Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Não é segredo que o tempo e a evolução tecnológica trouxeram implicações no comportamento das pessoas no meio social. Mas quando essas alterações transformaram um direito fundamental intimamente ligado à dignidade humana, a privacidade, em um produto?
Sabemos que o conceito de privacidade como direito patrimonial, ou seja, como propriedade do indivíduo fora superado pelo reconhecimento de que a privacidade possui natureza de direito da personalidade. No transcorrer do século XX se observou a constitucionalização e valorização da pessoa humana e da dignidade da pessoa humana, tendo o Brasil internalizado estes conceitos na Constituição de 1988.
A dignidade da pessoa humana é a fonte primária que apresenta as diretrizes do ordenamento jurídico dos Estados de Direito e no Brasil representa um dos fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito.
O Direito à intimidade está relacionado aos fatos de domínio privativo da pessoa, os quais ele não deseja comunicar com ninguém, devendo ser mantidos em sigilo. As situações de cunho particular, aptas, ou não, a trazer embaraços e danos à boa fama do sujeito são tuteladas pelo direito à intimidade. São, nas palavras do professor Paulo Lôbo[1], os segredos que se lava para o caixão.
Porém a noção tradicional de privacidade, restrita a intimidade e ao direito de ser deixado só, não é mais compatível com a complexidade dos desafios inerentes à economia movida à dados e vigilância. Não é possível imaginar, por exemplo, que o problema da circulação de dados e informações pessoais possa ser solucionado a partir das noções correntes sobre privacidade.[2]
Nesse sentido, alguns números podem ser capazes de ilustrar esta afirmação. Segundo relatório de consultoria da Frost & Sullivan[3] o mercado de big data e analytics (BDA) movimentou em 2016 US$ 2,48 bilhões na América Latina, liderados por Brasil e México. O Brasil foi o responsável por 46,8% do mercado, gerando uma receita de US$ 1,16 bilhão. A estimativa é que a América Latina, em 2022 seja responsável por uma receita de US$ 7,41 bilhões e US$ 8,5 bilhões até 2023[4].
No Brasil, a expectativa é de movimentação de cerca de US$ 4,2 bilhões segundo estudo da ABES (Associação Brasileira de Empresas de Software) em pareceria com o IDC (International Data Corporation).[5]
Sites de relacionamento, compras online, pornografia, sites de redes sociais, não há dúvida quanto ao crescimento do número de usuários da internet e de redes sociais. No Brasil, estão dentre as redes sociais mais relevantes são Youtube, Facebook, WhatsApp e Instagram, redes sociais que concentram a maior parte dos usuários deste serviço.[6]
Em paralelo a isso, há uma crescente e necessária preocupação em relação à tutela da privacidade. Ideia que em si não é nova, mas começou a se fazer notar pelo ordenamento jurídico somente no final do século XIX.
Esse crescente uso da internet e o desenvolvimento de tecnologias cada vez mais sofisticadas para captação e tratamento de dados, da maior aplicação da inteligência artificial, inclusive para resolução de processos judiciais[7], e da ampliação da capacidade de armazenamento de informações, publicidade dirigida a partir da coleta de dados pessoais, mostrou ser urgente a edição e a utilização de normas para tratar de maneira mais específica as questões enfrentadas no que toca à privacidade e aos dados pessoais.
Nesse contexto, é preciso entender que ao realizar uma compra na internet, ou aceitar as condições de gerais de contratação de uma rede social qualquer, ao inserir os dados do cartão de crédito ou o CPF em um site ou aplicativo de dispositivo online está-se fornecendo ao administrador daquele sistema um acesso quase que ilimitado a informações e dados – inclusive aqueles que a LGPD define como sensíveis.
Os dados captados por meio destes aplicativos de redes sociais, por exemplo, são disponibilizados ao mercado em forma de mercadoria sem que haja o conhecimento e a consciência pela maior parte dos usuários que são muitas vezes atraídos pela “gratuidade” destes serviços.
Quando o indivíduo faz suas compras, online ou offline, por meio do cartão de crédito, ele está fornecendo dados capazes de formar um padrão, um perfil. Estes dados podem ser utilizados, por exemplo, para avaliar o risco quanto a contratação de seguro saúde. Um indivíduo que faz muitas compras em lanchonetes fastfood tem um risco mais elevado de ter problemas de saúde do que aquele indivíduo que faz compras em lojas de material esportivo e que não tem sua alimentação baseada em fastfood.
Percebe-se que a quebra da privacidade, que por si já seria reprovável, ainda expõe o indivíduo aos riscos do mercado, o que parece inverter a lógica de que o risco da atividade econômica é do fornecedor, não do consumidor.
Estas situações parecem retirar do direito à privacidade a sua fundamentalidade, transformando-o em mero produto, disponível para ser oferecido e comercializado. Tanto assim o é que em 2019 a Apple lançou um comercial do Iphone[8] em que a demanda por privacidade é evidenciada. No vídeo é atribuído ao smartphone a característica de proteger a infinita quantidade de dados pessoais que são inseridos no aparelho a todo instante: “Privacidade, isso é Iphone”.
Nesse mesmo sentido, uma pesquisa realizada pela FEBRABAN indicou que 96% dos consumidores brasileiros estão em busca da maior privacidade em relação às organizações das quais são clientes.[9] Além disso, reportagens[10] sobre o crescimento da demanda por privacidade e especialistas em privacidade são cada vez mais frequentes.[11]
Não existe mais a possibilidade de se permanecer inerte às diversas mudanças que os avanços da tecnologia e principalmente das bases de dados que estão fomentando na sociedade. Essas mudanças atingem diretamente diversos direitos fundamentais dos consumidores e para que isso não ocorra de forma indiscriminada é preciso seja discutida a formulação de uma regulamentação clara e eficiente, sob pena de se estar efetuando a compra de um produto que é garantido a todos como um Direito Fundamental.
Notas e Referências
[1] LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte gral. 8 ed. São Paulo: saraiva, 2019.
[2] FRAZÃO, Ana. Fundamentos da proteção dos dados pessoais – Noções introdutórias para a compreensão da importância da Lei Geral de Proteção de Dados. In FRAZÃO, Ana; TEPENDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato; Lei Geral De Proteção De Dados Pessoas E Suas Repercussões No Direito Brasileiro. Ed 1, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
[3] Disponível em https://computerworld.com.br/2017/03/21/mercado-brasileiro-de-big-data-e-analytics-fatura-us-116-bi-e-ja-representa-quase-50-da-al/ [acesso em 16/03/2020].
[4] Disponível em https://www.equals.com.br/big-data-setor-financeiro/ [acesso em 16/03/2020]
[5] Disponível em https://www.equals.com.br/big-data-setor-financeiro/ [acesso em 16/03/2020]
[6] Disponível em https://rockcontent.com/blog/redes-sociais-mais-usadas-no-brasil/ [acesso em 16/03/2020]
[7] O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul faz uso de programa de inteligência artificial para análise de documentos e resolução mais rápida de processos de execução fiscal como recentemente noticiado no site do próprio Tribunal, disponível em: http://www.tjrs.jus.br/site/imprensa/noticias/?idNoticia=488535 [acesso em 16/03/2020]
[8]https://www.youtube.com/watch?v=qQc2P1UeMf4&mnid=sCDX5x2Wt-dc_mtid_209258i342853_pcrid_411027646259_pgrid_70696249338_&cid=wwa-br-kwgo-iphone-slid-&mtid=209258i342853&aosid=p238&anonymizeip=set
[9] https://noomis.febraban.org.br/especialista/noomisblog/consumidor-quer-mais-controle-em-seus-dados
[10] https://dataprivacy.com.br/como-ser-um-profissional-certificado-em-privacidade-e-protecao-de-dados/
[11] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/09/cresce-demanda-por-especialistas-em-privacidade.shtml
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