Quando preclui a prova da acusação no processo penal?

04/02/2018

O caso posto em discussão é simples. Denúncia de furto qualificado (arrombamento). O indivíduo, usuário de drogas e morador de rua, durante uma noite chuvosa, passa perto de uma padaria, encontra a porta aberta, entra no local e subtrai alguns produtos do gênero alimentício. Saindo do local, é abordado pela polícia e preso pelo delito de furto. Além disso, no ato de sua prisão, é constatado que a porta do local havia sido violada. Presume-se que foi o detido quem realizou a violação.  É ofertada a denúncia, onde é feita a imputação pela suposta prática do delito tipificado no artigo 155, §4º, I, do Código Penal. Entretanto, ao longo da instrução processual, requisitado o laudo de arrombamento à autoridade competente, essa informa que “não existe laudo para o local informado”, razão pela qual, encerrada a instrução processual, a acusação apresenta alegações finais por memoriais e pede a condenação do acusado com base no caput do artigo 155 do Código Penal. A defesa apresenta suas alegações finais, aduzindo que se tratava de uma questão atípica (“furto famélico”) e os autos seguem conclusos para sentença. 

No entanto, antes da decisão, o referido laudo é colacionado ao processo, de modo que o magistrado converte o feito em diligência: abre-se vistas às partes, de modo que a acusação, utilizando-se do laudo, retifica as alegações finais, pleiteando a condenação com a inclusão da qualificadora. É nesse ponto que se estabelece a discussão aqui proposta. 

O ato realizado é permitido? Estaríamos diante do instituto da mutatio libelli (artigo 384 do Código de Processo Penal)? O magistrado pode proceder assim de ofício? Há violação ao sistema acusatório? Inúmeros são os posicionamentos que podem ser firmados a partir desses questionamentos, rendendo boas discussões – as quais poderiam constar nas preliminares da defesa nas alegações finais desse caso exemplificativo. 

A questão gera controvérsias. Note-se que a juntada do laudo se deu após finda a fase instrutória, quando o próprio Ministério Público havia “desistido” da qualificadora, uma vez inexistir fator probante para tanto. Aliás, o laudo foi juntado ao processo depois de concluída a audiência de instrução e ainda depois de acusação e defesa terem apresentados suas alegações finais. Foi no momento em que o processo já estava concluso para sentença que o laudo foi juntado ao feito. O juiz, de ofício, abriu vista às partes, oportunizando a manifestação sobre o documento, ensejando assim num “voltar atrás” do que já tinha entendido o Ministério Público. Há prejuízo para a defesa ensejando em nulidade? 

Sobre esse ponto em específico, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é de que uma vez aberto vistas às partes, não haveria que se falar em nulidade processual, conforme se observa no julgado exemplificativo: 

RHC. APELAÇÃO EM LIBERDADE. RÉU PRESO DURANTE A INSTRUÇÃO. EFEITO DA CONDENAÇÃO. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. LAUDO PERICIAL JUNTADO APÓS ALEGAÇÕES FINAIS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. RECURSO DESPROVIDO. I. Não se concede o direito ao apelo em liberdade a réu que permaneceu preso durante toda a instrução do processo, em razão de flagrante em delito de entorpecentes, pois a manutenção na prisão passa a se constituir em efeito da respectiva condenação, inobstante eventuais condições pessoais de primariedade e bons antecedentes. II. Informado pelo Julgador monocrático que, após as alegações finais, converteu o processo em diligência para juntada do laudo pericial, dando ciência às partes da prova acrescida, não se reconhece a alegação de nulidade insanável da sentença condenatória, ante a ausência de prejuízo às partes. III. Recurso desprovido. (STJ - RHC: 8722 SP 1999/0052056-4, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 02/09/1999, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 04.10.1999 p. 64)

(grifamos) 

Outro ponto que se levanta é a peculiaridade dessa determinação de vista às partes nessa fase do processo (concluso para sentença) para manifestação. Há quem diga se tratar de uma espécie de mutatio libelli, tal como preconiza o artigo 384 do Código de Processo Penal. Porém, não vemos com acerto em assim considerar esse ato processual, pois não se enquadra na formalidade da mutatio. Nesse sentido, o primeiro ponto que se apresenta é o de que o instituto da mutatio libelli aplicado ao caso em discussão seria questionável. Não se trata de situação em que há a necessidade da acusação realizar o aditamento da denúncia. A denúncia por furto qualificado já havia sido apresentada. A qualificadora estava contida na acusação. Entretanto, no decorrer processual, em virtude da ausência do laudo pericial, a situação fática se tornou mais favorável ao acusado, razão pela qual a própria acusação assim reconheceu e pediu sua condenação com base apenas no caput do artigo 155 do Código Penal. 

Assim prevê o artigo 384 do Código de Processo Penal: “Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias [...]” (destacamos). 

Se há o surgimento do laudo pericial somente após o término da instrução processual, o procedimento adequado seria que o acusador avocasse os autos para que pudesse apresentar novo entendimento, e não que o magistrado determinasse à abertura de vista à acusação para “aditamento da denúncia”. A situação é no mínimo peculiar. Tanto o proceder de ofício pelo magistrado, como a possibilidade de se utilizar elemento probante (prejudicial ao acusado) que foi juntado somente na fase em que o processo estava concluso para sentença, podem ser questionados em sua validade – ensejando em nulidade processual, uma vez que não atendidas as formalidades processuais. 

Corroborando com o posicionamento aqui adotado, no sentido de não se tratar o exemplo em comento de hipótese de mutatio libelli, Pacelli afirma que: 

há casos em que o elemento (ou circunstância) está contido implicitamente na peça acusatória. É o que ocorre, por exemplo, nas desclassificações operadas por alteração feita no elemento subjetivo da conduta (dolo ou culpa). [...] Nesse caso, não há a necessidade de se aplicar a regra do art. 384 do CPP. Basta a desclassificação, chamada própria, porque com modificação da competência.[1] 

Desta forma, entende-se que o ato oficioso realizado pelo magistrado – remessa dos autos para “aditamento” das alegações finais – viola o sistema acusatório. Não cabe ao juiz agir de ofício numa situação como a em comento, principalmente ao se considerar que se trata de proceder in malam partem sofrido pelo acusado. Antes, caberia à acusação pleitear a possibilidade de se manifestar sobre a prova. Não tendo assim procedido, inclusive tendo “desistido” da imputação da qualificadora (ante a ausência de prova para tanto), pugnando, em suas alegações finais, pela condenação do acusado pelo crime na modalidade simples, é com base em tal apontamento que o juiz poderia decidir quando da sentença: ou se acolhe a pretensão acusatória (com base nas circunstâncias processuais ali presentes, ou seja, limitado ao pleito do Ministério Público nas alegações finais) ou a da defesa. 

Ainda sobre esse ponto, cumpre observar que deveria a acusação, no máximo até a fase do artigo 402 do Código de Processo Penal, ter requerido, caso assim pretendesse, que fosse oficiado o órgão competente para que remetesse o laudo ao juízo, a fim de instruir o feito para corroborar com sua imputação realizada na denúncia. Passada tal fase, preclusa está a produção dessa prova, pelo que a juntada do laudo quando do processo concluso para sentença deveria ser desconsiderada. 

Somente assim os critérios principiológicos que erigem o sistema processual penal seriam atendidos adequadamente, pelo que se entende como indevida a conversão do feito em diligência (para manifestação das partes, possibilitando à acusação “incrementar” seu pedido final), de ofício, tal como foi procedido no exemplo ilustrado no presente texto.

 

[1] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005 p. 652

 

Imagem Ilustrativa do Post: Processo Físico // Foto de: Lucas Castor/Agência CNJ // Sem alterações

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