Quando a vontade de poder suplantou a vontade de Constituição: considerações sobre o impeachment de Dilma Rousseff - Por Renata Camilo de Oliveira

17/09/2016

Por Renata Camilo de Oliveira - 17/09/2016

Introdução

No presente texto, apresentamos algumas considerações teóricas para avaliar, de um ponto de vista jurídico-material, a decisão proferida pelo Senado Federal, aos 31 dias do mês de agosto de 2016, relativa à perda do cargo de Presidente da República. Inicialmente, abordaremos algumas diferenças entre o sistema de governo parlamentarista e o presidencialista, com o fim de demonstrar que o impeachment não se trata de mero julgamento político, senão que possui contornos jurídicos. Em seguida, analisaremos os dois fundamentos utilizados para a condenação de Dilma Rousseff à perda do cargo, quais sejam, atrasos nos pagamentos para o Banco do Brasil de subvenções do Plano Safra e edição de três decretos de abertura de crédito suplementar. Por fim, apontaremos que o simples fato da decisão ter sido tomada pela autoridade competente e, em princípio, segundo o procedimento previsto para tanto, não a faz, por si só, legítima. A condenação em análise manietou o sentimento de Constituição e a soberania popular.

1- Sistema presidencialista e impeachment: julgamento “político” vs. contornos jurídicos

Para a compreensão do instituto do impeachment dentro do sistema de governo presidencialista, é imprescindível a diferenciação deste e do sistema parlamentarista. No sistema parlamentarista, o primeiro-ministro ou chanceler não é eleito pelo povo, senão que é escolhido pelo parlamento e depende da confiança deste para se manter no poder. Ele não tem mandato, mas apenas uma investidura de confiança e, se perde a maioria no parlamento, pode ser destituído. É um sistema que tem uma maior flexibilidade para lidar com as crises de governo, adotando mecanismos que permitem, dentro da normalidade institucional, derrubar o governo ou, até mesmo, dissolver o parlamento, com a convocação de eleições gerais.

Bastante diferente é a situação no presidencialismo, em que o Presidente é eleito pelo povo, para governar por um período determinado: um mandato certo. Ele não pode ser destituído pelo Legislativo apenas porque perdeu o apoio da maioria, pois não depende da confiança do Legislativo para adquirir o cargo ou nele permanecer, senão que conta com a legitimidade do voto popular. Consequentemente, a resposta a uma eventual insatisfação em relação ao governo tem que ser dada “nas urnas”. Assim, no presidencialismo, o Chefe do Executivo só perderá o cargo em casos extremos, apontados pela Constituição, como no caso de crime de responsabilidade. A perda do mandato do Chefe do Executivo é, aqui, uma ruptura traumática, que só pode ocorrer se estiver presente alguma das hipóteses jurídicas que autorizam a destituição.

Partindo desta diferenciação, fica claro que os requisitos e o procedimento do processo de impeachment no sistema presidencialista de um Estado de Direito, tem estritos contornos jurídicos e não se trata de um mero julgamento político; se assim fosse, estaríamos no sistema parlamentarista. É certo que o julgamento é feito por uma instância política, no caso brasileiro, o Senado Federal, mas que, ao julgar um crime de responsabilidade, está exercendo função atípica jurisdicional, sendo que só há crime de responsabilidade, se houver o devido enquadramento de determinada conduta em uma das hipóteses definidas, pela Constituição e pela lei, como crime de responsabilidade.

2- Pedalada fiscal e decretos de crédito suplementar: justificativas ou pretextos?

A ex-Presidente da República foi condenada por contratar, no âmbito do Plano Safra, operações de crédito com instituição financeira controlada pela União e por editar três decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso Nacional, com base no art. 85, VI, e art. 167, V, da Constituição Federal, bem como no art. 10, itens 4, 6 e 7, e art. 11, itens 2 e 3 da Lei 1.079/1950.[1]

Plano Safra é a designação conferida aos programas federais de apoio à produção agrícola, que abrange, dentre outras, a possibilidade de concessões de subvenções econômicas nas operações de crédito rural. A gestão de referidas concessões foi atribuída pela Lei 8.427/1992, para os Ministérios da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão, e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como para o Conselho Monetário Nacional (cf. arts. 3º, 3º-A e 5º). Como sabido, na execução financeira do Plano, ocorreram atrasos nos pagamentos para o Banco do Brasil de subvenções, chamados de pedalada fiscal. Referidos atrasos foram interpretados, no processo de impeachment, como uma espécie de operação de crédito entre a União e o Banco do Brasil e atribuídos à então mandatária Dilma Rousseff.

Percebe-se, contudo, dois erros grotescos neste ponto da decisão. Primeiramente, enquadrou-se como crime de responsabilidade uma conduta que não está tipificada como crime de responsabilidade. Fazendo uso de uma interpretação extensiva ou analogia, considerou-se que os atrasos do governo em relação ao Plano Safra configurariam uma operação de crédito[2]. Ora, ainda que o crime de responsabilidade não tenha natureza estritamente penal, vale, também aqui, o princípio da legalidade e não se pode fazer uso de uma interpretação extensiva para suplantar a soberania popular. Em outras palavras, os atrasos nos repasses configuram, do ponto de vista jurídico, inadimplemento contratual e não podem, para fins de destituir uma Presidente eleita pelo voto popular, ser interpretado de modo extensivo como sendo uma operação de crédito.

Não bastasse isso, no caso, não houve sequer autoria de Dilma Rousseff. O próprio Congresso Nacional atribuiu a gestão das concessões aos Ministérios da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão, e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como ao Conselho Monetário Nacional. A competência para efetuar os pagamentos não era da ex-Presidente da República, que, portanto, não atuou na execução financeira do Plano.

Passemos à análise dos três decretos de abertura de crédito suplementar (dois de 27 de julho de 2015 e um de 20 de agosto de 2015). Os créditos suplementares “visam a aumentar as dotações orçamentárias destinadas a determinadas despesas já previstas na Lei Orçamentária Anual (LOA), em face da insuficiência dos valores que foram originalmente contemplados” (RIBEIRO, 2016). Como o orçamento traz somente uma previsão do montante que será arrecadado e gasto ao longo do ano, quase sempre, são necessários ajustes durante a execução orçamentária, por meio de decretos de abertura de crédito suplementar e, especialmente, por decretos de contingenciamento. Por esta razão, o Congresso Nacional, quando da elaboração da lei orçamentária anual, já autoriza alguns ajustes, por meio de decretos.

A LOA de 2015, Lei nº 13.115/2015, foi aprovada em abril de 2015, e previu, em seu artigo 4º, a possibilidade de abertura de créditos suplementares, desde que as alterações fossem compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) - Lei nº 13.080/2015. Na visão dos defensores do impeachment, quando da edição de três decretos de abertura de créditos suplementares, a meta do superávit primário não vinha sendo atendida, de forma que a condição estabelecida por lei para a edição dos decretos não estava presente.

Que referidos Decretos não tinham o condão de prejudicar a meta de superávit, uma vez que são atos que alteram apenas a programação orçamentária, e não a execução do orçamento, pareceu irrelevante. Da mesma forma, pareceu não ter importância o fato de que o cumprimento da meta do superávit primário só pode ser apurado ao final do exercício, sendo que o próprio Congresso Nacional alterou a meta de resultado primário determinada pela LDO/2015, que, com a alteração, acabou sendo cumprida. Por fim, tampouco foi considerado que a abertura de créditos adicionais, com base em remanejamento de recursos, excesso de arrecadação ou em receitas oriundas de superávit financeiro, estava autorizada pelo art. 4º da LOA de 2015, assim como o era há décadas nas demais leis orçamentárias anuais e continua sendo na LOA de 2016 (Lei 13.255/2016), com pacífica concordância da doutrina e jurisprudência. Enfim, criou-se, nas palavras de Ribeiro, um “Direito Financeiro de exceção”, que nunca foi aplicado nem antes e nem depois, mas que serviu de pretexto para suplantar a soberania popular.

A verdade é que desde o início do segundo mandato de Dilma Rousseff e na catapulta dos vazamentos seletivos de informações da operação Lava-Jato, foram buscados diferentes motivos para “justificar” um impedimento. Em 26 de janeiro de 2015, Ives Gandra chegou a apresentar um parecer afirmando ser possível crime de responsabilidade culposo – para não mencionar as diversas ações de impugnação de mandato eletivo. Em 16 de agosto de 2015, a Câmara dos Deputados aprovou, em um processo “relâmpago”, contas dos governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, incluindo contas que datavam de 1992, transformando, subitamente, um tema morto em pauta central. Encontrado o tão procurado motivo, já não pareceu relevante o fato de que as contas de 2014 do governo de Dilma Rousseff, até a presente data, não foram julgadas pelo Congresso Nacional e que, em relação às contas de 2015 (ano em que teriam ocorrido os crimes imputados), sequer houve ainda a apreciação final do Tribunal de Contas da União. Também insignificantes foram considerados, dentre tantos outros aspectos, o fato de que o próprio Michel Temer, Presidentes anteriores, Governadores e Prefeitos cometeram e cometem os crimes imputados à então mandatária. Não é sem razão que a própria acusação do processo de impeachment recorreu, ao cabo, ao “conjunto da obra”.

3- Conclusão

É claro que o impeachment está previsto em nosso Direito e o recurso a ele, por si só, está longe de constituir um golpe. Igualmente inquestionável é atribuição do Senado Federal para julgar os crimes de responsabilidade do Presidente da República. O problema reside nos motivos que justificam a condenação, que não podem ser mera expressão de vontade política. Sem motivos suficientes, o impeachment é, sim, um golpe. Não é o fato da aplicação do Direito ter sido feita pela autoridade competente e, em princípio, segundo o procedimento[3] previsto para sua aplicação, que a faz correta. Relacionar a legitimidade da aplicação do Direito apenas ao aspecto formal (“regras são válidas porque são decretadas, conforme as regras, pelas instituições competentes”) é uma visão unidimensional do Direito, que abre margem para um amplo decisionismo (cf. HABERMAS, 1997, p. 250 et seq., p. 259).

Querer se aproveitar da baixa qualidade da velha Lei 1.079/1950 e fazer analogias, interpretações extensivas ou criar um Direito Financeiro de exceção configura verdadeira “pedalada hermenêutica” (BAHIA; CATTONNI DE OLIVEIRA; IOTTI, 2016), que, no caso, serviu não “apenas” para manietar o sentimento de Constituição e legalidade, mas, ainda, para solapar a soberania popular. Ainda mais grave é querer “culpar” o texto da Constituição pelo que ocorreu. O texto da Constituição é claro na adoção do sistema presidencialista e na caracterização, como crime de responsabilidade, apenas atos que atentem contra a própria Constituição. O problema não foi o texto constitucional, mas, sim, seu abuso, sua instrumentalização.

Se, na nossa dura saga de retrocessos na construção da democracia, não aprendemos a respeitar o Estado de Direito, não há texto que nos salve. Por ora, permanecemos fadados a ver os órgãos legitimados pela Constituição voltar-se contra a sua base de legitimidade para devorá-la, tal como Cronos fizera com os seus próprios filhos (MENELICK, 2004, p. 25), a ver a vontade de Constituição (Hesse) ser suplantada pelo arbítrio oportunista de uma vontade de poder não domesticada pelo Estado de Direito.


Notas e Referências:

[1] Cf. SENADO FEDERAL. Sentença de impeachment, prolatada pelo presidente do julgamento, ministro Ricardo Lewandowski. 31 de agosto de 2016. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/08/31/veja-a-sentenca-de-impeachment-contra-dilma-rousseff. Acesso em: 07 set. 2016.

[2] Nos termos do art. 29, III, da Lei de Responsabilidade Fiscal, operação de crédito são definidas como “compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros”. Semelhante definição pode ser encontrada no art. 3º da Resolução do Senado no. 48, de 2007.

[3] Pontuamos que, deixamos de abordar, na presente reflexão, eventuais problemas de ordem formal, como a alegação de que o procedimento se iniciou num ato de desvio de poder; a manutenção, no processo, de elementos acusatórios da denúncia que não foram recebidos; os aditamentos da acusação; o fato de que a defesa não foi a última a se manifestar nas duas Casas; dentre outros.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; VECCHIATTI Paulo Roberto Iotti. Supremo Tribunal Federal deve barrar ou nulificar impeachment sem crime de responsabilidade. Empório do Direito. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/. Acesso em: 07 set. 2016.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

RIBEIRO, Ricardo Lodi. Impeachment, abertura de créditos suplementares por decreto e alteração da meta primária. Revista Colunistas de Direito do Estado, n. 52, 2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Ricardo-Lodi-Ribeiro/impeachment-abertura-de-creditos-suplementares-por-decreto-e-alteracao-da-meta-primaria-. Acesso em: 07 set. 2016.


renata-camilo-de-oliveira. Renata Camilo de Oliveira é Professora da Universidade São Judas Tadeu. Doutora em Direito Constitucional pela Humboldt-Universität zu Berlin. Mestre pela UFMG e pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg. Advogada.. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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