, sabemos que as medidas penais, sozinhas, não têm condições de mudar o cenário das desigualdades de gênero e das violências contra mulheres. Elas são complementares a uma série de ações e de serviços que fazem parte da rede de enfrentamento às violências contra mulheres, assentada sobre quatro eixos de atenção: o enfrentamento e combate, a prevenção, a assistência e o acesso e garantia de direitos[x]. Assim, ao lado das estratégias penais, é necessário fortalecer instituições e serviços governamentais e não governamentais nas áreas da saúde, da assistência social, da educação, do emprego e renda, da justiça e da segurança pública, para que sejam elaboradas e concretizadas políticas públicas direcionadas à prevenção e ao enfrentamento das violências contra mulheres e para que seja prestado o atendimento adequado, humanizado e integral de quem acessa a rede, garantindo, efetivamente, a proteção de seus direitos. É apenas com uma rede forte e consistente que podemos fazer frente às violências que estamos sujeitas a sofrer, pelo simples fato de sermos mulheres.

 

Notas e Referências

[i] MEMÓRIA GLOBO. Assassinato de Ângela Diniz: O crime passional teve grande repercussão na época e mobilizou a opinião pública. Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/assassinato-de-angela-diniz/. Acesso em 16 mar. 2021.

[ii] MOTA, Adriana. Quem ama não mata, 40 anos depois. Portal Geledés, 05 jan. 2017. Disponível em: https://www.geledes.org.br/quem-ama-nao-mata-40-anos-depois/. Acesso em 16 mar. 2021.

[iii] GROSSI, Miriam Pillar. De Ângela Diniz a Daniela Perez: a trajetória da impunidade. Revista Estudos Feministas. V.1, n. 1, 1993.

[iv] BESSA, Caroline Ribeiro do Souto. Legítima Defesa da Honra não é mais desculpa para matar a mulher. Estadão, 15. Mar. 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/legitima-defesa-da-honra-nao-e-mais-desculpa-para-matar-a-mulher/#:~:text=O%20famoso%20caso%20de%20que,estado%20do%20Rio%20de%20Janeiro. Acesso em 16 mar. 2021.

[v] FACHINETTO, Rochele Fellini. Quando eles as matam e quando elas os matam: uma análise dos julgamentos de homicídio pelo Tribunal do Júri. Tese de Doutorado em Sociologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.

[vi] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.779. Relator: Ministro Dias Toffoli. Brasília, DF, 26 fev. 2021. Diário de Justiça Eletrônico, 26 fev. 2021.

[vii] Ibidem.

[viii] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. STF proíbe uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio. 15 mar. 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462336&ori=1. Acesso em 16 mar. 2021.

[ix] FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Nota Técnica Violência Doméstica Durante a Pandemia de Covid 19 – ed 2. 29 mai. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf. Acesso em 16 mar. 2021.

[x] BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento às Violências Contra as Mulheres, 2011.

 

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