QUANTAS GRADES PRENDEM OS ENCARCERADOS?

08/02/2019

A permissão de saída prevista na Lei de Execução Penal analisada sob o viés da dignidade da pessoa humana.

A Lei de Execução Penal, como é conhecida a Lei nº 7.210/1984, prevê uma série de regras para o caso de cumprimento das condenações penais. Entre elas, está prevista a “permissão de saída”, no art. 120, que se refere a uma das espécies de autorização de saída para aqueles que se encontram encarcerados.

Embora a referida norma seja anterior à Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, a qual lhe deu novos contornos e maneiras de interpretação condizentes com a chamada Constituição Cidadã, o art. 120 existe desde a elaboração original da Lei de Execução Penal – LEP. Sendo assim, está previsto legalmente, desde 1984, que:

Art. 120. Os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semiaberto e os presos provisórios poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer um dos seguintes fatos:

I - falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão;

II - necessidade de tratamento médico (parágrafo único do artigo 14).

Parágrafo único. A permissão de saída será concedida pelo diretor do estabelecimento onde se encontra o preso.

Art. 121. A permanência do preso fora do estabelecimento terá a duração necessária à finalidade da saída.

De acordo com o texto, está evidente que, em casos de falecimento ou doença grave de cônjuge, companheiro(a), ascendente, descendente ou irmão e, ainda, nas situações em que precisar de atendimento médico fora da unidade, está assegurado, por lei, o direito da pessoa presa – seja  provisoriamente ou em razão de condenação – de sair do estabelecimento prisional. Tal saída acontecerá mediante escolta, conforme também previsto na redação legal.

Dada a urgência que os casos envolvem, o parágrafo único do art. 120 prevê, ainda, que a “permissão de saída será concedida pelo diretor do estabelecimento onde se encontra o preso”. Tal forma de análise, possibilita que a permissão aconteça de maneira, mais rápida, a fim de evitar os trâmites judiciais e, assim, conseguir que a pessoa possa ter acesso efetivo à saúde ou ter respeitado o direito de despedir-se de algum familiar que faleceu.

Apesar dos escassos materiais sobre o estudo, talvez em função da clareza da letra da lei, além dos manuais de Execução Penal, há alguns artigos sobre o tema. Exemplo disso é o posicionamento do autor Douglas Bonaldi Maranhão, para quem “a permissão de saída do estabelecimento prisional, em determinadas situações, demonstra uma perspectiva humanizada no desenvolvimento do encarceramento, respeitando-se, assim, a dignidade da pessoa humana”[1]

Trata-se, portanto, de uma autorização de viés humanitário que visa, sobretudo, respeitar à dignidade da pessoa humana daqueles que se encontram no cárcere. Preciso reforçar (e a cada dia isso se torna mais necessário) que, legalmente, os únicos direitos que a pessoa encarcerada estaria fadada a perder são o direito à liberdade e, nos casos de condenação transitada em julgado, os direitos políticos. Mesmo assim, temporariamente e dentro dos limites da pena imposta.

Não há, então, vedação de convivência familiar, sobretudo nos momentos de luto. Pelo contrário, o que há é autorização expressa, a qual foi reforçada através do princípio fundamental da dignidade humana, previsto no art. 1º, inciso III da Constituição da República de 1988.

Contudo, esse direito é reiteradamente desrespeitado, seja para a grande massa da população carcerária, seja em casos de pessoas ilustres presas e com condição econômica que possibilite o deslocamento apesar do Estado. Percebe-se, assim, não se tratar exclusivamente da falta de aparatos suficientes para fazer cumprir a lei, mas de mera liberalidade ou da falta de vontade que, por vezes, ganha a roupagem de palavras rebuscadas.

Neste ponto, retoma-se o princípio fundamental apontado acima, para trazer à tona as palavras de Luis Carlos Valois sobre o tema:

O princípio da dignidade humana é anteparo suficiente para que o direito penal não se torne uma cega retribuição, o que pareceria ser o caminho de um direito punitivo sem ideal ou, como queiram, sem uma finalidade científica. Não é necessário, portanto, fazer uso de ideais imprecisos que têm servido duplamente, em favor da dignidade do ser humano e como fundamento para violação desta[2].

Então, ainda que use uma questão humanitária como justificativa para negar o acesso a um direito subjetivo previsto em lei e que se alegue que se trata de uma medida assecuratória para o próprio preso, a decisão que nega a permissão de saída para ir ao velório ou enterro de um parente é inegavelmente inconstitucional. O aparato para o transporte da pessoa em privação de liberdade pode ocorrer de modo semelhante ao que ocorreria no traslado para uma audiência, por exemplo. A urgência, de igual modo, não pode ser uma razão que impeça o direito previsto no art. 120, tendo em vista que a permissão de saída foi criada exatamente para casos de urgência e fragilidade.

 

Aqui, volta-se a citar Valois:

Com todas as suas deficiências e mutilações, a Lei de Execução Penal, se cumprida no que se refere ao respeito do ser humano preso, serviria como ótimo instrumento para uma pena com menos violência. A segurança e a certeza do princípio da legalidade são benefícios que o condenado não conhece.[3] (Grifei)

Ainda que a Constituição da República de 1988 garanta uma interpretação ampla, a fim de que o direito possa ser aplicado se forma a assegurar seu caráter humanitário mesmo nas hipóteses não previstas em lei[4], a insegurança e a inobservância do princípio da legalidade tornam-se evidentes na medida em que nem mesmo a letra clara da lei é observada.

E se não se observam as leis mesmo sob os olhos atentos de grande parte da população brasileira e da mídia, como ocorreu no caso do ex-presidente Lula nesta semana imaginem vocês o que acontece com os marginalizados, os esquecidos, os invisíveis.

Luís Inácio Lula da Silva teve o pedido de permissão de saída para ir ao velório do irmão negado pela magistrada Carolina Moura Lebbos, na noite do dia 29 para o dia 30/01/2019, e também pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. No momento em que já acontecia o enterro, o Ministro Antonio Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal, concedeu o pedido parcialmente. O ex-presidente poderia ver os familiares, mas teria que ser em uma unidade militar e o corpo do irmão de Lula poderia ser levado ao local (o que seria impossível, uma vez que ele já estava prestes a ser enterrado no momento em que foi publicada a decisão). Corpo enterrado, fica a indagação: em um momento de luto, o que há de humanitário em conceder o encontro entre familiares numa base militar? Onde estaria a dignidade neste caso?

Sendo assim, as grades presentes nas celas não são as únicas que pesam sobre os encarcerados. O descaso, o sentimento improdutivo de vingança, a inobservância das leis e garantias, a aplicação de toda a sorte de sanções sem assegurar os direitos, o afastamento do convívio com a família e a perda da dignidade prendem de uma forma muito mais cruel e duradoura que as barras de ferro.

Não basta reconhecer que o sistema carcerário configura um estado de coisas inconstitucional. Atestar a realidade do problema que está posto há anos não faz com que a situação mude de figura. É preciso caminhar na direção contrária, reduzir cada vez mais o número de pessoas presas, assegurar, ao menos, o cumprimento da lei e começar a construir um sistema diferente do sistema penal, tendo em vista que este já nasceu fadado ao fracasso e apenas funciona como máquina de sofrimento.

 

 

Notas e Referências

[1]MARANHÃO, Douglas Bonaldi. Permissão de saída e saída temporária: institutos diversos, necessários à execução penal e desacreditados pela sociedade In Revista de Ciências Penais, 2012, p 359.
 

[2]VALOIS, Luis Carlos. Processo de Execução Penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019, p. 53.
 

[3]Ibdem, p. 54.
 

[4]ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal – teoria crítica. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
 

 

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