Quanto vale um advogado? (Parte 2 - Dissecando a cultura anti - advocacia)

10/08/2016

Por Bruno Torrano - 10/08/2016

A primeira parte desta trilogia, publicada em 13/07/2016, serviu para refrescar em nossa memória algo que, para muitos, pode passar despercebido em debates sobre arranjos institucionais e moralidade política: as razões pelas quais advogados existem. Não são razões, como argumentei, fincadas em meras combinações aleatórias de eventos pretéritos ou em desejos irrefreáveis de corporativismo, e sim no racional compromisso com histórias de sucesso – alcançadas em comunidades que conseguiram prosperar com a adesão a valores verdadeiramente democráticos. A liberdade conferida a cada cidadão de confiar a um terceiro tecnicamente especializado a defesa de seus interesses e a administração de seus conflitos constitui, portanto, uma inestimável conquista humana. Um triunfo baseado, por um lado, em princípios sólidos de lealdade, respeito mútuo, sigilo e especialização; e inspirador, por outro, de coesão e cooperação sociais e de estabilidade institucional-normativa do sistema jurídico.

O fato, em si, de críticas serem lançadas a uma entidade de classe ou a seus membros não é, em nenhuma medida, censurável. É um dos aspectos mais admiráveis, aliás, do jogo democrático. Aquilo a que me refiro como “cultura anti-advocacia” não é, todavia, um tipo frouxo e casuístico de reprovação argumentativa. Ao contrário, constitui um conceito de natureza híbrida: do lado consciente, são afirmativas, atitudes e comportamentos deliberadamente orquestrados – não raro por integrantes de poderes e órgãos estatais com expressiva influência política de questionar de lege ferenda prerrogativas ou de manipular a opinião pública a contento – com o fim de enfeixar, das mais diversas formas, desconfiança sobre o caráter e competência da classe; do lado inconsciente, são ações ou verbalizações que ilustram a incorporação impensada, com consequente reverberação em atos oficiais e não-oficiais, de pré-juízos genéricos acerca do empreendimento advocatício. Em todo caso, podem ser definidos como ações humanas mais ou menos reiteradas que derivam de crenças desdenhosas e mesmo intolerantes contra a ideia de que uma classe de advogados valorizada, politicamente forte, independente e intelectualmente instruída traz benefícios sociais.

Nos termos em que delineado, o discurso anti-advocacia é heterogêneo. Parte de diferentes premissas; muda; aperfeiçoa-se; amplia-se. Abrange, ademais, um universo comportamental que vai desde comentários jocosos sobre os atributos da classe profissional como um todo até fatos cujos efeitos negativos só vêm a serem sentidos na pele por aqueles que participam, efetivamente, da prática jurisdicional: dificuldade em agendar audiência com magistrados e outros agentes públicos; falta de cordialidade e ironias em secretarias; tratamento esnobe por parte de autoridades; presunção de que a opção pela atividade de advogado é sintoma explícito da incapacidade intelectual de passar em um concurso público; rotulação a priori como criminoso ou imoral por defender fulano ou beltrano; fixação ilegal de honorários irrisórios; e assim por diante.

Mas o que motiva posturas, como as citadas, de desprezo, menosprezo ou intolerância contra o patrocínio jurídico privado? Qual é aquela parte subjacente que nos foge aos olhos? A resposta não é fácil. Trata-se do tipo de assunto que admite apenas diagnósticos gerais, retirados do conhecimento de casos familiares, a partir de fontes variadas discricionariamente selecionadas (experiência profissional pessoal, conversas diárias, publicações da mídia, decisões judiciais, debates públicos, etc.). Seria impossível, ainda que em um espaço maior do que este, pretender elaborar listas exaustivas sobre assuntos dependentes de condutas humanas em constante mutação e desenvolvimento, acerca das quais uma teoria responsável não poderia jamais disfarçar ou minimizar as complexidades.

Nesses limites, não creio ser grande ousadia sugerir que, por detrás da cultura que tende a subestimar o papel do advogado, são reiteradamente observados comportamentos que, dentre outros fatores, derivam de:

(i) Desconhecimento de fatos relevantes: Muitas das críticas genéricas lançadas ao caráter e à competência dos advogados, às pretensões remunerativas que deduzem ou à opção pessoal por defender um cliente considerado moralmente iníquo não se baseiam em raciocínios bem informados. Talvez isso seja mais contundente dentre aqueles servidores públicos que, na vida profissional pretérita, nunca empreenderam ou, de forma mais restrita, nunca vivenciaram a rotina de um escritório de advocacia, limitando-se, mesmo na faculdade, a fazer estágios em órgãos públicos. A crítica, aqui, não é relativa à livre escolha de seguir a digna carreira pública em busca de estabilidade. E nem pretende negar que opiniões podem ser proferidas sem sustentáculo na experiência, vindo a sofrer um processo de lapidação posterior a partir do poder do debate. A questão é outra. A informação limitada sobre dado assunto redobra o dever de cautela do falante no momento em que se dispõe a falar desse assunto. Em geral, portanto, o desapreço pelo ofício advocatício fundado em expressões vazias e meros prejulgamentos demonstra não só desconhecimento total ou parcial de causa, mas também uma indissimulável irresponsabilidade argumentativa.

(ii) Falta de empatia: Na razão prática, são bastante comuns decisões e debates permeados por informações limitadas – em cenários não tão diferentes daquele mencionado, no item acima, quanto ao servidor público sem experiência no empreendedorismo. Todavia, todos nós dispomos de mecanismos mentais que tornam possível amenizar esse abismo de informação, melhorando a qualidade das deliberações. Um dos mais simples e efetivos é tentar colocar-se imaginativamente no lugar do outro, com o objetivo de ver o mundo à luz de valores alheios com os quais muitas vezes não se concorda. A cultura anti-advocacia peca também nesse fundamento. Não é impossível – e tampouco difícil – idealizar por alguns minutos os passos tortuosos pelos quais um advogado precisa passar diariamente caso almeje obter sucesso no mercado: instabilidade financeira; investimento; grau de risco; planejamentos complexos e detalhados; forte concorrência; opinião pública hostil; maus funcionários; volume e variedade de conhecimento indispensável ao crescimento profissional (direito, linguagem verbal e corporal, oratória, marketing, negociação, estratégia empresarial) e assim por diante. A reflexão acerca de todos esses fatores é, ou deveria ser, determinante na formação sensata de juízos relativos ao papel do advogado e à justeza de seu retorno econômico.

(iii) Inveja: Diderot dizia que o talento é imperdoável. Um advogado que alcança o sucesso profissional por meios honestos não faz nada mais, nada menos, do que prestar ano após ano um excelente serviço a seus clientes. Se a consequencia de tornar-se bem sucedido for celebrar contratos milionários de prestação de serviços e atuar em processos com vultosos honorários de sucumbência, que assim seja. Não há nada de errado em colher os bons frutos de uma plantação bem feita. Em casos extremos, a simples vontade de maldizer ou impedir a riqueza alheia pode ser o motor mais óbvio de críticas genéricas lançadas a advogados que ostentam legitimamente carros e mansões ou, ainda, de decisões judiciais que, sem fundamento legal, reduzem os honorários sucumbenciais a patamares irrisórios.

O leitor que não é advogado não precisa ofender-se. Eu mesmo não sou, mas fui. Com todo o exposto acima, eu não pretendi sustentar que essas são as motivações psicológicas que informam todas as ações que contrariam, de alguma forma, advogados. Nem mesmo a maioria delas. O diagnóstico acima habita o campo da plausibilidade e procura, apenas, estabelecer descrições possíveis daquilo que, por vezes, pode-se deduzir de uma convivência mais íntima com o problema. Outras descrições seriam, igualmente, imagináveis. Assim, de nenhuma forma pretendo comprometer-me com afirmações mais fortes no sentido, por exemplo, de que qualquer magistrado que fixa honorários sucumbenciais irrisórios move-se, no fundo, por uma indisfarçável inveja. Isso seria um tipo de antecipação cega – e ridícula – de fatos que se banham à ribeira de certo grau de imprevisibilidade e devem ser analisados caso a caso.

Dissecamos acima, na medida do razoável, aquilo que denominei de cultura anti-advocacia. Muito mais poderia ser dito – e nada impede que, no futuro, eu venha a tratar novamente do tema. Mas, por enquanto, é o que nos basta. É tempo, enfim, de caminharmos para o capítulo derradeiro de nossa trilogia. Nele, as premissas já estarão, de início, claras e organizadas. E, com elas, poderemos conferir atenção mais criteriosa e ponderada à pergunta que animou a elaboração dessa série de ensaios: afinal, quanto vale um advogado?


Bruno Torrano. Bruno Torrano é Mestre em Filosofia e Teoria do Estado, Pós-graduado em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, Pós-graduando em Direito Empresarial, Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça. Autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”. .


Imagem Ilustrativa do Post: the boss // Foto de: ben dalton // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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