QUANDO DEIXAR DE VOAR TORNA-SE UM PROBLEMA: UMA LIGEIRA REFLEXÃO ACERCA DA NECESSÁRIA PROTEÇÃO DOS CONSUMIDORES DE TRANSPORTE AÉREO EM UM MUNDO MUITO MAIS PREOCUPADO COM SUAS VIAS AÉREAS

20/03/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A vida é cheia de surpresas, prenhe de contradições. É possível pinçar na memória recente o impacto provocado pelo turismo massificado, fato que, no limite, levou cidades[1] a controlar ou a restringir o acesso a alguns dos seus espaços mais disputados. Na antípoda dessa discussão, o cenário global atual faz que viagens pareçam miragens, sonhos oníricos deveras distantes daqueles experimentados na vida cotidiana. O hoje, aquilo que deve ser tratado como hodierno, tem sido descrito como o tempo das quarentenas, de muro reerguidos, de isolamento social e da limitação de direitos fundamentais.

A vida é de fato surpreendente. Quando se pensou que discursos e práticas antidemocráticas e fundamentalistas seriam os temas reinantes – também no Brasil – ao longo de 2020, a pandemia do COVID-19, sem pedir licença, ocupou esse espaço ao assolar o planeta e impactar trabalho e ensino, impulsionar o cancelamento de congressos, feiras e shows, impedir o acesso a espaços que só possuem algum sentido, algum significado socialmente compartilhado, quando são tomados, ocupados por pessoas, isso quando não as empareda em suas casas e apartamentos – ao menos, aquelas que possuem o privilégio de experimentar as possibilidades fenomênicas afetas ao verbo habitar – impactando, obviamente, de algum modo, as vidas de todos.

A crise recentemente estabelecida a partir do crescimento vertiginoso da doença trouxe à superfície outros paradoxos: enquanto tantos viram as costas para a vacina e para a ciência, parece possível afirmar que em nenhum outro momento da História ambas foram tão necessárias. Além disso, se um dia a humanidade sonhou com um mundo sem fronteiras, hodiernamente, infindáveis muros – reais, virtuais e simbólicos – voltaram a ser levantados, quiçá temporariamente, enquanto tentativa estatal e privada de frear a disseminação do vírus e, consequentemente, da pandemia difundida através de quase todo o planeta.

O medo de viajar – tema, de algum modo, fundido à dimensão preventiva dos direitos subjetivos à vida e a saúde –, o cancelamento de eventos como congressos, competições esportivas e espetáculos musicais, o fechamento de teatros, óperas e museus e, ainda, as restrições à circulação e barreiras geosanitárias impostas por diversos países em suas fronteiras, bem como, por incontáveis estados, províncias e cidades na tentativa de conter a assustadora progressão dos índices de contágio do COVID-19 tem afetado, também, os consumidores.

O leque de abordagens teóricas tecido em tal cenário é bastante grande e, também por isso, como antecipado no título que precede estas reflexões, o opúsculo se limitará a estimular algumas reflexões e a antecipar algumas respostas que precisam ser dadas àqueles que, entremeio o caos gerado pela pandemia atual, não poderão voar ou por algum motivo – que possa ser objetivamente sustentado – não veem sentido algum em viajar até o destino outrora planejado.

Antes de seguir adiante, entretanto, é preciso salientar a percepção de incoerência entremeio as sístoles e diástoles estimuladas pelo avanço do COVID-19 e que consiste no fato de que muitos daqueles que ora anseiam por ações estatais que promovam a sua tutela efetiva enquanto consumidores são os mesmos que, há não muitos meses, estavam nas ruas clamando pelo Estado mínimo, ignorando[2] – em alguns casos, propositadamente desprezando – que a participação do Estado nas atividades privadas é imprescindível à efetivação da justiça social, bem como, de tantos outros objetivos constitucionalmente assegurados em qualquer Estado Democrático de Direito.

São precisamente tais promessas que estão em jogo quando emergem situações como as que são agora discutidas neste texto. É de se salientar que, no momento em que ele estava sendo escrito, não foi possível identificar uniformidade na resposta dada pelas companhias aéreas ao clamor dos consumidores, apesar da existência de incontáveis solicitações nos sites dedicados a esse tipo de demanda. Os motivos explicitados nas reclamações vão desde as multas cobradas até a impossibilidade de se contatar os transportadores para verificar as possibilidades ofertadas ante a deflagração do COVID-19.

A crise traz à tona a clássica disputa entre fornecedores e consumidores, cujas forças díspares foram amainadas – ao menos, abstratamente – pelo Código de Defesa do Consumidor em 1990. Não é demais lembrar que isso foi feito diante da necessidade de obedecer ao comando preconizado por uma Constituição Federal que tem na necessária e fundamental proteção dos consumidores um dos freios que modulam o exercício da livre iniciativa, consoante pode ser identificado em seu artigo 170.

A tutela dos consumidores, aliás, está intimamente relacionada ao princípio do equilíbrio material, preceito normativo a ser densificado[3] não apenas quando se tem em mente a equação econômica produzida pelo contrato – em regra, a troca projetada –, mas também quando se espalham sobre a mesa todos os direitos e deveres atinentes a cada uma das partes.

O equilíbrio material está, portanto, intimamente relacionado ao poder negocial daqueles que contratam, impondo pensar que como em contratos como os de consumo há, em regra, o desnivelamento significativo entre as forças de fornecedores e consumidores, a equalização dos pratos da balança da Justiça, notadamente, das diferenças socioeconômicas e dos impactos negociais daí derivados, em relações jurídicas com as de consumo, raramente decorrerá da escolha das partes, precisando, então, ser estimulado, impulsionado por meio da edição e respeito de regras jurídicas injuntivas, de preceitos normativos inexoravelmente cogentes como o são os dispositivos albergados pelo Código de Defesa do Consumidor.

Em um cenário democrático ideal, cabe ao Estado, por meio da legislação, do Judiciário ou de atos do Executivo, o papel de proteger os contratantes vulneráveis. Infelizmente, não é o que ocorre quando se observa o teor da Resolução n.º 400, de 13 de dezembro de 2016, da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC), ao prever em seu artigo 12 a possibilidade – sem qualquer justificativa – de o transportador alterar horário e itinerário das passagens aéreas, desde que informe aos passageiros e, portanto, consumidores, com 72 horas de antecedência, embora, não garanta aos consumidores idêntico direito, o que por si só revela franca e manifesta ofensa à isonomia constitucional.

Ademais, observe-se que, não obstante a imposição normativa de equilíbrio negocial e proteção dos consumidores – e não parece haver qualquer espaço para questionamentos quanto a sua vulnerabilidade frente às companhias aéreas –, as regras quanto à alteração, resilição e (ou) resolução do contrato de transporte aéreo por iniciativa do passageiro não apresentam sequer o mesmo tratamento jurídico formal e abstratamente garantido às companhias aéreas, como se afere na seção III da citada Resolução.

Da Alteração e Resilição do Contrato de Transporte Aéreo por Parte do Passageiro

Art. 9º As multas contratuais não poderão ultrapassar o valor dos serviços de transporte aéreo.

Parágrafo único. As tarifas aeroportuárias pagas pelo passageiro e os valores devidos a entes governamentais não poderão integrar a base de cálculo de eventuais multas.

Art. 10. Em caso de remarcação da passagem aérea, o passageiro deverá pagar ou receber:

I – a variação da tarifa aeroportuária referente ao aeroporto em que ocorrerá o novo embarque, com base no valor que constar na tabela vigente na data em que a passagem aérea for remarcada; e

II – a diferença entre o valor dos serviços de transporte aéreo originalmente pago pelo passageiro e o valor ofertado no ato da remarcação.

Art. 11. O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até́ 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante.

Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque.

As regras retrocitadas permitem inferir a incomensurável iniquidade presente Resolução n.º 400 da ANAC e, nessa mesma esteira, a inconteste contrariedade – hermeneuticamente identificada no cenário atual – ao direito básico do consumidor previsto no artigo 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor que tem por núcleo duro a proteção da vida, da saúde e da segurança dos consumidores contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.

Ainda pensando nos direitos básicos dos consumidores – portanto, naquilo que foi estabelecido como piso dogmático e hermenêutico, como mínimo normativo a ser entregue aos consumidores acolhidos pelo Código de Defesa do Consumidor –, o inciso IV, do mesmo artigo 6º, garante a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços, antecipando, em alguma medida:

  • o artigo 39 da citada lei, que proíbe que se exija do consumidor vantagem manifestamente excessiva, qualificando-a como prática abusiva e, ainda,
  • o artigo 51, V, do mesmo códex, que dispõe serem nulas de pleno direito as cláusulas que estabelecem obrigações iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a equidade.

Assim, o consumidor que deveria ser protegido, acaba sendo aprisionado a um contrato que não pode discutir e que, também por isso, a depender da postura adotada pelo fornecedor, lhe permite pouca ou nenhuma possibilidade dialogada de manejo, a depender da tarifa que pagou, o que permite afirmar, ao menos no que toca a parte recortada para reflexão, a manifesta ilegalidade e, talvez, até mesmo, a inconstitucionalidade da referida Resolução.

No Brasil, porém, foi justamente essa Resolução que embasou a desastrosa e irresponsável Nota Técnica n.º 2/2020/GAB-SENACON/SENACON/MJ do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, endossando a possibilidade de cobrança da multa pelas empresas aéreas ao sustentar que não existe direito de arrependimento por parte do consumidor e que, por razões de segurança jurídica, as regras do Código do Consumidor não poderiam ser aplicados de modo a afastar regras expressas. Raros são os momentos de nossa história recente nos quais uma manifestação oficial esteve tão distante da resposta mais adequada à Constituição.

Mesmo aqueles que são alheios a especificidades normativas perceberão, facilmente, que se as respostas oficiais são equivocadas em um cenário de normalidade, ela toma proporções ainda mais nefastas quando se lida com uma pandemia que atravessa e colore, com incontáveis e inomináveis tons de cinza, cada instante delineador do tempo presente.

Nesse diapasão, empoderado por um direito fundamental e inexoravelmente cogente, o consumidor que havia planejado voar e por alguma motivo não o fez deverá identificar em que quadro – dentre os delineados logo adiante – melhor se encaixa e, a partir daí, buscar exercer os direitos que possui.

Inicialmente, é possível antever o direito à resolução – legítima e sem quaisquer ônus – por parte do consumidor que não mais pretende viajar, tendo em vista em regra, as incontestes situações que podem ser caracterizadas como caso fortuito. Esse direito lhe é garantido em todas as hipóteses nas quais a obrigação do transportador possa ser qualificada como com obrigação com termo essencial, ou seja, em todos os quadros nos quais viajar mais tarde não é uma alternativa, não é uma opção.

Um segundo cenário se desenha quando voar segue sendo interessante, mas, em razão dos impactos provocados pela atual pandemia, é um ato que foi deslocado, impulsionado, forçadamente para o futuro. Ele é emoldurado pelos contornos dogmáticos que dão vida à ideia de impossibilidade temporal ou, simplesmente, atraso não imputável.

O ponto a ser destacado aqui – quando se pensa o desvelar dos próximos capítulos dessas relações negociais – tangencia, (a) além da não-incidência da cláusula penal[4] unilateralmente estipulada nas condições gerais de contratação, como adiantado no parágrafo anterior, ante a ocorrência de um impedimento temporal fortuito, (b) o fato de que o tarifário do mercado de navegação aérea é flutuante e, nesses casos, ao menos aparentemente, havendo diferença de preços entre os voos – o antigo que não mais interessa e o futuro que segue sendo desejado – o consumidor não poderá arcar com ela, tanto porque o risco do negócio é do empreendedor, como diante do critério hermenêutico in dubio pro consumidor.

É possível, ainda, imaginar algumas raras situações nas quais aventa-se um ambiente um pouco menos favorável e que na hipótese fará que as perdas comprovadas pelo transportador aéreo sejam divididas com os consumidores – e que foi dogmaticamente batizado como frustração do fim do contrato. Ele se manifesta, em síntese deveras apertada, quando desaparece a motivação que justificara a contratação.

E não se pode ignorar o fato de que se o voo vier a ser cancelado por iniciativa do transportador – independentemente do motivo – ele deverá reembolsar integralmente cada centavo dispendido na aquisição do bilhete aéreo.

No mais, as recomendações por parte dos governos e organizações internacionais para que se cancelem as viagens, bem como o risco efetivo à saúde dos viajantes também reforçam a argumentação ora alinhavada. Todo aquele que detém o poder econômico e negocial dominante deveria ter adotado essa iniciativa na primeira oportunidade, causando indignação, para dizer o mínimo, que agora arvorem sua linha de argumentação em clausulados comumente iníquos duvidosamente abrigados pelo manto da segurança jurídica, até porque, pelo menos no Direito pátrio, ao lado na necessária e fundamental tutela de nossos consumidores, solidariedade é dever.

Entremeio o império do individualismo, permitam-nos a insistência: a solidariedade[5] é uma das balizas normativas principiológicas de maior destaque na Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse panorama, exigir a manutenção de uma situação de inconteste desequilíbrio entre as prestações assumidas pelas partes, com a cobrança de cláusulas penais abusivas daquele que busca cancelar ou reprogramar um voo – no momento em que o mundo está em pânico e as pessoas nem sempre sabem o que fazer – é conduta que revela que a companhia aérea estará lucrando às custas do outro, lucrando com o desespero que envolve imaginar pôr a si, a sua família ou os seus empregados em risco de morte.

Resta dizer que no exato instante em que as últimas arestas deste texto eram aparadas foi editada a Medida Provisória n.º 925, aos 18 de março de 2020, dispondo, em síntese, no que toca estas reflexões que “o prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente” e “os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado”, fato que mostra tanto que o senhor Presidente desconhece o Direito pátrio – ao editar uma MP que parece não se importar com a coerência – como que segue despreocupado, de fato, com a efetiva tutela dos consumidores brasileiros, muitos deles, aliás, seus eleitores.

Enfim, sempre, mas, especialmente, em um contexto de doença e medo, cabe a todos os que trabalham com o Direito garantir o respeito às garantias constitucionais, dentre elas, como ressaltado ao largo do texto, a necessária e fundamental tutela dos consumidores. De doença basta o vírus. Não se permita que o desejo febril pelo lucro assole ainda mais o povo brasileiro.

 

Notas e Referências

[1] Boa parte delas pode ser listada entre as mais visitadas pelos brasileiros que têm a oportunidade de ir ao exterior.

[2] Essa mesma perda de memória também deve atingir o empresariado quando necessitar de auxílio para superar as perdas econômicas advindas do colapso dos negócios.

[3] Dogmaticamente em abstrato e, sempre que seja necessária a atuação do Direito, hermeneuticamente em concreto.

[4] Multa ou multa contratual, consoante o senso comum.

[5] EWALD, François. Solidariedade. Trad. Maria Vitoria Kessler. In: CANTO-SPERBER, Monique (Org.). Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, v. 2. p. 623-624. Curiosamente, uma das vertentes sobre o surgimento da doutrina do solidarismo teria se dado em razão da vivência do mal social, do qual as doenças contagiosas seriam uma das formas. Por causa delas, um indivíduo poderia colocar a vida dos outros em risco. Da percepção de que as ações ou a mera presença de uma pessoa poderiam atingir outros indivíduos ou um contingente populacional inteiro teria surgido a premissa da solidariedade, segundo a qual a busca pelo bem individual tornaria imperioso que se quisesse o bem dos outros.

 

 

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