Qual o parâmetro constitucional de setores do sistema de justiça criminal?

16/04/2018

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, mergulhou o país em grave insegurança jurídica ao, cedendo a pressões da grande mídia e da suposta opinião pública, desconsiderar a expressa redação do artigo 5º, LVII, da Constituição da República, que exige o trânsito em julgado da condenação para que se inicie a execução da pena.

A fragilidade jurídica dos argumentos que levou à autorização para que a pena criminal possa ser executada antes do trânsito em julgado da condenação, bastando apenas o esgotamento das discussões no âmbito da 2ª Instância, impactou, sobremaneira, a comunidade jurídica. Afinal, viu-se como o voluntarismo judicial pode ir longe, sendo capaz de desconsider o Texto Constitucional, a legislação infraconstitucional, a dogmática processual penal e o princípio geral de interpretação do diálogo entre fontes normativas internacionais, em nome de um utilitarismo populista deveras perigoso ou incompatível com o Estado Democrático e Constitucional de Direito.

Diante desse cenário, percebeu-se que a atual composição do Supremo Tribunal Federal era maleável a pressões externas. Com isso figuras ligadas à grande mídia (intensa cobertura sensacionalista), ao Sistema de Justiça Criminal (houve quem anunciasse a prática de jejum) e até às forças armadas passaram a pressionar os ministros do referido tribunal, sempre que a matéria (execução provisória ou antecipada da pena criminal) se aproximasse da pauta de julgamento.

Foi com essa intenção que alguns (centenas ou milhares de) integrantes do Judiciário e do Ministério Público divulgaram uma intitulada “nota técnica”[1], por meio da qual, e a despeito do ordenamento e da ciência jurídicos, não se deve aguardar o esgotamento dos recursos especial e/ou extraordinário. Referida nota conseguiu ser ainda mais catastrófica que o acórdão do Habeas Corpus 126/292/SP.

Em resumo, os signatário do manifesto (pressão) defendem a execução antecipada da pena, antes do trânsito em julgado, pelos seguintes argumentos: a) a presunção de inocência é um “princípio” relativo[2]; b) ao judiciário é dado agir com sustento no livre convencimento motivado, permitindo-lhe ponderar, no caso em concreto, se o direito individual deve sucumbir ao interesse coletivo[3]; c) a alegação de que a Declaração de Direitos Humanos admite qualquer prisão antes do trânsito em julgado; d) a busca da verdade material; e) a execução antecipada da pena funciona como instrumento de combate à criminalidade; f) Direito comparado (estadunidense e europeu) não exige o trânsito em julgado da condenação para que se inicie a execução da pena; g) o parâmetro (normativo e jurisprudencial) anterior à Constituição da República.

Não se pretende refutar cada um desses argumentos, pois eles são, praticamente, autofágicos juridicamente. Veja-se o frágil apelo ao Direito comparado. Ora, os signatários da nota não informam que os países utilizados como referência possuem estruturas judiciárias totalmente diferentes da brasileira. A título de exemplo, toma-se o caso estadunidense em que, além da adoção do tribunal do Júri na primeira instância (como regra no âmbito federal), há Estados que elegem promotores e juízes. Isso sem falar que, conforme o Estado, a pena capital, quando admitida, leva anos e anos para ser imposta. Em suma, analisando apenas o modelo judiciário dos Estados Unidos, o argumento expendido pelos signatários da “nota técnica” já se mostra não tão técnico assim (sobre qual Estado estadunidense se referem? Se ao modelo X ou Y, ele é plenamente comparável com o brasileiro?).

No que tange à comparação do nosso modelo jurisdicional com o de países europeus (Alemanha, França e Portugal), em todos eles a primeira instância é composta por juízos singulares (em regra)? Referidos países aderiram ao constitucionalismo no mesmo período que o Brasil? Não há seriedade e apuro metodológicos, com a devida vênia, nessas comparações. Ao que parece, trata-se de um argumento meramente panfletário, que não almeja ser levado a sério. Outrossim, a desinformação traz riscos graves, principalmente quando referendada por agentes públicos e divulgada pelos meios de comunicação em massa[4].

Destaca-se que a Constituição portuguesa, artigo 32º, 2, estabelece que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”[5]. Os signatários da nota não leram, com a devida atenção, o teor daquilo que assinaram (espera-se que tenha sido mero açodamento, diante da pressa em ver preso determinado réu famoso).

A mofada alegação de que o processo penal se presta à busca da verdade real, material ou substancial, por questões óbvias, não merece enfrentamento neste curto espaço. Outras vozes importantes do cenário acadêmico e forense já se manifestaram a respeito[6].

Carente de maiores recursos técnicos, a nota está repleta de um discurso voltado à defesa social, ao combate à criminalidade (pelo Direito Penal[7] ou pela imposição de pena privativa de liberdade), pelo maniqueísmo, pelo moralismo corporativista, pela confusão entre as atribuições ministeriais e jurisdicionais e, sim, pelo autoritarismo encartado no in dubio contra reum ou in dubio pro societate[8], pois os signatário se apresentam como os representantes do interesse da sociedade (que, de costume, confunde-se com o punitivismo e com a supressão de direitos fundamentais).

Diferentemente do que se vem observando na prática judiciária, não parece que o Texto Constitucional tenha conferido ao Ministério Público, como também ao Judiciário, a missão de combater a criminalidade. Pior, para essa suposta guerra ao crime, há que se deixar bem claro: Direito e Processo Penal não podem ser utilizados como armas contra o(s) suposto(s) inimigo(s)[9] da sociedade, inevitavelmente, indeterminados ou convenientemente eleitos (terroristas, judeus, negros, traficantes, ciganos, comunistas, corruptos, etc.)[10].

Segundo Baratta, a ideologia do fim ou da defesa social surgiu no mesmo período da revolução burguesa, sendo encampada pelas Escolas Positivas. Essa ideologia está amparada nos seguintes princípios ou postulados: a) Princípio da legalidade (o Estado, por meio de instâncias oficiais de controle, representa os interesses da sociedade, decidindo, nos termos do desejo coletivo, reprimir infrações e reafirmar as normas sociais); b) Princípio do bem e do mal (caracteriza a sociedade como o bem a ser tutelado, enquanto que o criminoso seria o mal a ser repelido); c) Princípio da culpabilidade (caracteriza-se pela reprovabilidade da conduta criminosa); d) Princípio da finalidade (a pena imposta não visa apenas à repressão do delito, mas também a de precaver a sociedade sobre as consequências da prática criminosa); e) Princípio da igualdade (cria a premissa de que a lei se aplica nas mesmas condições a todos, indistintamente); f) Princípio do Interesse social (prega que os interesses protegidos pela norma penal correspondem aos anseios de todas as pessoas)[11].

Coutinho, em artigo sobre o projeto de lei que busca aprovar um novo código penal, critica o discurso de combate à criminalidade encartado no dito punitivismo desmedido ou ideológico, o qual, sob o pretexto de reduzir a criminalidade, seduz integrantes de instituições públicas e da sociedade em geral, propondo o aumento de penas aos crimes, além da piora do tratamento criminal à pessoa do acusado/condenado[12].

É provável que os personagens jurídicos que encabeçam esses discursos de militarização do processo penal, façam-no com a melhor das intenções, entretanto, inevitável não lembrar a advertência de Marques Neto que, ao analisar a necessidade ou não de controle externo da atividade judicial, questiona se há alguém que nos livre da bondade dos bons[13]. Aliás, pode-se ir além: há alguma bondade na defesa intransigente de práticas autoritárias que descambam para o aprisionamento de alguém, mesmo em sentido contrário ao Texto Constitucional (e às garantias cívicas que ele representa)?

Compartilha-se o pensamento de Salo de Carvalho, para quem, citando Ferrajoli, deve-se romper com a crença na bondade do poder punitivo, afastando-se dessa característica inquisitória e rumando para o sentido oposto, isto é, de viés acusatório, no qual há constante desconfiança sobre o exercício do poder punitivo pelo Estado, não o enxergando como fonte independente de verdade[14].

Feitas essas colocações, longe de apenas expor os equívocos jurídicos, históricos e hermenêuticos da nota “técnica” assinada por alguns integrantes do Sistema de Justiça Criminal, espera-se que o debate seja munido de mais racionalidade, civilidade e, principalmente, respeito à constitucionalidade. Enquanto movimento, o constitucionalismo surgiu para impor limites ao Estado e para atribuir direitos às pessoas (inclusive contra esse Estado). Membros do Sistema de Justiça Criminal não possuem, na seara do constitucionalismo, poderes messiânicos. São todos subordinados à mesma ordem que estabelece e consagra a presunção de inocência, bem como as regras dela decorrentes, como valores fundamentais da sociedade.

Em que momento se perdeu a capacidade de reconhecer que a Constituição de 1988 constitui-a-ação de todas as instituições integrantes da República Federativa do Brasil? Não é dado ao Judiciário ou ao Ministério Público a advocacia em prol da repristinação de parâmetros constitucionais autoritários e anteriores a Carta de 1988. O papel dessas instituições reside, inapelavelmente, na defesa da ordem constitucional e não na sua derrocada. 

Por fim, cabe deixar a seguinte pergunta: se o disposto no artigo 5º, LVII, da Carta Política de 1988 não merece respeito, qual é o parâmetro constitucional dos defensores da execução antecipada da pena criminal: o da Constituição de 1937 (Estado Novo) ou o diploma que conviveu com o AI5[15]?  

Notas e Referências:

[1] Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/trezentos-procuradores-e-juizes-vao-ao-supremo-por-prisao-em-2a-instancia/> publicado em30 mar. 2018.

[2] A nota traz uma análise caricata da presunção de inocência. Uma leitura mais abalizada pode ser obtida através de MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[3] Sobre o livre convencimento motivado, recomenda-se o estudo de STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. Porto Alegre: Saraiva, 2014.

[4] Se atores processuais não atuam com a devida responsabilidade, corre-se o risco de que setores da grande mídia também não o façam, o que possibilita a reprodução de informações equivocadas. Nesse sentido, destaca-se STRECK, Lenio. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-mar-26/lenio-jurista-jornalista-fazem-fake-news-presuncao-inocencia >.

[5] Disponível em: http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx.

[6] Por todos, Alexandre Morais da Rosa: < https://www.conjur.com.br/2016-mai-14/diario-classe-mantra-verdade-real-provas-oab-concursos>.

[7] Sobre a função ou finalidade do Direito Penal, enquanto instrumento de controle social: “O direito penal nazista garantia “as condições de vida da sociedade” alemã subjugada pelo Estado Nazista, ou era a pedra de toque do terrorismo desse mesmo Estado, garantido em verdade as condições de morte da sociedade?” (BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 21).

[8] Expressão utilizada pelo regime nazista: PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Em idêntico sentido, FARIA COSTA, José de. Noções Fundamentais de Direito Penal: fragmenta iuris poenalis. — 3. ed. — Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 75.

[9] Denota-se, apesar disso tudo, que a ideologia da Defesa Social ainda influencia em muito, tanto o público em geral, quanto os agentes que atuam nas instituições jurídicas, clarificando uma cultura maniqueísta e afastada de qualquer participação na construção da realidade social, cultura que diuturnamente é levada em conta na fundamentação de manifestações ministeriais e nas decisões judiciais em todos os cantos do país” (CHAVES JUNIOR, Airto; OLDONI; Fabiano. Para que(m) serve o Direito Penal? Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 168).

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: 2011, p. 25.

[11] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 42-43.

[12] “Para tanto, como é elementar, paga-se um preço, em verdade muito alto se em jogo estiverem os postulados democráticos – principalmente aqueles de matriz constitucional – porque, de um lado, é preciso ofuscar direitos e garantias individuais e, de outro, não se tem os resultados pretendidos, o que é desalentador dado corroer a esperança de se ter um futuro melhor justo pelo caminho da realização da Constituição” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Punitivismo desmedido e ideológico (a posição de Jörg Stippel). Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/punitivismo-desmedido-e-ideologico-a-posicao-de-jorg-stippel-por-jacinto-coutinho>. Acesso em: 24 jul. 2016, grifo do autor).

[13] MARQUES NETO, Agostinho R. “O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática – O Juiz-Cidadão”. Revista do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, São Luís, Centro de Processamento de Dados do Tribunal de Justiça, ano III, n. 4, 1995, p. 93

[14] “A crença na regularidade dos atos do poder, sobretudo do poder punitivo (potestas puniendi), define postura disforme dos sujeitos processuais, estabelecendo situação de crise através da ampliação da distância entre as práticas penais e a expectativa democrática da atividade jurisdicional. O reflexo concreto é a violação explícita ou a inversão do sentido garantista de interpretação e de aplicação das normas de direito e de processo penal, revigorando práticas autoritárias” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 5. ed.  São Paulo: Saraiva, 2013, p. 164).

[15] Segundo Queiroz, “sentença ‘passada em julgado’, nas constituições anteriores à de 1988, só era exigida para a perda de posto e patente de oficial das Forças Armadas (Constituição de 1937, art. 160, p.u.; Constituição de 1946, art. 182, § 2º; Constituição de 1967, art. 94 § 2º). Para as demais situações nas quais a Constituição de 1988 hoje exige trânsito em julgado, bastava ‘sentença judiciária’ ou ‘decisão escrita de autoridade’” (QUEIROZ, Rafael Mafei R. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/presuncao-de-inocencia-libertada-28022018).

 

Imagem Ilustrativa do Post: Processos em arquivos temporários. // Foto de: STJ 

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