Quando a Presunção de Inocência se converte judicialmente naquilo que não é

11/04/2018

Nos últimos anos, a presunção de inocência tem se tornando tema bastante discutido e, do mesmo modo, problemático no contexto jurídico brasileiro. É, inclusive, surpreendente que existam dúvidas em relação àquilo que a presunção de inocência significa e os seus limites, vez que a Constituição Federal de 1988, no art. 5º, LVII, é clara: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Reforçando o disposto na Constituição de 1988, o Código de Processo Penal, alterado pela Lei nº 12.403 de 2011, determinou que a prisão só poderá ocorrer em “flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

É de claridade solar que a regra no Brasil é a presunção de inocência. Indo além, encampando uma interpretação teleológica e sistemática da Constituição de 88 e do Código de Processo Penal brasileiro, é indubitável que no sistema jurídico pátrio se adota um conceito de culpabilidade que é normativo, em outros termos, ninguém será considerado culpado ou tratado como tal ante a inexistência de uma sentença penal condenatória transitada em julgado.

Em 2009, no julgamento do habeas corpus nº 84.078-7, o Supremo Tribunal Federal – STF consolidou o entendimento de que a execução antecipada da pena não se compatibilizava com a ordem jurídica constitucional do Brasil. No mais, o Tribunal considerou que não haveria como justificar a antecipação da execução da pena no processo penal, tão somente no juízo de conveniência dos magistrados.

Já em 2016, no habeas corpus nº 126.292, o STF modificou seu posicionamento, indicando que a antecipação da pena, decorrente de acórdão penal condenatório em grau de apelação, não frustra a disposição constitucional contida no artigo 5º, LVII, ainda que pendentes recursos. O ministro relator Teori Zavascki, ao abordar o assunto no plano internacional, asseverou que não é normalidade em outros países que a decisão, após confirmação em segunda instância, tenha o início de seus efeitos sujeitos à resposta da Suprema Corte.

No habeas corpus nº152.752, que ganhou repercussão mundial por ter enquanto paciente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Supremo manteve a cognição pacificada em 2016, continuando a ser possível no cenário brasileiro a execução antecipada da pena. Ressalte-se que existem duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs 43 e 44) pendentes de julgamento de mérito, que findarão o imbróglio sobre a execução antecipada.

Diante desse quadro, é notória a instabilidade jurídica gerada pela mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: até 2016 não era possível a execução antecipada da pena, posteriormente essa execução passa a ser admitida, e hoje, considerando que ainda haverá discussão de mérito das ADCs 43 e 44, existe a possibilidade de uma nova modificação jurisprudencial. Afinal, o que a presunção de inocência é?

Entende-se aqui que a presunção de inocência, da forma como prevista na Constituição e no Código de Processo Penal - CPP, conforma uma norma regra. Humberto Ávila (2005) explica que, utilizando o critério do modo de aplicação final, as regras se distinguem dos princípios pelo fato de terem uma aplicação no modo “tudo ou nada”, ao tempo em que os princípios, a seu turno, podem ser graduados.

Levando esse ensinamento em consideração, é plausível conceber a presunção de inocência como uma norma do tipo regra, ou se aplica, ou não se aplica, não há que se fazer interpretações altamente abstrativizadas, a Constituição é clara, não há mais ou menos presunção de inocência. No mesmo sentido, o CPP exauriu qualquer dúvida que pudesse surgir da interpretação do art. 5º, LVII, da CF/88, (1) só haverá prisão em flagrante delito ou (2) por ordem escrita e fundamentada, que seja resultado de sentença penal condenatória transitada em julgado, figurando como exceção à esta regra as prisões temporária e preventiva.

Qualquer interpretação que esteja fora desse raciocínio, incluindo a contemporânea pacificação do STF, é uma ofensa à ordem constitucional e infraconstitucional pátria. A culpabilidade no Brasil é de caráter normativo, então só haverá – ou ao menos deveria – que se falar em execução de pena após o trânsito em julgado das sentenças, não estando pendente nenhum tipo de recurso, extraordinário ou especial.

Em relação aos recursos, por mais que não possa ser feito o reexame de fatos e provas, tanto no recurso extraordinário quanto no especial, é preciso seguir a concepção de culpabilidade normativo/legal, desta feita, ao tempo em que existem recursos pendentes, não haverá culpado, quiçá execução antecipada dos efeitos da sentença.

Martin Stone (2010) explica que há interpretação em casos difíceis e, similarmente, em casos mais elementares, nesses a interpretação fica fora de questão, pois, a aparente clareza traz uma interpretação implícita do dispositivo, uma norma evidente. Assim é o caso da presunção de inocência, é inconteste que a presunção de inocência não permite a execução antecipada da pena, manifestando sobretudo, preocupação com a dignidade, a vida e a liberdade daqueles que são alcançados pela sentença condenatória. Tendo em vista que na seara penal trata-se do “ser”, em caso de eventual liberdade daqueles submetidos à execução provisória, não há como se compensar o tempo de privação de liberdade, de limitações da vida e de tragédias vividas em um sistema prisional tão caótico como o brasileiro.

No plano democrático, é preciso considerar dois momentos, segundo Bruce Ackerman (2006): o de manifestação constitucional, onde o povo faz uma escolha que orienta a fundação do estado, e o tempo de política ordinária, no qual os representantes dos cidadãos fazem opções políticas no exercício de seus mandatos. Resultantes desses dois momentos temos a Constituição de 1988 e o Código de Processo Penal, que no caso em apreço, são ofendidos por uma interpretação constitucional que não os considera, mas a pretexto de sua proteção e eficiência, os ofende e se coloca acima da vontade soberana expressa no direito positivado, transformando o Poder Judiciário, especialmente o STF, na arena de interpretação que não pode ser controlada.  

De fato, há uma transformação da presunção de inocência, por meio da interpretação judicial, que a distancia das disposições constitucionais e legais. Se é necessária uma mudança de paradigma nessa seara, esta deve ser efetivada pela via democrática, pelo processo legislativo, não por um Poder essencialmente contramajoritário, que desrespeita as regras do Estado Democrático.

 

REFERÊNCIAS 

ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª. Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. STF: Secretaria de Documentação, 2017. 

_______. Código de processo penal. Brasília: Senado Federal, Departamento de Publicações Técnicas, 2017. 

STONE, Martin. Focalizando o direito: o que a interpretação jurídica não é. In: MARMOR, Adnrei. Direito e interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Brasília // Foto de: Carla Salgueiro // Sem alterações

Disponível em: encurtador.com.br/dlOP2

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura