Por Daniela Rosendo e Susimara Weschenfelder - 19/04/2015
Nascer na Tanzânia, muitas vezes em condições miseráveis, já é um desafio para a existência e o desenvolvimento de qualquer ser humano. Agora, imagine essa situação sendo vivenciada por pessoas com albinismo, estando vulneráveis ao abandono pela família e, ao mesmo tempo, a perseguição por serem “negros brancos”. De forma recorrente, desafiamos o racismo que tanto oprime e mantém o privilégio das pessoas brancas em relação às negras. Entretanto, agora estamos diante de uma situação na qual ser “branco” está longe de ser um privilégio.
A liberdade de crença pode ser limitada? Como lidar com diferentes culturas? Em que medida o Estado e os organismos internacionais podem/devem intervir? Essas e outras questões podem ser suscitadas com a situação na qual vivem pessoas com albinismo[1], as quais sofrem discriminação por toda parte, mas, especialmente na Tanzânia, estão mais vulneráveis em razão de a população acreditar que elas possuem forças mágicas. As partes dos corpos dos albinos têm grande valor para curandeiros, pescadores que os tecem em suas redes, políticos ou empresários que os usam como amuleto, acreditando trazer sorte nos negócios e nas eleições, ou pessoas com HIV que acreditam que ter relação sexual com uma pessoa albina trará a cura.[2]
Na Tanzânia, as pessoas com albinismo vivem um paradoxo: ao mesmo tempo em que são conhecidas como “filhas do mal” e são abandonadas pela família, por acreditarem que ter um albino em casa é uma maldição e atrai má sorte, elas são perseguidas e mutiladas pela população que acredita que parte de seu corpo é um amuleto. Nascer albino, especialmente na África, é lutar pela sobrevivência desde o nascimento. Hasan Hasimi, refugiado albino, conta sua experiência na reportagem especial Los Blancos Negros:
Quando nasci, os membros da minha comunidade aconselharam minha mãe a me envenenar, nascer albino na Tanzânia significa estar condenado a sofrer [...]. Quando fui para a escola comecei a ter problemas, meus colegas tinham medo de mim, medo de me tocarem, achavam que se me tocassem começariam a sangrar ou desapareceriam [...]. Muita gente não sabe o que é albinismo, pensam que sou um fantasma e as vezes acreditam que somos menos humanos.[3]
A maioria das caçadas é estimulada pelos curandeiros/feiticeiros, que possuem muito prestígio no país sendo, inclusive, mais temidos e respeitados que a própria polícia, o que leva ao silêncio da população. Por esse motivo, o governo da Tanzânia, em 2009, propôs que a população escrevesse, de forma anônima, os nomes dos assassinos e mutiladores e os entregassem à polícia. O resultado foi algumas prisões.
De acordo com a ONU, a Tanzânia tem cerca de 200 mil albinos e é o país com maior número de ataques contra eles. Em seguida, essas pessoas são mais perseguidas em Burundi, Quênia, República Democrática do Congo, Swazilândia, África do Sul e Moçambique.
Pelo menos 15 albinos foram feridos ou mortos nos últimos 6 meses na Tanzânia, segundo informação da nota publicada no dia 10 de março, em Genebra, pelo alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Al Hussein.
Entre os ataques, está o de um bebê, Yohana Bahati, de um ano, que foi encontrado morto e sem os membros no norte do país. Zeid Al Hussein destacou que o fato ocorreu justamente nos dias próximos das eleições gerais, sendo, possivelmente, uma encomenda de algum político. Justamente por ser um ano de eleições na Tanzânia, as preocupações dos especialistas têm aumentado.[4]
Segundo informações do Escritório de Direitos Humanos da ONU, desde 2000 foram registradas 151 mortes, não estando computadas, no entanto, as mutilações. Alerta-se, ainda, que muitos ataques não são registrados.[5] Mesmo após a morte, os corpos dos albinos continuam sendo alvo de mutilação. É comum a família, que não abandou seu filho albino, enterrá-lo dentro de casa para não sofrer violação.
Além de estarem sujeitas ao abandono pela família, à rejeição social, à mutilação, serem consideradas fantasmas, estarem confinadas à pobreza etc., as pessoas albinas ainda precisam enfrentar problemas de saúde, como a deficiência da visão que pode chegar à cegueira.[6]São prejudicadas também pela exposição à radiação solar, acarretando diversas patologias, inclusive lesões malignas.[7] Estima-se que 80% dos albinos na Tanzânia não cheguem aos 30 anos.[8]
Diante desse cenário de discriminação e perseguição, a ONU tem se posicionado a favor da prevenção dos ataques e da adoção de medidas específicas para preservar o direito à vida e à seguridade das pessoas com albinismo, além de não serem sujeitadas à tortura e ao mau tratamento. Nesse sentido, a Resolução adotada pela Assembleia Geral em 18 de dezembro de 2014, proclamou, a partir de 2015, o dia 13 de junho como Dia internacional de sensibilização sobre o albinismo.[9]
Embora a conscientização seja importante e esteja no campo de abrangência dos sistemas de proteção dos direitos humanos, no qual se insere a ONU, a atuação política tem se mostrado limitada na efetivação desses compromissos com os quais se compromete. É preciso pontuar tanto o aspecto cultural quanto o exercício de poder envolvidos nessa prática. Isso denota uma tensão entre a cultura que se expressa pelas crenças e os direitos de cada indivíduo que, sem escolha, está inserido nesse contexto.
Considerando que os direitos humanos se fundamentam a partir da dignidade da pessoa humana, além do caráter individual que lhes é atribuído, a perseguição, mutilação e morte de pessoas albinas é uma violação dos direitos humanos, que não pode ser justificada por uma crença. Desse ponto de vista, curandeiros têm sido repudiados pelo próprio Estado, que tem criminalizado a prática da bruxaria que mutila e mata pessoas albinas.[10] Entretanto, um raciocínio simples de que a criminalização ocorre quando o fato já aconteceu e que a sanção, como inibidora do ato, falha quando conflita com a crença, percebemos que ela não é solução.
Notas e Referências:
[1] “O albinismo consiste de um conjunto heterogêneo de distúrbios genéticos na síntese de melanina que podem levar à hipopigmentação da pele, dos pêlos, cabelo e olhos. Essa condição resulta de alterações em um ciclo complexo de reações metabólicas que causam redução ou ausência congênita da produção de melanina.” MOREIRA, Lília Maria de Azevedo et al. Perfil do albinismo oculocutâneo no estado da Bahia. Revista de Ciências Médicas e Biológicas. Salvador, v. 6, n. 1, p. 69-75, jan./abr. 2007, p. 69.
[2] Disponível em: <http://www.helpafricanalbinos.com/pt-pt/uma-realidade-incrivel/> Acesso em: 15 abr. 2015.
[3] Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=mZt8q3ySVN0> Acesso em 15 abr. 2015.
[4] GUEVANE, Eleutério. ONU preocupada com bebé albino de um ano sequestrado na Tanzânia. 18 fev. 2015. Disponível em: <http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2015/02/onu-preocupada-com-bebe-albino-de-um-ano-sequestrado-na-tanzania/#.VQgj2I7F_VU> Acesso em 15 abr. 2015.
[5] LETRA, Leda. Escritório de Direitos Humanos preocupado com albinos na Tanzânia. 5 dez. 2014. Disponível em: <http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2014/12/escritorio-de-direitos-humanos-preocupado-com-mortes-de-albinos-na-tanzania/#.VS7W89zF91Z> Acesso em 15 abr. 2015.
[6] MOREIRA, Lília Maria de Azevedo et al. Perfil do albinismo oculocutâneo no estado da Bahia, p. 69-70.
[7] MOREIRA, Lília Maria de Azevedo et al. Perfil do albinismo oculocutâneo no estado da Bahia, p. 69-70.
[8] Disponível em: <http://www.helpafricanalbinos.com/pt-pt/uma-realidade-incrivel/> Acesso em: 15 abr. 2015.
[9] ONU. Resolution adopted by the General Assembly on 18 December 2014. Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/69/170> Acesso em: 15 abr. 2015.
[10] Tanzânia prende 225 curandeiros que mataram albinos para fazer bruxaria. 12 mar. 2015. Disponível em: <http://odia.ig.com.br/noticia/mundoeciencia/2015-03-12/tanzania-prende-225-curandeiros-que-mataram-albinos-para-fazer-bruxaria.html> Acesso em: 15 abr. 2015.
Imagem Ilustrativa do Post: João Pedro - Albino - 6 meses // Foto de: Felipe Fernandes// Sem alterações