Quando um tapinha dói: Sobre violências física contra crianças e adolescentes

01/06/2015

Por Maíra Marchi - 01/06/2015

E eu que tenho medo até do seu olhar / Mas o ódio cega e você não percebe (...) / A lembrança do silêncio daquelas tardes (...) / A vergonha do espelho naquelas marcas (...) / Havia algo de insano naqueles olhos / Olhos insanos / Os olhos que passavam o dia a me vigiar (...) / E eu que tinha apenas 17 anos  / Baixava a minha cabeça para tudo / Era assim que as coisas aconteciam / Era assim que eu via tudo acontecer

Camila, Camila. Compositor: Thedy Correa

O presente escrito objetiva discorrer sobre a violência física contra crianças e adolescentes; ou, mais precisamente, questionar a possibilidade de que tais sujeitos sejam educados e cuidados por meio de castigos físicos.  Ou, ainda em outros termos, sobre a possibilidade de que algum castigo seja benéfico a este público.

Os argumentos dos que defendem o uso de “correções” (e outros nomes politicamente corretos) contra crianças e adolescentes [e aqui a ideia de “correção contra alguém” não foi utilizada ingenuamente] é tanto comum quanto leiga e, talvez, religiosa. Senão, revejamo-las:

  • “se não se aprende com o amor, aprende-se com a dor”.
  • “é melhor apanhar em casa agora que da vida depois”.
  • “é a única linguagem que ele [criança ou adolescente] entende”.
  • “apanhei e não sou um delinquente. Aliás, agradeço a quem me bateu porque sou o que sou graças a isso!”.
  • “meu pai só precisava me olhar que eu já obedecia!”.

Não encontro outra maneira de iniciar, a não ser propondo que os que são adeptos da covardia pelo menos deixem de ser hipócritas, e admitam que o que buscam, ao castigarem fisicamente crianças e adolescentes, é a própria satisfação. E não, como acreditam (?) e querem fazer acreditar, um bem à criança ou adolescente. Talvez lhes seja dignificante admitir que o bem que buscam é o próprio[1].

Quanto a este “próprio bem” que se busca ao violentar fisicamente crianças e adolescentes, a melhor hipótese ainda é a de que se bate em crianças e adolescentes quando se está cansado, irritado, porque se está numa fase difícil, etc. Porém, ao escutarmos os autores destes atos, bem como a sociedade civil (organizada ou não) que apresenta alegações como as elencadas acima, evidencia-se que se bate em outras circunstâncias. Sem saída, recaímos na temerária ideia de que o violentador premedita e dosa sua violência.

Para nos auxiliar nesta reflexão, pode-se retomar a compreensão de Costa (1986) de que aquele que se apropria da técnica da violência, tornando-a sua escrava, é um impostor. A maestria do impostor é tamanha, que chega a desassociar violência e exibição. Assim, a exploração que ele faz da força é tanto visível quanto ruidosa, exibindo o que fascina e ocultando o que é desprezível. Os atributos de poder explorados pelo impostor são aqueles socialmente reconhecidos, e é precisamente manipulando honra e prestígio social que ele sujeita o ambiente a seus desejos e intenções.

No caso da violência física contra crianças e adolescentes, seus autores propagam-se como “educadores”, “responsáveis”, “limitadores”, “firmes”, “fortes”, numa clara deturpação do que seja educação, responsabilidade, inscrição de limites, referência, estabilidade, e outras noções sobre as quais aqui se poderia discorrer. Uma deturpação que não é só do violentador, mas de uma sociedade que não tem hora ou lugar para entoar o mantra da violência (sempre do outro, é lógico). Não é de se admirar, portanto, as violências, incluindo-se ameaças, que se presencia em shoppings e supermercados. Ali, elas podem ser vistas. E, portanto, por alguns admiradas.

Não se pode desconsiderar também que o prestígio social e honra do tipo específico de impostor que violenta crianças e adolescentes talvez seja ainda maior, considerando que, na sociedade moderna ocidental, tutelar crianças e adolescentes é compreendido como um sacrifício, uma benesse, um dom, ou, no mínimo, um cumprimento de uma das missões[2] humanas na Terra: cuidar de crianças[3].

Para tal discussão, parto da exposição de Ariès (1981) sobre o lugar da criança em nossa sociedade, que adquiriu o estatuto de um ser diferenciado dos adultos (a quem se deveria proteger e de quem se deveria aguardar o desenvolvimento da condição de cumprir exigências) por volta dos séculos XVII e XVIII. E, também, da análise de Calligaris (2000) sobre o surgimento do “adolescente”, no período entre guerras.

O segundo autor, quando discute sobre adolescência, explicita melhor a função velada, inclusive oposta à propagada, que muitas vezes fundamenta alguns discursos que se dizem “protetores”. Calligaris (2000), analisando os obstáculos encontrados pelo sujeito para vivenciar o período da adolescência na contemporaneidade ocidental, aponta um paradoxo: convidar o sujeito adolescente a compartilhar um dos pilares fundamentais da sociedade contemporânea ocidental, o culto à independência, e, ao mesmo tempo, impedi-los de ser, de fato, “mais um” dentre os adultos.

Tal “moratória” – esse tempo de espera em que, mesmo de posse de todas as condições físicas de um adulto, o adolescente deve aguardar a legitimação de sua independência – seria mais penosa que a dor própria dessa etapa, já que o intervalo entre a maturação biológica e a independência seria demasiado extenso na sociedade moderna, na qual a independência é alienada ao capital.

A mensagem dúbia na qual “o adulto é o ideal que os adolescentes devem perseguir”, e ao mesmo tempo “os adolescentes não podem ser adultos”, talvez seja mais bem compreendida a partir de outro aspecto da sociedade contemporânea ocidental: a noção do que seja “adultez”. Calligaris (2000) descreve o “adulto”, aqui e agora, como o desejável e o invejável para o adolescente, a despeito da precária, inexistente ou restrita demarcação social do que seja tal estatuto.

O reconhecimento pelo sujeito dos próprios desejos sexuais faz com que, na puberdade, se torne potencial competidor para os adultos, tanto em termos de sedução, quanto de enfrentamento. De qualquer forma, a puberdade só se torna problemática (e daí constituir-se no que chamamos “adolescência”) quando o olhar adulto não legitima tal transformação como uma passagem à adultez. Mais especificamente, quando só se legitima como “independente” quem detém bens.

A precária ou inexistente demarcação social do que venha a ser um adulto (porque as alterações do corpo não mais são suficientes) é problemática para o adolescente, cuja fase de desenvolvimento se caracteriza, dentre outras questões, justamente pela reformulação da resposta a um enigma fundamentalmente estruturante: “o que o outro quer de mim?”. Em outros termos: “onde me situo no desejo do outro?”. Ora, o que ele encontra como resposta parece ser apenas a certeza de que seu corpo não é desejado. Portanto, uma resposta que o exclui pela via do corpo.

Talvez a violência física contra adolescentes possa ser lida como uma das formas com que se rechaça o corpo adolescente, precisamente naquilo que o aproxima do adulto. Não se pode deixar de ilustrar esta ideia com a tão comum alegação de que a violência contra adolescentes não é danosa porque ele é tão (ou mais) grande e forte que o adulto, numa clara redução das noções de simetria e vulnerabilidade à biologia.

É possível ainda pensar, considerando que a inveja é o que fundamenta destruições em relações especulares, que a violência física contra adolescentes é uma manifestação de inveja. Nesta direção, cabe dizer que o adolescente parece ter acesso a alguns do direitos dos adultos, mas dele ainda não se poderia exigir o respeito a alguns deveres. Para Calligaris (2000), aliás, algumas dificuldades na passagem pela adolescência decorrem do ideal dos adultos pós-modernos ocidentais de serem adolescentes. A partir de uma revisão histórica do tratamento despendido às crianças na modernidade e do próprio surgimento da noção de adolescente, ele explica que o prolongamento da infância é efeito da responsabilização que nela se projetou pelo alcance de um sucesso faltante aos adultos.

Nesta mesma linha, haveria ambiguidade no tratamento despendido ao adolescente: a eles não se delegariam obrigações e responsabilidades (no intuito de manter a ilusão da infância feliz, inocente e protegida), mas deles se esperariam as mesmas exigências e voracidades dos adultos, já que seus prazeres também passam pelo sexo e pelo dinheiro. Esta ambiguidade resultaria da felicidade que adultos gostariam de ter aqui e agora.

Dito de outra maneira: o adolescente é no Ocidente contemporâneo alvo preferencial das projeções dos desejos ideais de felicidade, inocência e despreocupação, porque, diferentemente das crianças, é um ideal possivelmente identificatório. Eles têm corpos semelhantes aos dos adultos em formas e prazeres “e, ao mesmo tempo, graças à mágica da infância estendida até eles, são ou deveriam ser felizes numa hipotética suspensão das obrigações, das dificuldades e das responsabilidades da vida adulta” (Calligaris, 2000, p.69).

Pode-se então pensar que a dificuldade contemporânea ocidental em permitir ao adolescente desenvolver-se até a adultez é explicada pelo ideal dos adultos de serem adolescentes. De fato a situação do adolescente é de inércia psicossexual, quando lhe é apregoado que mantenha os mesmos desejos que os adultos (sexo e dinheiro) e que seja irresponsável como uma criança. É esta a mensagem com o qual os enfeitiçados adultos o enfeitiçam: “É possível não se responsabilizar pelo próprio desejo. Qualquer que seja. E disso você já sabia”.

Resta ainda retomar neste momento a ideia de ser a independência financeira um valor contemporâneo ocidental, para nos indagar se, essencialmente, não seria a independência do próprio desejo o maior ideal contemporâneo ocidental. Em uma palavra, temos uma sociedade na qual não há crianças nem adultos, porque o adolescente consegue integrar o que é mais idealizado em ambos na pós-modernidade ocidental: o desejo por sexo e dinheiro e a irresponsabilidade pelo próprio desejo.

Cabe sintetizar, neste momento, a proposta construída até o momento: a de que o autor de violência contra crianças e adolescentes é um impostor, porque consegue, com aquilo que exibe (a projeção de ideais contemporâneos e suposta punição daquele que, sendo seu alvo, não os realiza), velar a violência. Uma síntese para que se vá além.

E sigamos, ainda que assustados ao percebermos que se pode articular a impostura ao terrorismo. Montagna (s/d, p.115) define o terrorismo por meio de considerações de âmbito intrapsíquico. Porém, sinaliza que seria possível a transposição de suas reflexões para o âmbito extrapsíquico.

O terror, ansiedade paranoide totalmente paralisadora, é caracterizado pela impossibilidade de se escapar de seu objeto [...]. Na realidade psíquica, pode-se revitalizar um objeto reparatoriamente, se o objeto bom[4] está suficientemente introjetado para isto. Quando não há possibilidade de reparação interna, por inveja destrutiva ou rivalidade edípica, depende-se de um objeto externo, transferencialmente correspondente ao seio materno em níveis infantis. Quando isso é impossível, inclusive por ataques inconscientes, [...] cria-se uma relação de dependência aditiva a partes más do self[5], tidas como oniscientes; ocorre a submissão a uma tirania. Uma ilusão de segurança é dada pela onisciência da parte destrutiva e perpetuada pela sensação de onipotência gerada pela atividade aditiva ou perversa dessa parte. No plano intrapsíquico – certamente podemos estender a consideração aos planos extrapsíquicos, à realidade externa –, o que mantém a submissão às partes más e perversas do self é o pavor da perda, da tirania, do vazio, o terror sem nome (grifos do autor).

Podemos assim entender com o autor, que o sujeito, por não haver introjetado[6] um objeto bom, recorre ao ambiente externo para projetar[7] e conter seus afetos destrutivos. No caso de também não encontrar neste ambiente externo um objeto que seja continente[8] destes afetos (por diversos motivos, inclusive por graves dificuldades psíquicas do próprio sujeito), resta ao sujeito submeter-se às partes tiranas de seu self. Recorrer à tirania seria então compreensível quando ilusoriamente acredita-se que ela privará do vazio.

O que merece ser destacado é a menção deste autor, ainda que rápida, à possibilidade de que no plano extrapsíquico o mecanismo possa ser semelhante. Estaria ele falando da tirania que pode ser proposta por aquele objeto externo a quem se recorre na busca de contenção de afetos negativos? Em caso afirmativo, poder-se-ia pensar que os cuidadores, por exemplo, representam por excelência este ambiente a quem o sujeito projeta seus objetos ruins (mostrando-se como se é, fazendo-se o que se é capaz de fazer, dizendo o que se pode dizer) na esperança de que por ele seja contido?

Sendo assim, se os cuidadores não acolherem que o sujeito pode desejar o seu próprio mal, este ambiente será tirano. Sim...ele pode demandar por meio de ações e palavras uma contenção física, mas a contenção em questão seria feita pelo recebimento, assimilação/processamento/interpretação, e devolução de uma forma suportável pelo self. Uma devolução que o permitisse contactar as partes boas do próprio self. Uma das formas de não acolher esse pedido de ajuda é precisamente atuar. É responder especularmente, devolvendo na mesma moeda, os objetos maus projetados. É dando o que se pede. É aplicando o princípio de Talião.

Grande parte das crianças e adolescentes, quando escutada sobre violência física sofrida por cuidadores, não demonstra sofrimento. Dizem, aliás, que mereceram porque não os obedeceram, porque fizeram “coisa errada”, porque “aprontaram” (coisas que, muito frequentemente, não sabem descrever – talvez porque não sejam deles as vozes que assim adjetivam suas ações -). Não sejamos ingênuos em acreditar nas palavras ao pé da letra. Não sejamos ingênuos de não reconhecer neste tipo de fala pelo menos duas outras violências:

  • a banalização da violência, a ponto de entender que castigo físico pode não ser violento e pode ser educativo;
  • a alienação às concepções do que seja “certo” e “errado”.

A quem puder, sugere-se escutar os motivos alegados pelos cuidadores para violentarem as crianças e adolescentes. Via de regra, são motivos atravessados por exigências que se faria a adultos cujo descumprimento por parte de crianças e adolescentes não se concebe. Via de regra, são motivos atravessados por projeções de seus conflitos psíquicos, ou mesmo algo “mais simples” como irritação com algum imprevisto naquele dia. O que está sempre presente é que, no momento da violência, esqueceu-se que se está ao lado de uma criança ou adolescente. A criança ou adolescente não está presente, mas apenas espelhando os conflitos dos adultos. Logo, é visto como adulto. Aboliu-se as diferenças.

Mais que abolir as diferenças, talvez inclusive se faça em alguns momentos uma inversão. Inversão esta já presente na comparação que adultos fazem com crianças e adolescentes na tentativa de convencerem que foram vítimas (física ou psicologicamente), e que por isto os violentaram. Uma espécie de legítima defesa...

Sobre esta mesma inversão, cabe lembrar que a Lei Maria da Penha vem, oito anos antes, garantir às mulheres o direito de não sofrerem qualquer modalidade de violência física. Já às crianças e adolescentes, isso só foi normatizado com a lei nº 13.010, de 2014, que altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

Atualmente, mulheres que apresentam práticas sexuais masoquistas enfrentam o risco de serem denunciadas à Polícia como vítimas (sim...é isso, já que só poderão recusar a condição de vítima no Fórum). Assim como as que sofrem violência, mas nem por isto desejam a judicialização desta sua condição. Algumas sequer querem uma solução. E têm esse direito (não é?). Não se poderia privar o direito de alguém, com o argumento de que assim talvez se previna que outros venham a ter privados seus direitos. Mas com as mulheres tem se feito isso!

Quando não desejam denunciar, ou não desejam sequer romper a relação, pressupõe-se que estão sendo ameaçadas, ou que não possuem condições financeiras para tanto. Mesmo quando se concebe que não o queiram por questões psicológicas, há uma certa ortopedia moral. Em outros termos: uma pré-concepção do que seja o melhor a todos. Sim, há algumas que poderiam, com ajuda profissional (policial, de assistência social, psicológica), optar pelo rompimento da relação e até pela judicialização da violência. No entanto, é questionável isso se dar no campo da obrigatoriedade, e mesmo da expectativa por parte dos profissionais que as atendem.

Tem havido uma concepção generalizada e infantilizadora do que sejam as mulheres (especialmente, sua sexualidade), poderíamos dizer. Já as crianças e adolescentes, ainda enfrentam a barreira de se convencerem de que “coisa errada” nem sempre é “coisa ruim”.

A legislação, que elogio apesar de não acreditar que a criminalização seja o caminho (pelo menos, o de início) pelo qual se chega a uma diminuição de violência, talvez só precise de um adendo: conceber que o castigo físico pode deixar marcas psicológicas, e que tais marcas inclusive podem ser as mais lesivas[9]. Adultos não podem pensar, como pensam algumas crianças e adolescentes, que dizem apontando para seus corpos “apanhei, mas não saiu sangue. Nem fiquei com marcas...”. Ou se pode esquecer que há quem saiba bater sem deixar marcas? Ou a materialidade, que não é exigida como único indício no caso das vítimas mulheres de violência física, é exigida no caso das crianças e adolescentes?

Por fim, não se pode deixar de destacar a raiva que se tem ao adulto que violenta sexualmente crianças e adolescentes, ao lado da leniência com que se trata o adulto que violenta fisicamente crianças e adolescentes. Após reafirmar (necessário?) que não sou partidária de violência sexual contra crianças e adolescentes, gostaria apenas de indagar se este descompasso não seria mais uma manifestação de uma cultura que tanto reprime o amor para talvez não reprimir o ódio. Alguns são tidos como doentes, desumanos ou monstros, e, ao mesmo tempo, outros como idolatráveis, humanos, e até normais...

O amor tem seus desatinos, e a violência sexual contra crianças e adolescentes e a manutenção por mulheres de relações em que são violentadas talvez sejam alguns de seus exemplos. No entanto, talvez mesmo ali se trate de amor. Evidentemente, para isso se conceber é necessário o abandono da hegemonia de uma concepção romântica de amor. O que espero destacar neste momento, entretanto, é a importância de não romantizarmos o ódio, a ponto de torná-lo necessariamente um bem. Nem amor nem ódio são, em si, um bem. Mas parece que não se concebe que, na vida terrena, o amor pode ser um mal, e, ao mesmo tempo, é-se facilmente capaz de pensar o ódio como um bem. Alguns saem do paraíso, mas deles o paraíso não sai. Afinal, são a morada de deus.

Compreende-se que uma educação que se fundamente num olhar cuja presença é tão onisciente a ponto de substituir ouvidos é paranóide. Uma educação que se pretende um fim tão supremo a ponto de equiparar, como meios para ela se alcançar, amor e ódio, é talvez justamente o que inscreve, como linguagem, o ato. Assim, torna-se árdua a inscrição da noção de limite de outra maneira que não pela via da contenção. Bate-se agora, por meio da prevenção de um suposto bater que a vida traria no futuro, soa no mínimo contraditório: “causo-lhe mal para que não venha a sofrer mal!”.

Alguns violentados dizem-se não traumatizados e até melhorados a partir da violência física sofrida quando crianças. Pois bem...talvez se poderiam questionar se apenas não foram eficazes em sua elaboração psíquica do que lhes ocorreu, ou mesmo que talvez neguem seu sofrimento. De qualquer modo, pode-se dizê-los que não podem afirmar se a vida não lhes teria sido (ou venha a ser) melhor caso não tivessem passado por violência física. De fato a violência sofrida não é necessariamente o fim de uma vida, mas ela não precisa ser seu começo. Não são todos cuja história inicia com a represália da expulsão do paraíso! Até porque não são todos que consideram a vida tão inferior a um paraíso que entendam cabível a penitência da dor. Não são todos que precisam da privação para se considerarem dignos de existir.


Notas e Referências:

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

CALLIGARIS, C. A adolescência. São Paulo, SP: Publifolha, 2000. (Folha explica)

COSTA, Jurandir Freire. Violência e psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

LAPLANCHE, Jean; Pontalis, Jean-Bertrand. Vocabulário de psicanálise. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MONTAGNA, Plínio. Violência, psicanálise e interdisciplinariedade. In: KHOURI, Magda Guimarães; PASTORE, Jassanan Amoroso D.; SUCAR, Inês Zulema; AJZENBERG, Raquel Plut; MORANO FILHO, Reinaldo. Leituras psicanalíticas da violência. São Paulo: Casa do Psicólogo, s/d. p.101-118.

[1] O passo além (questionar sobre a ideia de que a violência seja um bem ao violentador) deixemos para alguns dos que chegarem lá.

[2] A ideia de que temos uma “missão na Terra” é obviamente de fundo religioso. Agnósticos crêem que nasceram porque duas pessoas mantiveram relação sexual, e que o propósito da vida nunca está dado. E que, aliás, talvez a vida seja justamente a busca, por parte do próprio sujeito, de um sentido para a existência. Busca que, para se manter, sempre precisa ser frustrada.

[3] Vide, nesta direção, o rechaço sofrido por aqueles que optam por não terem nenhuma criança sob seus cuidados; particularmente, que não desejam filhos.

[4] Conceito provindo da psicanálise kleiniana, referido por vários outros representantes da psicanálise inglesa, incluindo-se Donald Winnicott. Refere-se ao que denominam “posição esquizo-paranóide”: um estágio primitivo de funcionamento psíquico. Aqui se precisa lembrar que a psicanálise inglesa considera, acompanhando Freud, o inconsciente como atemporal. Logo, que se retorna a processos psíquicos próprios de fases anteriores do desenvolvimento, que se fixa em alguns aspectos próprios de uma fase anterior, etc.

Na posição esquizo-paranóide, o sujeito vivencia uma cisão tanto externa (daí as noções de “objeto bom” e “objeto ruim”), como interna (daí as noções de “self bom” e “self ruim”). Na posição depressiva, que se caracterizaria por mecanismos psíquicos mais evoluídos, haveria uma integração tanto do objeto como do eu.

[5] A psicanálise inglesa utiliza o conceito de “self”, que poderia ser compreendida como a totalidade da mente humana, abarcando-se as instâncias psíquicas. Tal expressão também é utilizada por Jung, mas com outro sentido.

[6] A psicanálise inglesa destaca fortemente os mecanismos de projeção e introjeção; particularmente ao discorrer sobre funcionamento primitivo do psiquismo (próprios da posição esquizo-paranóide). No entanto, Freud também utiliza o conceito de “projeção”, cuja definição não é em si contraposta ao uso feito pelos seguidores de Melanie Klein. Para o fundador da psicanálise, seria um processo no qual o “sujeito faz passar, de um modo fantasístico, de “fora” para “dentro”, objetos e qualidades inerentes a esses objetos.

A introjeção aproxima-se da incorporação, que constitui o seu protótipo corporal, mas não implica necessariamente uma referência ao limite corporal (introjeção no ego, no ideal do ego, etc.).

Está estreitamente relacionada com a identificação” (Laplanche; Pontalis, 1998, p.248).

[7] As mesmas observações feitas acima podem ser aplicadas ao conceito de “projeção”, que no sentido psicanalítico freudiano pode ser definido como a “operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro – pessoa ou coisa – qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele desconhece ou recusa nele. Trata-se aqui de uma defesa de origem muito arcaica, que vamos encontrar em ação particularmente na paranóia, mas também em modos de pensar ‘normais’, como a superstição” (Laplanche; Pontalis, 1998, p.248)

[8] Com tal expressão, a psicanálise inglesa refere-se a uma possível função que o exterior (numa terminologia mais própria, o ambiente) pode ter para o sujeito. Quando continente, o ambiente auxilia o desenvolvimento psíquico, porque suporta os ataques próprios as partes más do self (logo, permite que o sujeito não dirija apenas a si próprio o ódio), mostra-se não destruído pelo sujeito (portanto, contribui para que ele não desenvolva sentimentos de culpa num momento – posição esquizo-paranóide - em que os destruiria). Além disto, o continente recebe as partes boas do self, e as devolve ao sujeito. É assim que o sujeito acredita em sua capacidade de transformação da realidade, e desenvolve uma independência do ambiente.

[9] O Art.18-A, par. Único, do ECA passa a definir castigo físico como sendo “ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:

a) sofrimento físico; ou

b) lesão;


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                


Imagem Ilustrativa do Post: CL Society 126: Child in arms // Foto de: Francisco Osorio // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/francisco_osorio/6153892291/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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