Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho - 25/02/2015
1. Introdução: a homenagem a Luiz Eduardo Trigo Roncaglio
Quando a notícia chegou ela veio acompanhada de múltiplos sentimentos, mas dois deles – um tanto opostos – logo se impuseram: a tristeza pela perda e a alegria por pensar o amigo lidando com uma vida que aparentemente lhe pressiona menos. A notícia era aquela da aposentadoria do Procurador de Justiça Luiz Eduardo Trigo Roncaglio, amigo de décadas; sempre o mesmo; daqueles ao qual se relata tudo o que se não pode contar a ninguém; e se dá a batizar a primogênita para, pelo gesto, demarcar-se um lugar, daqueles que ocupam tão só os capazes de estarem ali, na quase impossível missão, se sua falta sobrevier. Em definitivo, desde essa visão do mundo e desse modo de pensar, não se faz isso a um amigo qualquer.
A referida tristeza é ligada a razões óbvias. Ele é de tal forma inteligente e querido que poderia ser – se dependesse do mérito – o que quisesse no mundo jurídico; e todos sabem e são testemunhas disso. Entrou no Ministério Público no final de 1980 e nele permaneceu, como um soldado que leva o estandarte, até a aposentadoria. Sempre foi, no exercício do ministério, um exemplo a ser seguido; daqueles que preenchem tantos requisitos para o mister que se confundem com a função, coisa cada vez mais rara nos dias de hoje. A tristeza, portanto, é pela falta; pelo muito que ainda poderia fazer; pelo exemplo que é. Isso, porém, é coisa dos terceiros, daqueles que demandam sempre e sem pensar na dor que, de certo modo, ocupar um lugar traz, mormente porque no jogo do desejo nem sempre se ganha com aquilo que os outros querem, mesmo que seja altamente digno. Estar ali ou não, portanto, não é uma decisão simples. Esse conflito, sabe-se satisfatoriamente, só se resolve de um modo aceitável com a sublimação, algo com frequência impossível; ao contrário, com um ritmo ainda maior se tem um enfado terrível (mesmo que nem sempre se saiba por quê), em geral debitado à falta de condições (pessoais, materiais, temporais, etc). Aqui – é preciso reconhecer e respeitar – cada um sabe de si. O Ministério Público efetivamente democrático e com o cariz constitucional que todos querem, porém, só será viável em maior plenitude quando na sua mais larga extensão todos puderem ocupar – e ocuparem – o lugar que ele, Roncaglio, conquistou, começando pelo equilíbrio...
Por outro lado, a alegria é ver o amigo apostar na possibilidade de reinventar a vida, sem o que o peso dos anos é capaz de fazer da própria vida um enfado. Há, aqui também, a expressão daquela inteligência afinada. Reinventar-se é a face da inteligência guiada pela sensibilidade para consigo; e a crença na possibilidade de fazer do mundo e da vida uma constante fonte de prazer; quiçá, agora, mais de perto regida pela satisfação própria (Lacan diria j’ouissens, isto é, a combinação de jouissance [gozo] mais sens [sentido], por conta do lugar da linguagem) propriamente dita. Quem sabe pela sublime arte de aprender a gozar o imenso prazer das pequenas vitórias; não mais ao final das grandes caminhadas mas daquelas que se vão acumulando pelo caminho e que transformam o dia a dia numa alegria de viver. Os franceses diriam Le goût de l’effort. Se todos são condenados a viver como Sísifo e a decisão transitou em julgado, é inevitável que aprendam o que há de prazer no rolar a grande pedra morro acima, quem sabe se colocando na condição de poder escolher. Eis por que a decisão do Roncaglio tem tudo para ter sido acertada; ele deve se ter colocado em tal condição. Os columbídeos e os solípedes que se cuidem...
2. A grande questão do momento no âmbito criminal (inclusive na reforma do CP): punitivismo desmedido!
O problema da reação penal contra o crime é matéria colocada em pauta desde sempre. Muda, porém, no tempo, o grau da referida reação, o que é marcado pela ideologia da repressão, sempre muito distante daqueles que são os corretos fundamentos, explícitos e implícitos, os quais sempre razoavelmente soube esclarecer a melhor dogmática do direito penal, em geral situada na doutrina.
No atual momento histórico o punitivismo – e seu excesso – tem marcado de tal forma as concepções ligadas ao campo criminal que ele aparece, antes de tudo, como sintoma de algo que se não faz presente nos fundamentos daqueles que o defendem ardorosamente. Como é evidente, falta alguma coisa em outra parte e, para supri-la, aponta-se para soluções que passam pelo punitivismo como panaceia.
A matéria é tão ampla, porém, que não comporta uma análise adequada em um texto no qual há limitação de espaço. Não obstante, alguns pontos são fundamentais e merecem observação, de modo a que se possa encaminhar – pelo menos – a discussão.
A ideologia da repressão não escapa do pensamento mercadológico, neoliberal, que, como se sabe, pretende ser o fundamento epistêmico da vida atual e, em boa medida é (pela força de alguns), embora contra a luta de tantos. Por ele e em larga medida, a ideologia da repressão visa, pelo punitivismo desmedido, ser eficiente (eis o princípio ontológico do modelo) no combate às condutas criminosas e desviantes, aumentando as punições e particularmente as penas em quantidade e qualidade, logo, muitas e maiores punições (se for o caso, penas).
Para tanto, como é elementar, paga-se um preço, em verdade muito alto se em jogo estiverem os postulados democráticos – principalmente aqueles de matriz constitucional – porque, de um lado, é preciso ofuscar direitos e garantias individuais e, de outro, não se tem os resultados pretendidos, o que é desalentador dado corroer a esperança de se ter um futuro melhor justo pelo caminho da realização da Constituição.
Consegue-se o feito, porém, lançando-se mão de imbrogli retóricos, golpes de linguagem que, com frequência, arrebatam os incautos a partir de momentos gerados por situações altamente emotivas, dos quais os maiores exemplos são os crimes tidos como bárbaros, para os quais não se tem qualquer explicação plausível. Ali, no calor dos acontecimentos, os arautos do punitivismo, sempre a serviço de alguma ideologia, incitam os poucos avisados (daquilo que seriam os fundamentos dos direitos e garantias individuais e seus reflexos na sociedade) a pregarem e praticarem – se for o caso – o rompimento da ordem estabelecida, começando por aquela constitucional, sempre em nome de alguma verdade menor e que se dizendo defensora dos interesses coletivos serve, mesmo e tão só, aos interesses de poucos.
Cria-se, assim, um exército de defensores do próprio punitivismo, gente que engorda as pesquisas de opinião a favor da punição desmedida, em geral sem a mínima noção de ser aquela reação reservada, no mais das vezes, tão somente aos estamentos aos quais eles pertencem, em geral aqueles dos menos favorecidos.
Há, por outro lado e a par dos ingênuos, aqueles que sabem o que dizem e fazem, ou seja, têm plena consciência dos meios e dos fins (embora não saibam nada dos seus inconscientes e aí também reside um problema seriíssimo), mas assim atuam em nome de uma adesão irrestrita à ideologia que comungam. Isso se passou com os nazistas – e todos deveriam ter aprendido – e os resultados de suas pregações ainda se fazem notar. Gente desse porte busca sempre comandar a escolha dos sentidos possíveis (e não raro impossíveis) para a vida, com frequência envolvendo outros não tão ingênuos mas que se arriscam pagar pelos resultados em troca de um pouco do gozo deixado pelo aparente estrelato.
Algo do gênero se pode perceber no Projeto do Código Penal (PLS 236/2012), de reforma global. O punitivismo desmedido nele concentrado é de tal forma absurdo que, sozinho, deve inviabilizar, em pouco tempo, a estrutura da execução penal, com as consequências daí decorrentes, dentre elas o efetivo risco do Poder Judiciário não conseguir fazer cumprir suas decisões, o que seria uma lástima porque do ponto de vista do registro simbólico se está diante de um lugar que se não deve conspurcar.
3. Punitivismo desmedido: mas é isso que se quer? É isso que se deve querer (imaginando que se queira resolver o problema da criminalidade)?
Quem imagina que pelo punitivismo desmedido pode resolver alguma coisa não se dá conta que não vai resolver aquilo que aparentemente pretende e nem aquilo que está oculto.
Na primeira aparência, o punitivismo desmedido pretende criar um efeito de intimidação, produzindo medo a partir de punições exacerbadas. Depois – pelo menos no discurso –, quer-se baixar os índices de criminalidade, tudo de modo a se ter paz e tranquilidade por força de uma efetiva segurança pública. Construção do gênero, por evidente, parece obra do surrealismo (sem ofender a André Breton e seus seguidores, por óbvio) porque há, nela, um tal desprezo à lógica da vida e suas refletidas realizações que, de fato, há de duvidar, por vários motivos, de quem a defende.
Ora, o efeito intimidativo da repressão – e particularmente das leis penais – só tem alguma razão de ser quando há, na pessoa, introjeção das regras. E isso se dá desde o nascimento (mas vai até a morte) e particularmente na formação da estrutura do sujeito, por força da vergonha e não do medo. Este, como se sabe, pode – sim – conduzir os laços sociais, mas tão só por um certo período de tempo, como sempre demonstrou a história com o medo da invasão, com o medo do inimigo e assim por diante. Se vier – como de regra vem – desacompanhado da adesão do sujeito (porque lhe não faz questão), pouco efeito tem, como se sabe das sucessivas quedas dos tiranos espalhados pelos tempos e dentre os quais Creonte (de Antígona, de Sófocles) é um modelo eterno para se perceber que há uma Lei para além daquela pessoal ditada por um governante déspota. Por sinal, não fosse assim a pena de morte teria resolvido, por todos os cantos onde se fez como barbárie de rituais infames à civilização, como uma solução definitiva por força de seu efeito intimidativo.
No fundo, o medo verdadeiro e para ser levado a sério não é daqueles que se pretende intimidar e sim da sociedade. Para aqueles, o medo diz muito pouco. Para a sociedade, porém, diz muito, bastando notar como, a partir do neoliberalismo, produziu-se uma indústria economicamente muito forte fundada nele, de carros blindados às chamadas think tanks da área da segurança pública, jóias (falsas) do pensamento neoliberal. Insufla-se o medo e ganha-se milhões com ele. Repressão rigorosa (punitivismo desmedido) e bandidos etiquetados são só os instrumentos que não podem acabar, sob pena da indústria falir. No mais, cada um na sociedade (os cidadãos comuns, se assim se pudesse dizer) deve se virar por si mesmo em face de um Estado mínimo e sem recursos para manter as promessas da modernidade, dentre elas a da segurança pública.
Nesse mar de deficiências, como sabem todos por experiência própria, no qual a regra é a falta, criam-se por jogos de linguagem invencionices cada vez mais apuradas no sentido da repressão desmesurada. Para isso perceber basta pensar em um órgão estatal e se verá a falta como ponto de partida do discurso da (in)eficiência: falta dinheiro, falta servidor, falta material, falta, falta, falta... Trata-se, portanto, de forjar uma impossível compensação.
Ora, partindo-se de premissas falsas e desde logo escondidas as deficiências produzidas pela falta, constroem-se soluções, no campo da segurança pública, que só passam pelo aumento desmedido da punição. É como se ele (o aumento), por si só resolvesse o problema da criminalidade e do desvio, sem mais nada ser preciso. O equívoco é flagrante!
Passados os anos, ninguém mais com a seriedade necessária, os olhos abertos e a razão em ordem consegue não perceber que se trata de um golpe, quiçá um estelionato intelectual. Para tanto basta ter presente que (pelo menos) desde a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 25.07.1990, em face do art. 5º, XLIII, da CR) a ideia do punitivismo desmedido vem imperando e, portanto, já deveria ter produzido o resultado pretendido: o medo dos criminosos e desviantes, de modo a se ter a redução drástica da criminalidade e atos de desvios, tudo de modo a se ter segurança pública em face da paz e tranquilidade. Nada disso, sem embargo do puro discurso, produziu: não se incutiu medo nas referidas pessoas; não se reduziu em nada (antes, aumentou) a criminalidade e os atos de desvio; não se tem segurança pública; não se tem paz e tranquilidade.
Negar tal conclusão é, retoricamente, possível; mas soaria um tanto hipócrita.
Por elementar, se na matriz o que se quer é resolver o problema da criminalidade não cabe mais (pelo menos àqueles que não querem ser enganados) esse discurso da repressão desmesurada, desse punitivismo desmedido, sendo certo que de outros fundamentos é necessário partir. Trata-se, portanto, de arrancar desde uma perspectiva diferente, que respeite à Constituição da República e responda à realidade brasileira, tudo para, pelo menos, ter-se uma chance.
4. A posição de Jörg Stippel (entrevista à Gazeta do Povo de 17.08.2012)
Uma das ironias da vida é que a realidade insiste em se fazer diferente daquilo que a linguagem, começando pelas palavras e as imagens, projeta para ela, por infindáveis motivos. Eis por que se não pode, mesmo em um mundo globalizado, importar sem medida filosofias, teorias e quejandos sem a devida adequação.
Depois da Filosofia da Libertação (para se ficar somente nela) os senhores do mimetismo intelectual do primeiro mundo já deveriam ter aprendido a força da realidade local e, portanto, que o pensamento alienígeno é vital, mas vai usado naquilo que possa produzir os devidos efeitos.
Por conta deste quadro e em face da questão do punitivismo desmedido e suas consequências, faz-se imprescindível, nos dias atuais, um pouco do aprimorado pensamento de Jörg Stippel. Ele expressa a realidade, ou melhor, as conclusões da comparação entre a realidade alemã e brasileira, depois da visita feita pelo professor ao presídio de Foz do Iguaçu.
Alemão de nascimento, Jörg Stippel formou-se em Direito em Münster e doutorou-se na Universidade de Bremen, sendo, hoje, pesquisador do Ludwig Boltzmann Institute of Human Rights, de Viena, onde reside. Entre outras coisas, fez consultoria aos Ministérios da Justiça do Chile e Bolívia. Em julho de 2012 esteve no Brasil participando do Encontro Teuto-brasileiro de Criminologia e Política Criminal, evento realizado em Foz do Iguaçu e promovido pela Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), no qual concedeu uma entrevista ao jornal Gazeta do Povo, de Curitiba (Caderno de Direito e Justiça. Entrevista. Jörg Stippel. 17/08/2012. Disponível (aqui).
Assim, vale a pena ressaltar alguns pontos da referida entrevista para, a seguir, tecer considerações, embora sejam elas – há de se adiantar – insuficientes.
4.1. Sobre o que se pretende com mais prisão e o aumento das penas:
“Ele diz que a sociedade precisa se perguntar o que pretende com as prisões. ‘Se quer destruir famílias, criar mais delinquentes, a sociedade está bem com as prisões que tem. Mas, se quiser recuperar e reintegrar as pessoas, é preciso fazer alguma coisa’”.
Antes de tudo fica evidente o efeito destrutivo das prisões. O punitivismo desmedido leva à destruição das famílias e fomenta a delinquência. Eis um discurso do qual ninguém duvida, embora grande parte dos adeptos da repressão desmesurada queira, propositadamente ou não, fazer de conta que ele não está presente no cotidiano.
Ao contrário do que se passa hoje, pelo menos no Brasil, a sociedade (e não são só os políticos e governantes) precisa apontar no sentido de ser necessário recuperar e reintegrar as pessoas. Esta questão não é nova e toca à finalidade da pena. Está claro, ademais e há décadas, que o Estado não deve formatar o preso para que seja aquilo que para ele esteja projetado com padrão, antes de tudo em razão da CR e os direitos e garantias individuais. Isso, porém, não significa (como acabou por significar em face dos discursos de falência da recuperação, reintegração e ressocialização) que o Estado não deva fazer nada e, assim, abandonar o preso à sorte, esperando que conquiste um lugar (quase impossível) por conta própria. As prisões, como se sabe, viraram depósitos de presos; e depósitos superlotados. E a falência precitada acabou sendo decretada, por mais paradoxal que possa ser, sem a empresa ter sequer existido. Afinal, no Brasil, nunca (nunca!) se fez nada verdadeiramente sério (ou levado a sério) que se possa dizer ter havido uma concreta tentativa de recuperar os presos. Quem tentou (e foram várias as tentativas louváveis!) colheu só amargura e desilusão, justo porque o que nunca esteve em pauta foi uma concreta política pública a ser realizada. A história deste tema é aquela dos constantes adiamentos, de governo para governo, por falta de verbas. Eis, então, o estado-da-arte.
O problema, não obstante tudo e como sabem todos, é que os presos, na extra-grande maioria deles, voltam – queira-se ou não – ao convívio social. Nesse passo, aquilo que foi abandono antes acaba sendo, depois, contabilizado com reincidência. Algo do gênero poderia ser normal se, antes, como resultado de uma forma de agir (não se deve dizer que seria o resultado de uma política pública porque ela, na prática, não existe!), não fosse asinino. A equação é simples: coloca-se um ladrão qualquer na prisão e se deixa à sorte; de lá ele vai acabar saindo e sem nenhuma condição de sobreviver na vida em sociedade acaba voltando à criminalidade, com larga chance de voltar à prisão. Entre a primeira prisão e a segunda há, pelo menos, um crime, não sendo de se descartar que o ladrão possa se ter transformado em latrocida. Logo, não há a menor possibilidade de se aceitar algo assim como normal, mormente porque na equação o que deve pesar, de forma decisiva, é a vida de um inocente vítima do latrocínio, em geral um cidadão comum, trabalhador, com frequência aquele que impregnado pelo lugar-comum dos discursos dos meios de comunicação defendia o punitivismo desmedido.
A conclusão, como não poderia deixar de ser, é simples: é preciso fazer alguma coisa! 4.2. Sobre o papel da política: “Aqui [no Brasil] parece que a política confia muito mais na utilidade da prisão”.
O verbo (parecer) está bem usado pelo professor alemão e mostra quanto é difícil observar a realidade alheia, não deixando espaço para uma hegeliana universalização, pelo menos na forma que se pretendia.
Ora, no Brasil, não é que a “política confia [ou não] muito mais na utilidade da prisão”; em verdade, os políticos (parece ser deles que ele está falando), com raríssimas exceções, sequer sabem do que se trata; sequer imaginam que a prisão possa ou deva ter alguma utilidade. Neste nível, como é elementar, toca-se o medievo; pratica-se o puro e simples punitur quia peccatum est.
Não admira, por isso, ser simples e desavergonhada a adoção de campanhas políticas fundadas no discurso da repressão desmesurada porque, em certa medida (aquela fixada pelo despudor e ignorância constitucional dos adeptos dos meios de comunicação), é o que se quer ouvir. Eis por que, dentre outras estratégias, precisa-se de cláusulas pétreas na CR pois, não fossem elas, já se teria a pena de morte e, quem sabe (só para se ironizar), já não mais se pagariam tributos.
Infindáveis vezes, não obstante tudo o que se possa dizer sobre a utilidade, já se provou que a prisão é um desastre e, particularmente, na forma como praticada no Brasil. Continua-se, porém, apostando nela para todos os casos e hipóteses, o que é vergonhoso porque, no mínimo, funciona como sintoma da falta de um saber.
4.3. Sobre o lugar do preso em relação à pena recebida:
“O Brasil não vê o preso enquanto cidadão, trata como alguém que perdeu grande parte dos seus direitos. (...) A pena é privativa de liberdade – não se deveria impor outros sofrimentos.”
Aqui, em face da situação subjetiva dos presos, está o básico.
É óbvio (para não dizer que seria inconstitucional se não fosse assim) que se não deve impor outros sofrimentos. Mas, no fundo, é o que se quer: gozar pelo sofrimento do outro! Não basta, então, ser a pena privativa de liberdade (eis o limite constitucional); é preciso, como se pretende erroneamente, agregar um sofrimento extra àquele que teria se despido de seus direitos elementares. Eis o inimigo! Eis o que se tem como visível e invisível na posição de gente como Jakobs e outros corifeus da corrosão da cidadania que, em países periféricos, sequer chegou à plenitude.
Tal discurso, por outro lado, serve sobremaneira para justificar um não fazer. Afinal, algo há de ser dito em relação a tudo aquilo que se deveria fazer para o preso e em relação a ele e não se faz; mas não se diz. E não se diz porque a omissão encontra guarida naquilo que entra na cota do sofrimento extra, ou seja, é como se o cidadão comum achasse uma normalidade tudo que tem acontecido porque é algo que, pelo que se aparenta, não lhe diz respeito. A situação é estranha, mas está dentro do espaço cativo do pensamento mercadológico, neoliberal, a ser analisado a partir do bordão: morreu, morreu, que bom que não fui eu! Em uma sociedade de competição, onde a ética foi consumida, a desgraça alheia é apreciada como fast food e, de fato, importa pouco. O problema é que tal comportamento, refletindo um modo de ser no mundo, não vai atingir só os presos e as prisões (quiçá os pontos mais distantes), para chegar a postos de saúde e hospitais, escolas e universidades, e assim por diante.
De qualquer forma, tudo aquilo que ultrapasse, como conduta, a pena privativa de liberdade, para ser sofrimento, toca à ilegalidade e, em face da legislação, deve merecer controle. Que digam, com urgência, as instâncias legitimadas, porque a situação, em muitos espaços, é motivo de vergonha à nação.
4.4. Sobre a pergunta: “Por que o sistema alemão tem menos detentos?” : “Porque as penas são mais curtas. Na Alemanha, 90% dos presos cumprem penas de até cinco anos.”
Neste passo está o busílis da questão!
Em verdade, no Brasil, só há racionalidade em diminuir as penas, para que sejam cumpridas (já que têm que ser) de uma maneira aceitável.
Há um erro, então, no discurso do punitivismo desmedido; e na estratégia com a qual ele é implantado.
Afinal, quanto mais aumentam as penas em extensão e quantidade, maior é a inviabilidade do sistema carcerário e, assim, cresce o sério problema dos administradores (começando pelas sucessivas equipes do Ministério da Justiça), ou seja, de que se não tem lugar para todos os presos. A consequência é simples: mitiga-se a execução da pena, começando-se por medidas tendentes a acelerar a ampliação da evolução da progressão do regime de cumprimento dela. Isso, porém, impõe-se como uma necessidade inarredável e, diante das circunstâncias é, de fato, o que deve ser feito. Claudica, não obstante, a pena em si e todo o discurso que a ela buscava dar alguma sustentação. É, portanto, como se fosse uma compensação: de um lado aumentam-se as penas sem medida e proporção (no fundo, sem a devida razão) e, de outro, tem-se que mitigar a execução quando ela se coloca na prática, como realidade. Trata-se de um jogo sem fim e que tem produzido uma névoa sobre aquilo que, em verdade, deve importar, ou seja, a quantidade adequada em face da realidade, tudo de modo a se partir da proporcionalidade, hoje perdida em face do pouco caso para com o bem jurídico tutelado.
Fez-se um tempo, então, no qual é necessário repensar o conjunto dos crimes e das penas, buscando-se a melhor adequação. Para tanto, deve-se arregimentar os penalistas aos quais o epíteto notório saber não seja colocado em causa e, assim, pessoas que possam responder pelo interesse público sem deixar a desejar. Gente assim, de regra, não se afina com o discurso dos senhores do poder porque não cede à tentação de vilipendiar à CR; mas sabe o sentido correto e possível. Em um país que pretende ser democrático, escolhas do gênero partem do mérito; e têm dado resultado.
4.5. Sobre a receita (como uma saída também para o Brasil):
“É preciso deixar a cadeia para crimes mais graves e individualizar a pena. Aqui todos os presos recebem o mesmo tratamento. Na Alemanha, existe o que chamamos de plano individual para o tratamento, ou seja, se faz um tipo de contrato. (...) Assim, sabe o que o espera. Isso também evita decepções e violência. Tudo é um pouco mais previsível e não é tão arbitrário. (...) Na Alemanha, não é tão complicado planificar a execução porque as penas são mais curtas. Você pode planejar uma pena de dois, quatro anos, mas como se planeja dez, quinze, vinte anos? Então é preciso ter penas mais curtas com um enfoque assistencial e não repressivo para que seja possível ressocializar. Aqui o enfoque é meramente repressivo.”
Por evidente que a receita não pode ser só essa; e nem era, por certo, a pretensão do professor alemão. No que aqui está proposto, porém, esboça-se uma saída; e ela deveria ser levada a sério porque composta por elementos que se não pode deixar de lado.
Dois, então, parecem ser os pontos centrais: primeiro: faz-se mister se ter penas (mais) curtas e para os crimes mais graves; segundo: deve-se ter o cumprimento da pena planificado e com um compromisso.
Aqui está, depois de um largo período de nevoeiro, uma claridade. Quanto à redução das penas (e para os crimes mais graves porque os menos graves devem ser descriminalizados ou receber penas alternativas), a fim de que sejam curtas, a matéria é complexa, mas há de ser entendida, dentre outras coisas, em face da necessidade de serem cumpridas.
Hoje, em verdade, não se cumpre a pena imposta em face da progressão de regime e, assim, tem-se – como antes referido – uma necessária compensação com o aumento desmedido delas. A situação, porém, é periclitante e, se de um lado, o número de presos aumenta em uma progressão quase geométrica, por outro cada vez mais não se tem garantido o mínimo necessário àquilo que poderia ser tomado como dignidade humana. Não é de estranhar, assim, que se esteja fomentando o nascimento, dentro dos presídios, de proto-organizações tendentes a agir em nome dos presidiários, inclusive politicamente, com todas as consequências que se possa imaginar.
As penas altas, desde este ponto de vista e na forma como vêm sendo executadas no Brasil são, inequivocamente, um erro acachapante.
E ele – o erro – fica muito claro quando se mergulha só um pouco na forma como se executam as penas, deixando o sujeito preso à própria sorte. Se assim é, nenhuma possibilidade se tem de individualizar a pena, ou seja, fazer um plano individual para o tratamento, como se fosse um tipo de contrato, no dizer do professor alemão.
Ora, nesta quadra da história ninguém deveria duvidar que o resgate de uma pessoa presa só se dá pelo envolvimento espontâneo do sujeito na direção de sua conquista. Por isso que sem empenhar o sujeito a pena é tão só o patrocínio do gozo pelo sofrimento do outro.
Se assim é – e é mesmo! – faz-se imprescindível criar as condições para que o precitado envolvimento espontâneo do sujeito se dê, de modo tal a que para ele seja um compromisso a ser cumprido e a partir do qual possa conquistar um outro lugar.
Isso começa, como é óbvio, por se manter viva a esperança, tudo ao contrário do que hoje se tem feito. Depois, ao preso que mantém a esperança viva (de que pode ter o seu lugar se fizer a sua parte), há de se reconhecer ter capacidade para tanto (eis a individualização necessária) e, se cumprir, de fato, a sua parte, ter a certeza de que, em contrapartida, vai-se cumprir a promessa, a qual deverá ser cumprida.
4.6. Sobre a pressão da opinião pública para tratar os presos com dureza: “Isso acontece em todos os países. É um populismo penal usado pelos partidos de direita para fazer política. É preciso usar argumentos da academia que digam o contrário, ou seja, mais penas produzem mais sofrimentos, mais gastos e mais delinquência.”
Mais uma vez Jörg Stippel é preciso. Aqui está um pouco da receita para se negar por completo o punitivismo desmedido e, com ele, esse projeto de CP que está em gestação e o adota.
Afinal, vai-se produzindo 1º, mais sofrimento, com resultados difíceis de curar porque o abandono deixa sequelas que, em geral, não cicatrizam; 2º, economicamente é um desastre (e isso pode convencer aos neoliberais porque se tem gastos e não lucros) e tende a piorar e 3º, ao invés de reprimir, fomenta a criminalidade o que, por si só, contradiz o discurso da repressão desmesurada.
Os três pontos, como se viu, no Brasil de hoje, tocam pouco a opinião pública, dado que todos colocam-se na contramão da ideologia da repressão, salvo se forem domesticados como, em geral, tem acontecido. Eles servem, sobremaneira, para armar o discurso de modo a contradizer a tendência, o que já é um primeiro passo.
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O presente texto está baseado na articulação do autor que deu base à conferência proferida no Seminário Crítico Reforma Penal em Debate, Academia Judicial, Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC, Florianópolis, 10/05/13.
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Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é Professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Universidade de Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.
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Imagem Ilustrativa do Post: Super Hot // Foto de: Paul // Sem alterações Disponível em: http://www.flickr.com/photos/52530340@N08/9616934444 Licença de uso disponível em: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode